Homicídios: um desafio para governos de esquerda e de direita

Governos petistas foram acusados durante a campanha eleitoral de serem coniventes com o crime organizado. Uma análise das dinâmicas da violência letal nos estados, contudo, mostra que os assassinatos ocorrem de forma complexa, independentemente da presença de armas de fogo na população, desmontando o argumento falacioso de “quanto mais armas menos mortes”.

Por Ricardo Moura

Muito se falou durante a campanha que a violência cresceu nos governos petistas e só veio a diminuir no Governo Bolsonaro. Passadas as eleições, cabe refletir melhor sobre a veracidade dessa afirmação. Afinal, de tanto uma meia verdade ser proferida ela acaba se tornando um fato inconteste no debate público. A coluna desta semana traz elementos para ajudar na compreensão do que está em jogo quando falamos em segurança pública.

O primeiro elemento a ser levado em consideração nessa equação é o papel do Governo Federal na redução dos assassinatos. Mesmo com planos nacionais e incentivos financeiros, o protagonismo dessa atividade ainda recai sobre os Estados. São as policiais militares e civis que estão à frente da prevenção e da investigação da imensa maioria dos crimes e atos violentos que ocorrem no país. Ou seja, por mais bem intencionado que a União seja em relação ao tema, é preciso que os governadores cumpram sua parte nesse “pacto federativo” em defesa da sociedade.  

Dito isso, a política de segurança pública do Governo Bolsonaro foi praticamente nula, com exceção aos acenos feitos às corporações. O caso mais trágico foi o aparelhamento da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que vimos recentemente servindo não apenas à nação, mas aos interesses pessoais e políticos do presidente.

A ação mais eficaz do Governo Federal na área da segurança consistiu em afrouxar o controle e a regulamentação das armas de fogo em território nacional. Na prática, presenciamos um processo de terceirização da responsabilidade sobre a defesa da própria vida e do patrimônio. Fazer com que a população pague pela sua própria segurança não é uma atitude republicana, mas algo mais característico de uma milícia.

Chegamos, então, a um ponto crucial do debate: o de que o aumento no número de armas de fogo em circulação teria reduzido o número de assassinatos. Em um país continental como o nosso, fazer uma correlação contemplando o número de homicídios por estado versus a presença de armas de fogo por estado ajuda a iluminar a questão. Se o argumento pró-armas estiver correto, a violência letal diminuiu onde há, proporcionalmente, mais armas registradas.

Vale ressaltar que o que se segue não se trata de um estudo científico, mas de um exercício analítico a partir dos dados existentes. Para tanto, me valho de três indicadores: a) os dados do Monitor da Violência do G1 sobre a evolução do número de homicídios por estado entre os primeiros semestres de 2021 e 2022; b) os números de registro de armas de fogo na Polícia Federal oriundos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP); e c) o comparativo também elaborado pelo G1 entre proporção de armas por habitante em cada estado versus a proporção da população do estado em relação à população brasileira.

O Brasil, como um todo, observou uma queda de 5% no número de assassinatos na comparação entre os primeiros semestres de 2021 e 2022. Onze estados com baixa presença de armamento na população e nove estados com presença elevada de armas de fogo entre seus habitantes apresentaram decréscimo nos números da violência letal.

Apenas sete estados registraram aumento no número de homicídios nesse período. Quatro deles apresentam uma forte presença de armamentos em meio à população: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Minas Gerais. Os estados de Alagoas, Pernambuco e Piauí também viram os assassinatos aumentarem, mas possuem menor presença de armas de fogo em suas populações.

A trajetória de crescimento da violência letal nesses três estados contrasta com os demais vizinhos do Nordeste, região que deu ampla margem de vantagem ao presidente Lula nas urnas: Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe registraram queda nos homicídios.

Sob o ponto de vista da política, dos 13 estados em que Lula saiu-se vitorioso, quatro registraram alta nos homicídios; dos 14 que deram a vitória a Bolsonaro, três viram a criminalidade aumentar. Uma curiosidade: com 70% dos votos para Jair Bolsonaro, Rondônia contabilizou a maior alta nos assassinatos no período abrangido: 24%. Roraima, também na região Norte, apresentou a maior redução na violência letal: -34%. O estado, por sua vez, deu 76% dos votos ao candidato do PL.

Quando fazemos esse breve levantamento é possível constatar que o argumento do “mais armas menos mortes” não se sustenta do ponto de vista das estatísticas. O cenário é muito mais complexo e diverso do que a propaganda política quer fazer crer. Especialistas apontam aspectos em comum na melhora dos indicadores: repressão mais eficaz ao crime organizado, mudanças nas dinâmicas do tráfico, menos conflitos entre facções, e, até mesmo, fatores geracionais, como diminuição da população jovem. Some-se a isso as particularidades de cada unidade da federação e o resultado é um quebra-cabeça imenso e fascinante.

A violência letal, como tantas outras questões, é um desafio permanente para governos de esquerda e direita. Para enfrentá-la, não há bala mágica muito menos receita de bolo. A melhoria dos índices só vem com trabalho, esforço e planejamento. E união entre os entes federativos.

A eleição do fascismo como um desejo pela guerra

A guerra como solução final nunca é a solução final e, sim, primeira. Se dizemos que é a solução final é porque só no final seu desejo se revela, no caso, um desejo fascista, pois a guerra é o desejo do fascismo em defesa da família, da pátria e de deus acima de tudo, o desejo do cidadão de bem, que quer o bem para todos fazendo o mal, destruindo todos aqueles que não defendem explicitamente a família, a pátria e deus acima de tudo, todos aqueles que não repetem o discurso fielmente. Todo fascista é um fiel religioso ainda que nem todo fiel religioso seja fascista, nem todos que defendam a família, a pátria e deus acima de tudo. O desejo fascista, do fascismo, não quer dizer que o desejo seja fascista. Deseja-se o fascismo, mas ele é, sobretudo, uma escolha consciente, um voto, uma declaração de voto no fascismo e aquilo que é a sua essência, a guerra. O fascismo é a eleição da guerra em defesa da família, da pátria e de deus acima de tudo.

