O que pensam os homens que agridem mulheres?

Agressores veem diferenças entre o crime comum e os atos de violência cometidos dentro de casa, compreendidos como algo natural. De tão entranhada, somente a violência física é percebida como tal em um universo fortemente marcado pelo machismo, patriarcalismo e a misoginia.

Por Ricardo Moura

O feminicídio seguido de homicídio da vereadora Yanny Brena, ocorrido em Juazeiro do Norte, chocou a sociedade e ganhou repercussão nacional. A forma ritualista como o crime foi cometido e o fato de o autor do assassinato ter sido o namorado da parlamentar são elementos que tornam o episódio ainda mais dramático. O deputado estadual Yuri do Paredão, irmão da vítima, posicionou-se sobre o caso em suas redes sociais: “Minha maior meta agora será combater o feminicídio. Dou a minha palavra que lutarei para que a dor que sinto agora não seja sentida por outras mães, outros pais e outros irmãos”.   

Não será uma tarefa simples, contudo, haja vista tratar-se de uma prática recorrente e antiga: desde 2018, os municípios do Cariri contabilizam 27 registros oficiais de feminicídio. Antes disso, no começo do século, uma série de assassinatos cruéis cometidos contra mulheres por uma organização criminosa conhecida como “Escritório do Crime” projetou a violência de gênero da região para além dos limites territoriais, tornando-se objeto até mesmo de uma CPI.

A vendedora de joias Telma de Souza Lima, primeira vítima do Escritório do Crime, foi estuprada, amordaçada e estrangulada no dia 25 de maio de 2001. Ela mantinha um relacionamento amoroso com o líder da quadrilha e foi vítima de feminicídio em uma época na qual esse termo ainda não era reconhecido legalmente. Em pouco menos de um ano, entre maio de 2001 e março de 2002, mais seis mulheres foram assassinadas por motivos diversos, mas sempre com um elevado grau de perversidade.

Passados tantos anos, ainda existem processos judiciais inconclusos sobre os assassinatos. Enquanto os responsáveis permanecem impunes, as vítimas têm sua honra manchada postumamente por acusações de “conivência” com os próprios autores, em uma clara tentativa de torná-las culpadas pela violência que sofreram.

Qual o substrato psicológico e cultural que dá suporte a tantos casos de violência? Fiz essa pergunta à assistente social Emmanuelle Vasconcelos, coordenadora do Projeto das Marias – criado em 2020 pela Prefeitura de Juazeiro do Norte – que visa à mudança dessa realidade tão adversa.

Um dos eixos de atuação do projeto é voltado aos agressores: homens que respondem à Lei Maria da Penha participam de 10 sessões reflexivas como cumprimento de uma medida protetiva ou pena determinada pelo juiz. O perfil dos atendidos é diverso: há homens com graduação, especialização, sem estudo, com renda elevada e desempregado.

Em comum a todas essas trajetórias, destacam-se o ciúme e o sentimento de posse. “Em 90% dos casos que atendemos, os homens não estão mais com a mulher. Isso sinaliza que a violência vai acontecer justamente no momento de rompimento dessa relação conjugal e a não-aceitação disso. Foi justamente o que a gente viu na morte da vereadora aqui em Juazeiro do Norte. A violência afeta não só a mulher rica como a mulher pobre. Ela está entranhada e não distingue classe social”, revela a assistente social. 

Quando pergunto pela motivação de tais crimes, a resposta se torna mais complexa. De acordo com Emmanuelle Vasconcelos, os participantes do projeto não se entendem na condição de agressores e de terem praticado a violência. “Cerca de 90% dos homens atendidos não possuem antecedentes criminais. Eles não entendem o porquê de estar ali respondendo a uma situação de Lei Maria da Penha e não se veem na posição de praticantes da violência. Pelo contrário: eles se veem na condição de vítimas por diversos fatores”.

Essa falta de compreensão pode ser explicada pela diferenciação feita pelos agressores entre o crime comum e os atos de violência cometidos dentro de casa, vistos como algo natural. “A violência está de tão modo entranhada que eles não compreendem outros tipos de violência além da física. Muitos dizem que não bateram na mulher nem com uma flor, mas o histórico mostra que as violências eram cotidianas como xingamentos, violências psicológicas e o controle sobre os corpos das mulheres”, acrescenta.