Por Jean Pierre

A principal pergunta em relação ao surgimento do fascismo na Itália que se desenvolveu, principalmente, na Alemanha com o nazismo, e hoje se defende com o bolsonarismo no Brasil, é: por que as pessoas desejam o fascismo? A partir dela, tem-se a falsa impressão de que não se pode desejar o fascismo, que desejar o fascismo é mal, que desejar o mal não é possível. Há milênios, porém, a história tem demonstrado o contrário disso, e quando Reich, Deleuze e Guattari, dizem que o fascismo foi desejado, percebe-se o quanto esta pergunta é mal colocada. O problema não é o desejo do fascismo, é a eleição do fascismo como desejo, como aquilo que se deseja, como aquilo que falta não ao desejo, ou ao inconsciente, mas à consciência, como falta de consciência, aquilo que falta para a consciência ser, sobretudo, consciente, superar-se a si mesmo, um superego.

O fascismo é o desejo de um ego por um superego, podemos dizer, em termos psicanalíticos, não um desejo inconsciente, que não se saiba o que é, nem de onde vem, tão pouco para onde vai. Sempre se sabe em que vai dar o desejo do fascismo, ele mesmo determina de modo explícito: à morte! Isto é, à guerra! Se o fascismo é um desejo, ele é, sobretudo, a escolha de algo que represente o desejo, neste caso, a morte, o prazer com a morte, sua e do outro, ou de deixar morrer e que matem, algo que não é contrário ao desejo, pois também se pode desejar morrer e matar, deixar morrer e que matem, mesmo sem ser fascista. A diferença é que o desejo ou prazer de morrer e matar, deixar morrer e que matem no fascismo não é involuntário, motivado por algo que seja exterior à consciência, algo que não se saiba de onde vem, uma invasão bárbara. O desejo fascista é voluntário. Existe uma vontade no desejo de morrer e matar, em deixar morrer e que matem para defender a família, a pátria e deus acima de tudo, desejo repetido nas palavras família, pátria e deus como um mantra de modo consciente diversas vezes por aqueles que pregam o fascismo, pois não se pode deixar esquecer isso, não se pode fazer com o que desejo fascista seja esquecido.

Não cabe ao desejo escolher nada. Ele é simplesmente desejo. Por isso não lhe falta nada, tudo é apenas acrescentado a ele como um isso que eu desejo. Tanto é que o desejo é tão reacionário quanto revolucionário, como dizem Deleuze e Guattari, ou pode vir a ser assim. A questão, a mais importante questão, é a escolha do que se deseja, ou ainda, do que se deseja produzir com o desejo, prazer ou morte, ou ainda, pior, prazer de morte e, consequentemente, morte do prazer.

A questão não é por que se deseja morrer e matar ou se deseja o fascismo, e nem quem deseja isso, mas quando. A guerra é senão este momento, quando morrer e matar é o desejo comum de milhares e milhões de pessoas que querem assistir a e à guerra, contribuir com ela ativa ou passivamente, votar e voltar toda sua atenção à ela, vê-la de perto sentindo o calor da batalha ou de longe sentido o calor que vem dela como de um sol da meia-noite. Quando políticos brasileiros e pessoas comuns se voluntariaram para combater em defesa da Ucrânia ao lado dos fascistas de lá contra os russos, foi por um desejo fascista pela guerra sob o lema em defesa da família, pátria e deus acima de tudo repetido em todo o mundo. No caso, por perceberem que é na guerra que podem saciar o seu desejo de morrer e matar, principalmente matar.

É o mesmo desejo de guerra que há em PMs de invadirem periferias e o mesmo desejo de prefeitos, governadores, presidente e população que apoia religiosamente que eles façam isso para defenderem a sua família, sua pátria e seu deus. É o desejo de sangue jorrando nas veias ou para fora delas, em corpos alvejados por balas, de preferência na cabeça, desejava um ex-governador do Rio de Janeiro, no caso, o corpo de qualquer um que passe na frente de um PM que tem, para o governo atual do Rio de Janeiro e para o presidente do Brasil, a “legítima defesa” de matar. É o desejo do civil em sacar uma arma para qualquer um que, para ele, é um inimigo de sua família, da pátria e de deus.

Nada mais comum, portanto, do que o desejo fascista, mas é preciso uma guerra e a retórica da guerra para que ele se realize. Neste ponto, a história demonstra claramente o quanto fascismo e socialismo, quiçá o comunismo, são diferentes em sua origem, quando Mussolini, fazendo parte do socialismo na Itália em defesa da União Soviética, como um trabalhador consciente, representante do Partido Comunista, teve que escolher e orientar a escolha dos trabalhadores na Itália quanto a apoiar ou não a entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial. Foi ao escolher a guerra, depois de ser contra ela se posicionando como neutro, que Mussolini realizou o desejo fascista, pelo fascismo, e senão que foi eleito fazendo do fascismo não mais um desejo, mas uma forma de governo do povo, um Estado fascista, posteriormente, Hitler fazendo o mesmo na Alemanha com a ajuda de Hitler.

Quando Mussolini publicou no jornal socialista Avanti! um extenso artigo intitulado “Da neutralidade absoluta à neutralidade ativa e operante”, em 1915, o desejo fascista deixou de ser um desejo inconsciente, de “neutralidade absoluta”, um desejo como qualquer outro, para ser consciente de si, uma “neutralidade ativa e operante”, uma anulação de si e do outro, um desejo de morrer e de matar. A guerra se tornou o desejo de Mussolini, mais do que o desejo revolucionário socialista que tinha até então, fazendo deixar o jornal, o socialismo e o comunismo pretendido em defesa agora do fascismo. Ao escolher a guerra, o trabalhador sindicalista socialista comunista Mussolini se tornou o primeiro fascista da história, aquele que cunhou propriamente o termo fascismo, que escreveu o fascismo na história ao criar o Partido Revolucionário Fascista.

É a eleição da guerra que leva ao fascismo, quando o desejo de morrer e matar, deixar morrer e que matem, é maior do que o desejo de viver, fazer viver, deixar viver e fazer com que vivam. A eleição da guerra é a eleição do próprio fascismo quando passa de um desejo inconsciente podendo ser substituído por qualquer outro desejo para ser um desejo conscientemente fascista, um desejo pelo qual se toma partido, que se defende como um partido, que se vota nele como num partido, mas que não é o desejo democrático de um partido, posto que se diz que este partido é o país, a pátria, a nação e tudo aquilo que diz respeito a isto.

Se o desejo é fascista é, por fim, porque o fascismo é uma escolha para o desejo, para o que se deseja, de modo consciente e não simplesmente inconsciente, no caso, a consciência do desejo de morrer, matar, deixar morrer e que matem pela família, pela pátria e por deus acima de tudo. A guerra é a realização do desejo fascista. É a eleição dela que elege o fascismo e que o mantém no poder. A retórica da guerra é a defesa da guerra em defesa da família, da pátria de deus acima de tudo, isto é, a defesa do fascismo ao qual devemos senão resistir desejar, pois nada podemos em relação ao desejo, principalmente, de morte, senão resistir a ele, fazendo a travessia do desejo de morrer e matar para o desejo de viver e amar de novo, produzindo no braço e abraço o viver, como canta Milton Nascimento:

Sonho feito de brisa

Vento, vem terminar

Vou fechar o meu pranto

Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida

Me esquecendo de você

Eu não quero mais a morte

Tenho muito o que viver

Vou querer amar de novo

E se não der, não vou sofrer

Já não sonho, hoje faço

Com meu braço o meu viver

Sobre a imagem. Mussolini e sua massa de apoiadores fascistas que, em uma nova roupagem, comanda a Itália mais uma vez.

Jean Pierre

Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Ceará e pesquisador do Grupo de Pesquisa Conflitualidade e Violência – COVIO/UECE.

Somos todos Sísifo

O desafio de reconstruir o País está posto e inescapável. Cabe a nós atuarmos de cabeça erguida e coluna ereta. Erguer mais uma vez a rocha morro acima com o peso da responsabilidade de sermos os artífices de uma sociedade melhor.

Por Ricardo Moura

É impossível compreender o Brasil sem levar em consideração os males de nossa colonização: a herança escravocrata, a concentração de renda e o autoritarismo que perpassa nossas relações sociais. A superação desses três elementos constituintes dessa brasilidade tão mesquinha é um projeto ainda incompleto. Ao longo da história, raros foram os momentos em que ousamos enfrentar essas chagas sociais como se deveria. 

A ideia de um processo civilizatório, inclusivo e diverso durou somente o tempo de uma primavera. Tratou-se de um bug no sistema logo corrigido pela programação do mais do mesmo da lógica do senhorio. O que mais se viu foram tentativas de acomodamento de interesses conflitantes e reações exasperadas de grupos privilegiados aos avanços sociais mais tímidos. 

As eleições deste ano colocaram frente a frente esses dois projetos antagônicos. Lula e Bolsonaro encarnam duas concepções distintas de se fazer política e de futuro. Suas biografias condensam práticas ancestrais de resistência e de dominação. É possível ver traços delas nos discursos e nos símbolos mobilizados na campanha. 

O homem branco e cristão como o padrão-ouro do que seria a humanidade é um conceito em crise e fadado à extinção. Formas de existência plurais começam a ganhar vez e voz no campo da micropolítica. As lideranças que mais rápido perceberem isso sairão na frente nos futuros pleitos.

Por óbvio, a Velha Política não entregará os pontos facilmente. A resposta veio por meio do jorro de dinheiro público que irrigou campanhas de Norte a Sul e da normalização da violência política como estratégia de intimidação. As raposas estão acuadas diante da novidade que brota das juventudes negras e periféricas, das mulheres, dos povos originários e da população LGBT. Até mesmo uma nova centro-direita emergirá desse processo.

Retomar o que se perdeu de civilidade é a nossa tarefa histórica neste momento. Teremos muito trabalho pela frente. Assim como no mito de Sísifo, a pedra que empurramos montanha acima após a redemocratização despencou morro abaixo. É nossa missão erguê-la novamente. Albert Camus, ao tratar dessa alegoria, ressalta que nem sempre vemos os resultados das lutas que travamos, mas ainda devemos cumprir esse destino. Estar consciente dessa limitação histórica não é razão para deixar de fazer o que é o certo. “É preciso imaginar Sísifo feliz”, afirma o filósofo. A rocha é pesada e nossos ombros doem diante do fardo que será a reconstrução deste país. A partir do dia 30, seremos todos Sísifos. E, ainda assim, seremos felizes.  

Primeira mulher do Ceará a cursar faculdade na prisão agora é mestra em História Social

Trajetória pioneira de Cynthia Corvello é uma mostra do potencial da educação para transformar vidas e um chamado para que possamos mudar a forma como encaramos as pessoas encarceradas. Percursos individuais de superação necessitam se tornar algo rotineiro e não apenas um episódio isolado.

Por Dayanne Borges

No dia 13 de junho de 2022, Cynthia Corvello, de 51 anos, defendeu sua dissertação de mestrado no curso de História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). No trabalho “Viver além da margem: existências e resistências de mulheres criminalizadas (Ceará, 1970-1990), a historiadora analisa os processos de criminalização e patologização de mulheres em conflito com a lei ao longo desse período. Essa história poderia ser igual a de milhares de estudantes de pós-graduação se não fosse por um detalhe: Cynthia começou sua trajetória acadêmica no local exato de seu campo de pesquisa, ou seja, cumprindo pena em regime fechado no Instituto Penal feminino Auri Moura Costa.