A escuta dos agressores mostra o quanto o combate ao feminicídio é complexo. Sei de relatos de homens agressores que são cordatos e afetuosos no dia a dia. São pais de menina e, ainda assim, não pensam duas vezes na hora de agredir covardemente suas companheiras pelos motivos mais fúteis. Andam impunes pelos cantos, brincam carnaval e são ótimos colegas de trabalho. O agente da violência nem sempre é um monstro. É aí onde reside a maior dificuldade: como desnaturalizar práticas tão arraigadas, como fazer com que os sujeitos da violência se vejam como tais?        

Para além da repressão qualificada, é preciso haver uma campanha continuada de esclarecimento e formação sobre os diversos tipos de violência na sociedade. A misoginia tem de ser erradicada ainda cedo entre os meninos e as escolas possuem um papel fundamental nisso. Educar para a igualdade de gênero é tão importante quanto ensinar bem as demais disciplinas escolares. Essa é uma tarefa de nossa geração e, principalmente, de nós que somos homens. Não temos o direito de ser omissos.

Sobre a imagem. Foto de Lukas no Pexels: https://www.pexels.com/pt-br/foto/blazer-preto-masculino-652348/

Policial penal afirma que atual sistema prisional cearense está “adoecido”

Em vídeo, profissional relata o cotidiano no interior das unidades prisionais do Ceará a partir do que ocorre na Penitenciária Francisco Hélio Viana de Araújo (Pacatuba). Policial teme retaliações

Por Luiza Vieira, especial para o blog

Em vídeo publicado nesta última quinta-feira, dia 9, Marcos Teles, policial penal da penitenciária de Francisco Hélio Viana de Araújo, no município de Pacatuba, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), relatou as mudanças ocorridas dentro do sistema prisional nos últimos anos. Com o intuito de fazer com que as gravações chegassem às autoridades responsáveis pelo sistema, o policial gravou dois vídeos explicando as condições de trabalho dentro da unidade.

No vídeo, Marcos admite que a gravação surgiu a partir da necessidade de relatar para quem está de fora os fatos cotidianos que os policiais penais vivenciam. “O sistema está doente, nós estamos doentes. A maioria dos meus amigos toma remédio, eu tomo remédio. Adquiri uma diabetes mellitus tipo 2 muito pelo comportamento, alimentação e principalmente sedentarismo. Mas o que mais tem acabado com a gente é a ansiedade”, pontuou.

Na última terça-feira, 7, um ofício publicado e assinado por Carlos Alexandre Oliveira Leite, coordenador especial da Coordenadoria Especial de Administração Prisional (Coeap) determinou que “os policiais penais efetuem rondas minuciosas a cada hora no interior das alas verificando portas, cadeados e as condições no interior das celas da Unidade”. De acordo com Marcos Teles, a ordem do coordenador causou alvoroço entre os funcionários da Unidade e dos demais sistemas prisionais.

“Na minha Unidade, e nas que a gente tem contato, tá todo mundo doido sabendo como é que vai ser isso aí, de hora em hora dentro das celas, de dia e de noite”, disse. O policial afirma que, no patrulhamento realizado durante as manhãs, não são utilizadas armas letais. No entanto, com o decreto, as rondas noturnas exigem que os agentes utilizem armas com munições letais tais como pistolas e espingarda calibre 12 não letal.

O policial afirma que o secretário da Administração Penitenciária do Estado do Ceará, Mauro Albuquerque, e o coordenador da Coeap, Carlos Alexandre Oliveira Leite, têm cometido erros graves em relação aos direitos dos policiais penais da Unidade.
Marcos Teles explica que um roteador foi instalado na Unidade para facilitar o trabalho dos advogados do sistema, que realizam atividades jurídicas e necessitam da internet. Contudo, alguns “hackers” que cumpriam pena por esse tipo de crime, tiveram acesso à senha proxy- senha do servidor do Estado – viabilizando, dessa forma, o contato com os “parceiros do mundo externo”.