A caminhada até o título de mestra enfrentou diversos percalços. Cynthia foi presa em 1998 pela coautoria de um duplo homicídio. No ano seguinte, foi liberada para aguardar o recurso do julgamento em liberdade. Ela foi para São Paulo, onde trabalhou como gerente de setor em uma empresa de cosméticos.

Em maio de 2010, a historiadora foi comunicada da recusa do recurso pelo defensor público que a assistia juridicamente. Teve, então, de retornar para Fortaleza para cumprir a pena. “Na época eu era uma profissional bem paga, fazia faculdade de Filosofia e tinha uma vida maravilhosa. Eu me desfiz de tudo isso, arrumei minha mala, peguei um ônibus e me apresentei no fórum”, comenta. Cynthia foi presa pela segunda vez dia 10 de junho de 2010 e ficou em regime fechado até 10 de junho de 2013.

Nesse período, Cynthia relata o interesse de retomar os estudos. Estar presa, contudo, era um impeditivo para tanto. “Fiz o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e consegui uma vaga pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), mas tinha que ter a permissão da juíza e o aceite da universidade”, afirma.  A Lei de Execução Penal prevê que o Estado tem de garantir apenas o ensino fundamental e médio para pessoas privadas de liberdade.

Atendendo a um pedido da Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Especializado em Execução Penal (Nudep), a juíza da 2ª Vara de Execuções Penais do Fórum Clóvis Beviláqua, Luciana Teixeira de Souza, permitiu que Cynthia cursasse História, criando uma jurisprudência sobre o assunto. “Ela [a magistrada] foi extremamente corajosa. Não era um direito, foi um benefício que me foi concedido. Por causa disso, ela foi muito criticada na época”, relembra.

Sobre o aceite da Universidade, o departamento de História realizou uma reunião com os alunos para saber a opinião do corpo discente e Cynthia revela: “Eu fui adotada por eles”.

Aulas sob monitoramento

Em 2012, Cynthia começou a frequentar a universidade por meio do monitoramento eletrônico, em uma época em que esse aparato tecnológico estava sendo desenvolvido e não era tão disseminado quanto hoje. Ela foi uma das primeiras pessoas a utilizar a tornozeleira eletrônica no estado do Ceará. “Eu fui cobaia”, brinca ao lembrar-se do episódio.

Cynthia conta ter tido limitação de deslocamento dentro da universidade por causa do monitoramento, mas seus colegas universitários tentavam sanar esse problema: “Eles iam pegar livros para mim na biblioteca. Às vezes, eu tinha fome e queria merendar e eles compravam para mim”. A ajuda não se restringia dentro da universidade. Como não podia se deslocar até o Arquivo Público para fazer suas pesquisas, um colega se dirigia até o local e de lá levava o material à penitenciária.

A historiadora destaca ter gratidão à Analupe Araújo, diretora do Instituto Penal Auri Moura Costa naquele período, por ter permitido a entrada do estudante para a produção do trabalho. No início da graduação, Cinthya percebeu um estranhamento das colegas que cumpram pena em regime fechado pelo fato de ela ter recebido o benefício. “É difícil pra quem está lá dentro ver uma pessoa que pode sair todo dia”, comenta.

Com o passar do tempo, a historiadora revela que várias mulheres privadas de liberdade começaram a manifestar interesse em estudar. Em 2013, a Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) criou um curso de bacharelado em Filosofia no Auri Moura Costa. Algumas egressas do curso chegaram ao doutorado.

“Por mais que seja diferente a realidade das mulheres é um gatilho pra mim. Sim, é um gatilho. Então eu chorava. Eu me envolvi muito”, sobre o desafio pessoal de estudar o sistema prisional.

Planos para o futuro, branquitude e emoções diversas

Em 2016, Cinthya concluiu a graduação na UFC e, em 2019, iniciou o mestrado em História Social na mesma instituição em que se formou. Em junho de 2022, a historiadora defendeu sua dissertação de mestrado. Em seu trabalho, ela utilizou fontes históricas como publicações governamentais, leis, periódicos e prontuários prisionais das detentas.

Questionada sobre um possível doutorado, Cinthya Corvello diz que recebeu sugestões para continuar explorando essa mesma temática, mas o trabalho de pesquisa a deixou sensibilizada. “Por mais que seja diferente a realidade das mulheres é um gatilho pra mim. Sim, é um gatilho. Então eu chorava. Eu me envolvi muito”, revela. As emoções despertadas, contudo, não são apenas negativas: “Eu chorei muito, mas também dei muita risada, porque tem umas histórias muito doidas”.

No fim da entrevista, a historiadora fez uma ressalva ao destacar que a questão racial não pode ser ignorada em sua trajetória. “A minha branquitude foi o que me colocou em um lugar de destaque no presídio e me possibilitou ter um dossiê de bom comportamento, que abriu portas. Existem dezenas de pessoas tão capazes quanto eu, mas que não conseguem ter o mesmo tratamento porque não têm a visibilidade que eu tive”, pontua.

Campanha eleitoral desumaniza presos em troca de votos

A desumanização das pessoas encarceradas foi a tônica de uma eleição pautada fortemente nos valores morais, como se o fato de cumprir uma pena colocasse o apenado em uma condição inferior à de um ser humano. Estar relacionado de alguma forma a essa situação tornaria o candidato “impuro” moralmente perante os eleitores.

Por Ricardo Moura

Em uma disputa eleitoral tão polarizada quanto a que vivemos, o debate de propostas cedeu espaço a uma verdadeira troca de acusações. Interessou mais tentar aniquilar a honra do outro que discutir os rumos do país nos próximos anos. Nessa contenda, a população carcerária serviu como um bode expiatório para que as candidaturas fizessem valer toda sua capacidade de estigmatizar o adversário por meio das mais diversas associações.

Durante a campanha, vimos desde vídeos de presos e egressos que, supostamente ou não, votavam em candidato X a político sendo chamado de ex-presidiário em debate, como se isso fosse uma ofensa, a despeito de toda a parcialidade do processo judicial que o colocou nas grades. Nas redes sociais, o quadro não foi diferente: imagens montadas de uma penitenciária circularam como se houvesse uma comemoração ao resultado do primeiro turno em seu interior.

A desumanização das pessoas encarceradas foi a tônica de uma eleição pautada fortemente nos valores morais, como se o fato de cumprir uma pena colocasse o apenado em uma condição inferior à de um ser humano. Estar relacionado de alguma forma a essa situação tornaria o candidato “impuro” moralmente perante os eleitores.

Essa concepção é um veredito terrível e abominável sobre a condição humana. Uma sociedade que não acredita na reabilitação dos próprios cidadãos é uma sociedade sem futuro algum. O que dizer então de um país cuja população carcerária é a terceira maior do mundo, com mais de 900 mil detentos. E esse número só cresceu durante a epidemia, impulsionado pelas diversas ocorrências de prisões por furto com o agravamento da miséria e do desemprego.

Compreender a situação dos presos como uma realidade entre o bem versus o mal é adotar uma postura ingênua ou de má fé sobre o tema. As prisões, com todas suas limitações, são espaços de cumprimento de penas e não purgatórios humanos ou algo do gênero. Implementar práticas desumanizantes contra quem está encarcerado é infligir uma dupla penalidade ao detento. Quando a sentença é cumprida, o presidiário volta ao convívio social. Nesse retorno, a expectativa é que não haja uma reincidência no mundo do crime e que a vida possa seguir dentro da legalidade. Justiça não é vingança. Pelo menos enquanto este país ainda for uma democracia.

A hipocrisia reina em se tratando do que consideramos o “crime merecedor de punição rigorosa” e do que também é crime, mas fazemos vista grossa. Sonegação é vista por muitos como uma espécie de contravenção menor, quase como jogar no bicho. O mesmo sujeito que alivia a barra do jogador famoso que sonega milhões é aquele que apedrejaria, se tivesse oportunidade, quem furta alimentos por causa da fome ou quem rouba um celular.

Há, no Brasil, uma escala de percepção da criminalidade em decorrência da classe social. Basta mencionar o fato de que os filhos da classe média e alta apenas “transportam ou recebem” drogas, mas nunca serão tachados de traficantes nos jornais. Dificilmente o rosto deles será exposto na mídia, condição legal que, em tese, valeria para todos embora teimamos em querer esquecer disso.

Gostamos dessa condição de uma cidadania “premium”. É reconfortante saber que existem os seres humanos, nossos iguais, e que, do outro lado, há seres cuja caracterização se aproxima mais do monstruoso do que do humano. A propaganda opera nessa fronteira quando acusa os candidatos adversários de serem do “lado de lá”, como se houvesse uma muralha tangível que separasse os cidadãos de bem dos vagabundos. 

Os líderes religiosos têm um papel de protagonismo ao traçar essas linhas divisórias para seus fiéis. Como bons pastores, caberia a eles repreender o pecado, mas sem deixar de estender a mão para quem se desgarra, quem se perde em sua trajetória. O cristianismo, aliás, é a religião do perdão. No afã de desqualificar os inimigos políticos, contudo, esse preceito incômodo é omitido dos sermões.

A impressão que temos é a de que determinados trechos da Bíblia foram suprimidos para dar ênfase apenas ao que prega o Deus irascível do Antigo Testamento. Como se o Filho de Deus não tivesse morrido vítima de um processo judicial injusto na condição de… preso. Se as lideranças religiosas creem firmemente que não há mais redenção para os encarcerados, por que se dedicam tanto a fazer evangelização nas cadeias com direito até mesmo a cursos de teologia? Preso bom só é o preso da igreja?

Passado o redemoinho das eleições, em algum momento precisamos discutir a sério, de forma adulta, como reformar o sistema penal e os centros educacionais para que eles possam se tornar espaços de ressocialização. Se os políticos não se dispõem a encarar esse desafio, que pelo menos parem de estigmatizar os presos em suas campanhas.

Carta a Elmano Freitas sobre a segurança pública no Ceará

Os desafios na área da segurança pública são muitos, mas quem assume o Palácio da Abolição conta com todo o capital político possível para fazer o que se deve. Aprimorar as políticas de prevenção, prestar maior apoio às ações da controladoria e incorporar as câmeras nos uniformes dos PMs são algumas das medidas que se esperam do novo governante.

Por Ricardo Moura

Prezado governador eleito, parabéns por sua vitória ainda no primeiro turno das eleições. Há um recado do povo cearense expresso nesse resultado que o senhor certamente levará em conta. Dito isso, seguem alguns pontos que acredito serem do seu interesse na área da segurança pública, a partir do olhar de quem há quase 20 anos encontra-se imerso no tema. O governante sábio é um bom ouvinte. Aproveite sua experiência com os movimentos sociais para agendar um encontro presencial com as mães de filhos internados em centros educacionais, familiares de presos/egressos do sistema prisional e com o Fórum Popular de Segurança Pública (FPSP). São pessoas que, além de militantes, vivem na pele as limitações das políticas tradicionais de segurança pública, cujo foco reside principalmente na repressão, não contemplando o cotidiano de violência e precariedade em que elas vivem.

Avançamos no que diz respeito ao combate aos grupos criminosos armados no Ceará: diversas operações foram realizadas nos últimos anos, lideranças foram presas e rotas de abastecimento financeiro estranguladas. No entanto, milhares de cearenses vivem em áreas de conflito, em que a regulação social ocorre por meio da disputa entre tais organizações. Precisamos resgatar o sentimento de empatia com os que sofrem nas mãos das facções a partir de um esforço coordenado que envolva poder público e sociedade.

Estar presente, se mostrar solidário, é uma abertura que se espera há muito de quem governa o Estado. Esse é o movimento inicial em torno de uma política de prevenção que possa vir a ser mais eficaz do que tudo que já foi feito até o momento tanto para retirar adolescentes e jovens do mundo do crime quanto para evitar que eles sigam esse caminho quase sem volta. Os homicídios juvenis precisam deixar de ser uma questão apenas sociológica e se tornar, finalmente, uma questão social.

O mesmo cuidado deve ser estendido para quem trabalha e para quem  cumpre pena no sistema penitenciário. A política do “procedimento” não pode se sobrepor ao que determina as normas que orientam o encarceramento no Brasil. O respeito à dignidade humana tem de começar pelas pessoas mais estigmatizadas socialmente. Não há melhor sinalização sobre isso se o governador em pessoa estiver engajado em superar o fosso existente entre quem vive no andar de cima e os que sobrevivem no andar debaixo.

A proposta de uma “institucionalização da segurança cidadã” e de uma “segurança civil”, expressa em seu plano de governo, ou seja, uma abordagem que tenha a multiplicidade das causas da violência como foco e articule políticas públicas transversais, passa por essa escuta qualificada mais do que pelo desenho de programas ambiciosos de segurança.

Nossa crônica e histórica desigualdade social é fonte e mantenedora de uma violência difusa. Com alguns ajustes no modelo de segurança, nas áreas mais ricas da capital cearense, Fortaleza nunca mais se apavorou. Nas periferias, nas zonas rurais do Interior e nos assentamentos precários, contudo, o pavor é uma constante. A diferença é que o Estado não está lá para ouvir. Que essa realidade possa mudar a partir do próximo mandato que se inicia.

No que diz respeito à gestão interna, é preciso que a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública assuma o protagonismo que lhe cabe, com os recursos necessários para seu funcionamento, tendo em vista o desafio de punir os maus policiais. Sua experiência na relatoria da CPI das Associações Militares demonstrou coragem em mexer com assuntos delicados.

O crime não se organiza e muito menos se estrutura sem apoio dos agentes estatais. Debelar esses focos de corrupção é uma missão espinhosa e repleta de perigos. Embora seja uma medida necessária, cortar na própria carne costuma ser uma medida sempre deixada de lado pelo governante de plantão.

Em outra frente, o deputado autor da proposta que prevê a incorporação de câmeras nos uniformes dos policiais militares cearenses possui todas as condições necessárias para fazer com que isso torne uma realidade. A medida produziu bons resultados em São Paulo, mas contraria as alas mais corporativas da PM. Até por isso mesmo, vem sendo atacada de forma populista pelo candidato bolsonarista ao governo daquele Estado.

Por fim, a violência política e motivada pelo ódio é uma dolorosa realidade com a qual ainda haveremos de lidar nos próximos anos. O resultado das eleições de 30 de outubro dificilmente será aceito sem resistências e insubordinações. Aliado a isso, temos segmentos da população cada vez mais armados, ampliando sobremaneira os riscos de danos contra inocentes e os próprios agentes de segurança. O ataque ocorrido à escola em Sobral, que resultou na morte de um estudante, não pode ser encarado como um episódio isolado, mas como a ponta de um iceberg cujos contornos ainda estamos começando a perceber.

Os desafios são muitos, mas quem assume o Palácio da Abolição conta com todo o capital político possível para fazer o que se deve. Do lado de cá, faremos o exercício da análise, da crítica e do apoio às ações do futuro governo que se anuncia. O mesmo horizonte nos guia: construirmos um Ceará mais seguro e próspero, em que o conceito de “viver bem” se estenda para toda a população.

Campanha: escola tem se tornado um espaço violento e opressor

Surgida em 1999, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha) tem como objetivo somar diferentes forças políticas em favor da defesa e promoção dos direitos educacionais. É considerada a articulação mais ampla e plural no campo da educação no Brasil, com centenas de grupos e entidades distribuídas por todo o país. Em nota, a rede denuncia o cenário que torna propício casos com o de Sobral (CE) e Barreiras (BA) em que alunos são baleados dentro das escolas. Confira o texto na íntegra:

“A Campanha Nacional pelo Direito à Educação lamenta profundamente a tragédia ocorrida na manhã de hoje, 05 de outubro de 2022, que resultou em três adolescentes baleados na Escola Estadual Professora Carmosina Ferreira Gomes, no bairro Sumaré, em Sobral/CE. Todos, vítimas e atirador, são adolescentes de 15 anos que cursam o primeiro ano do ensino médio. Um deles está em estado grave. A arma de fogo utilizada está registrada em nome de um CAC, familiar do adolescente.

Foram nove dias entre o tiroteio que resultou na morte da estudante Geane da Silva Brito na Escola Municipal Eurides Sant’Anna, no município de Barreiras, no oeste da Bahia e o dia de hoje em Sobral/CE. Nove dias!

A violência nas escolas é reflexo de um conjunto de problemas estruturais na sociedade brasileira que têm sido amplificados por comportamentos e atitudes diametralmente opostos à construção de uma cultura de paz e estimulados por programas do atual governo como a educação militarizada e a política armamentista vigente. A escola tem se tornado um espaço violento, opressor, que coíbe o pensamento crítico, a autonomia e a cultura da paz.

Aliada a esse modelo educacional extremamente retrógrado e autoritário, soma-se a política bélica propagada pelo governo Bolsonaro que promove o armamento da população, contrariamente aos avanços em termos de políticas de segurança pública.

É inegável que o momento é de dor, de insegurança e a Campanha se solidariza com os familiares, amigos, trabalhadores da instituição de ensino e estudantes. Entretanto, o ataque de hoje e o contexto em que se insere precisam, necessariamente, ser objeto de nossa reflexão e ação, passando obrigatoriamente pelo debate sobre o fim da militarização das escolas, do desarmamento da sociedade, da ausência do Estado na promoção da segurança pública, da proteção e sobre saúde mental de sua população.

Um jovem vítima de bullying não deveria ter como opção desejar e realizar a morte de seus colegas de classe. Por isso insistimos sobre a importância de uma discussão séria, que envolva toda a sociedade brasileira sobre a necessidade de políticas públicas sólidas a favor do desarmamento.

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Andressa Pellanda
Coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação”

Irresponsabilidades marcam ataque a estudantes em escola de Sobral

Três adolescentes foram baleados por um colega na Escola Estadual Professora Carmosina Ferreira Gomes, no Bairro Sumaré, no município de Sobral (CE). Eles foram vítimas de uma dupla irresponsabilidade: da política de liberação irrestrita do acesso às armas de fogo ao homem que deixou o armamento acessível ao adolescente.

Por Ricardo Moura

As imagens que chegam pelo celular são terríveis: adolescentes sentados em suas carteiras escolares sangrando após terem sido alvejados a bala por um colega de turma. Para quem é pai e tem filho em idade escolar a sensação de angústia é imediata. Tiroteios em massa em escolas são temas recorrentes de reportagens e filmes, mas ver os danos causados por uma ação como essa em uma cidade tão próxima como Sobral deveria acender um alerta em toda a sociedade. 

Debater a motivação do atirador é tergiversar do principal problema. Preocupa saber que todos nós podemos ser vítimas da irresponsabilidade alheia. O revólver utilizado pertence a um integrante do grupo formado por colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CAC). A arma certamente deve ter sido registrada e comprada de forma legalizada. Tal instrumento, contudo, não deveria estar ao alcance das mãos de um adolescente. Possuir armas de fogo em uma residência exige cuidados redobrados que, pelo visto, não foram tomados.

Em um nível mais elevado, a irresponsabilidade se dá quando a política mais bem sucedida do Governo Federal consiste na terceirização da responsabilidade sobre a área da segurança pública ao promover a liberação do uso indiscriminado de armas de fogo. A aquisição de pistolas, revólveres e fuzis disparou. Em paralelo, os controles sobre a compra, o registro e a circulação dos armamentos foram afrouxados.

Com o objetivo de burlar as limitações impostas pelo Estatuto do Desarmamento, os CACs ganharam um protagonismo inédito, empoderando-se ao ponto de poder articular candidaturas ao parlamento visando a defesa dos seus interesses. Os estudos demonstram que os assassinatos por arma de fogo só aumentam com a desregulamentação e a ampliação do número de armamentos em circulação. Nessa contabilidade, não estão incluídos os feridos a bala e os traumas psicológicos causados por viver uma situação limite como um ataque à escola, um ambiente de aprendizado, interação e construção de afetos.  Enquanto isso, a autoridade máxima do país faz campanha com os dedos em formato de arminha, em uma clara chancela à resolução dos conflitos por meio da violência armada. Por certo, não ouviremos do presidente nenhuma palavra de conforto ou reprimenda ao ocorrido na escola de Sobral. É até melhor. Poderia haver o risco de a resposta ser: “E daí? Não sou médico”.

O dilema da bancada parlamentar da segurança pública no Ceará

Apenas um representante das forças de segurança no Ceará foi eleito como parlamentar nas eleições deste ano. Na esfera do Poder Executivo, Capitão Wagner (União Brasil), que se apresenta como porta-voz dos policiais, foi derrotado para o Governo do Estado ainda no primeiro turno. O que isso quer dizer?

Por Ricardo Moura

O sargento do Corpo de Bombeiros Militar, Reginauro Sousa Nascimento, foi o único dos candidatos da “bancada da segurança pública” no Ceará que conseguiu se eleger no pleito deste ano. Filiado ao União Brasil, o militar reformado obteve 41.635 votos, ficando em terceiro lugar entre os candidatos de seu partido. A votação lhe permitiu assumir uma vaga na Assembleia Legislativa do Ceará como deputado estadual. O sargento está em seu segundo mandato como vereador na Câmara Municipal de Fortaleza.

Em sua rede social, Sargento Reginauro lamentou a derrota de Capitão Wagner (União Brasil) para o Governo do Estado e apresentou suas bandeiras no Legislativo nos próximos quatro anos: “Espero todos vocês nas ruas, lutando pela vida, contra o aborto, contra a legalização das drogas, contra a defesa de bandidos e por um país que continue prosperando”.

Nomes que se apresentavam como porta-vozes dos interesses dos agentes da segurança como Tony Brito (União Brasil), Soldado Noélio (União Brasil), Julierme Sena (União Brasil) e Coronel Aginaldo (PL) não conseguiram votos suficientes para se elegerem. O deputado estadual Delegado Cavalcante (PL), que chegou a dizer que se não ganhasse nas urnas iria ganhar na bala, perdeu a disputa para a vaga de deputado federal, obtendo apenas 24.379 votos. O parlamentar é alvo de três pedidos de investigação por crime eleitoral.

Na disputa pelo poder executivo, a situação também é parecida. Eleito parlamentar a partir de sua identificação com os interesses dos agentes de segurança, Capitão Wagner não conseguiu nem ao menos levar a disputa pelo Governo do Estado ao segundo turno.

Análise

Os dois candidatos mais votados para a Assembleia Legislativa e o Congresso Nacional no Ceará, Carmelo Neto (PL) e André Fernandes (PL), respectivamente, são jovens expoentes do bolsonarismo no Ceará e políticos muito hábeis em lidar com a dinâmica das redes sociais. Com a mudança no quociente eleitoral, a concentração de votos em um único candidato deixa de auxiliar os demais integrantes do partido de forma automática, como ocorria em certames passados. É possível afirmar que os candidatos policiais enfrentaram uma forte concorrência na disputa de uma mesma parcela do eleitorado que se identifica com o atual presidente da República.

A atuação dos parlamentares da “bancada da segurança pública”, até o momento, em relação às questões relacionadas à violência e à criminalidade é bastante discreta. O que mais se viu foi uma forte defesa dos interesses da corporação no parlamento em detrimento do debate e da proposição de políticas públicas que pudessem impactar diretamente na ampliação do sentimento de segurança da população cearense.

Há um caráter irônico e contraditório na política de segurança proposta por Jair Bolsonaro: embora se valha de um discurso de maior rigor na execução das leis e de amparo aos policiais, as medidas adotadas até o momento vão no sentido contrário. A ampliação do acesso às armas do fogo, além de aumentar o potencial de danos em um contexto de violência interpessoal, tem servido como mais uma fonte de abastecimento do arsenal das organizações criminosas. Por seu turno, a demora em se obter a vacina, no auge da pandemia do Coronavírus, pôs em risco justamente os profissionais que estavam mais expostos ao vírus, ou seja, os profissionais da segurança.

Do ponto de vista da estratégia política, cabe aos policiais repensarem suas escolhas e métodos de organização caso queiram obter um papel de maior protagonismo. A título de sugestão, talvez seja interessante adotar uma perspectiva que compreenda o policial mais como um trabalhador que como o portador de uma missão, seja ela qual for. Além disso, as pautas precisam dialogar com questões mais amplas, que vão além de um programa corporativista.

Para quem lida diretamente com o público, como os agentes de segurança, é impossível ficar alheio aos problemas concretos da população. E não é liberando mais armas de fogo que eles serão resolvidos. Na arena da disputa ideológica, vale ressaltar, há parlamentares que encarnam melhor os anseios de um eleitorado mais alinhado aos valores bolsonaristas. Após um desempenho eleitoral aquém do esperado, por que não fazer uma autocrítica?

O que os candidatos ao Governo do Estado têm a dizer sobre a tortura nos presídios?

Novas denúncias de maus tratos levantam a questão sobre a gestão do sistema prisional. Situação não é nova. O que o futuro ocupante do Palácio da Abolição tem a dizer sobre isso. Nos debates e nas propagandas eleitorais, a ausência de críticas ao atual modelo é um sinal de anuência, mas a sociedade precisa saber o que seu candidato pensa.

Por Ricardo Moura

A manutenção do modelo vigente do sistema prisional é um ponto pacífico nas propostas dos principais candidatos ao governo do Estado. Embora possa haver algum sinal de divergência em relação às políticas de segurança pública, não se ouve nenhuma crítica em relação à gestão dos presídios. A ausência de vozes contraditórias encobre problemas graves como denúncias de maus tratos e tortura contra presos. Em um artigo publicado na última segunda, dia 18, tematizamos esse consenso acerca do sistema prisional:

“As prisões merecem um tópico à parte. A ausência de propostas para o sistema penitenciário demonstra que o modelo atual também é consenso entre os candidatos. A ‘pacificação’ dos presídios, contudo, ocorreu sob o custo de denúncias de torturas e maus tratos que nunca foram devidamente investigadas e da sobrecarga sobre os policiais penais com resultados nefastos para a saúde mental. Os centros educacionais padecem de problemas semelhantes, mas sofrem com um processo de esquecimento, como se quem tivesse ali fosse invisível, tanto quem está internado quanto quem trabalha”.

Nesta semana, novas denúncias vieram à tona. De acordo com o jornal Diário do Nordeste, a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) investiga policiais penais e, até mesmo um diretor de presídio, por suspeita de torturar detentos na Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II) no município de Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).

Em nota, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará informou que uma vistoria realizada no presídio constatou lesões corporais em presos em uma ala determinada. O blog apurou que os detentos passaram por exames de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML) ao longo de todo o dia de ontem, em grupos de 20 em 20. Uma comissão de advogados e delegados acompanhou o processo a fim de que não houvesse violações.

No limite

No ano passado, o sindicato dos policiais penais denunciou as más condições enfrentadas pelos profissionais que teria resultado em diversos casos de suicídios, conforme o Blog Escrivaninha relatou. Policiais penais denunciaram à época que as mudanças na gestão penitenciária geraram acúmulo de atividades e condições insalubres de trabalho, que têm resultado em adoecimentos.

A categoria se sente sobrecarregada com o acúmulo de funções. “Conseguimos organizar o sistema penal. Os presos se mantêm dentro de uma disciplina rígida, mas os servidores também entraram nessa mesma disciplina. Por causa disso, estamos no limite. Nossa atividade parece que não tem fim”, desabafou um dos servidores. Em novembro de 2021, um policial matou um colega e se matou em seguida. No dia seguinte, um profissional de apenas 24 anos cometeu suicídio com um tiro na cabeça. 

O que virá?

Essas denúncias precisam se transformar em uma pauta no debate eleitoral. O que os candidatos ao governo do Estado têm a dizer sobre isso? Que políticas e protocolos deverão ser adotados tendo em vista a identificação e punição dos responsáveis por torturas e maus tratos independentemente do nível hierárquico que ocupem. Como lidar com os policiais penais a fim de que a categoria não se sinta sobrecarregada?

Pelo que foi visto até o momento, Mauro Albuquerque seria mantido como o secretário de Administração Prisional de qualquer um dos candidatos que venha a ocupar o Palácio da Abolição em 2023. O silêncio de Capitão Wagner, Elmano Freitas e Roberto Cláudio, sobre esses episódios, é uma afirmação eloquente de consentimento sobre o atual estado de coisas no sistema penitenciário.