“Foi passado pela direção as pessoas responsáveis pelo ocorrido”, prosseguiu. “O chefe de equipe foi alertado e sabe o que ele fez? Cortou a internet de todos os guardas. Só funciona agora dentro do alojamento. Aí eu passo até três dias dentro da cadeia, sem dados móveis”, pontuou. Marcos Teles acredita que a senha do servidor foi compartilhada para que um interno realizasse o trabalho que, até então, era de responsabilidade da administração.

Além disso, outros benefícios ofertados aos policiais foram suspensos como, por exemplo, o cancelamento de uma oficina mecânica, construída pelos agentes, que permitia que os detentos profissionalizados consertassem os veículos dos policiais. “Esse diretor, o Darcio, por birra, cancelou esse serviço de reparo dos guardas. Só pode o carro dele agora para lavar ou fazer qualquer serviço”, denuncia.

Em novembro de 2021, a Unidade em que Teles atua foi local para um crime de assassinato. De acordo com o policial, um colega de profissão disparou 14 tiros contra um escrivão dentro do e, em seguida, cometeu suicídio. O Blog Escrivaninha abordou o episódio em uma série de reportagens sobre as más condições de trabalho dos policiais penais. Marcos afirma que, passado uma semana do ocorrido, o secretário encaminhou à Assembleia Legislativa do Ceará (ALCE) um documento de regime disciplinar que determina que os agentes que não cumprirem as ordens do sistema terão de ser penalizados.

O policial encaminhou ao deputado Sargento Reginauro (União Brasil) um projeto que prevê uma gratificação para o Grupo de Apoio Penitenciário (GAP) semelhante à remuneração oferecida às demais corporações. “Não custa nada reconhecer o trabalho da gente. Cada um no seu quadrado: a Polícia Militar prende, a Polícia Civil faz o inquérito e manda pra Justiça, mas quem fica com os presos 24 horas por dia somos nós”, expressou.

Quando questionado por Marcos sobre o assunto, o secretário da Administração Penitenciária do Estado do Ceará, Mauro Albuquerque, teria afirmado que solicitou a apuração dos ocorridos e dos benefícios extras. Mauro não comentou sobre esse pedido até a publicação desta matéria.

Novo vídeo

Um dia depois da publicação do primeiro vídeo, Marcos divulgou uma segunda gravação (ver abaixo) em que declara que as modificações no sistema prisional tiveram início no ano de 2019 logo quando Mauro Albuquerque assumiu o posto de secretário da Administração Penitenciária do Estado do Ceará.

O policial afirma que, em meados de 2019, Albuquerque providenciou o fechamento de 134 cadeias públicas do interior do Estado e, em seguida, determinou a depredação das Unidades. “Chegavam caminhões para retirar as grades e os materiais. O intuito era nunca mais utilizá-las. Era um direito da família do preso e do preso estar perto da família para cumprir a pena”. Teles acrescentou que 30 ou 40 unidades estavam preservadas e comparou que, em algumas, “as cadeiras, os monitores e computadores eram melhores que os da Universidade de Fortaleza (Unifor)”.

De acordo com o relato do policial, foi oferecida assistência necessária para que as cadeias não fossem fechadas. No entanto, o secretário e o coordenador teriam desconsiderado o apoio e fechado as Unidades.

Armas de fogo em mãos de CACs no Ceará e Piauí aumentam 187% em cinco anos

O esforço governamental, durante todo esse tempo, deu-se precisamente em desmontar o Estatuto do Desarmamento da forma como pode, atendendo a uma reivindicação da indústria de armamentos. Em nível nacional, os CACs passaram a ter 42,5% do total de armas particulares no país. Em 2018, esse percentual era de 27%.

Por Ricardo Moura

Dados obtidos pelos institutos Sou da Paz e Igarapé, a partir da Lei de Acesso à Informação (LAI), revelam que, entre 2018 e 2022, a posse de armas de fogo nas mãos de caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs) aumentou 187% nos estados do Ceará e no Piauí. 

O registro dos armamentos é feito pela 10ª Região Militar, que abrange o Ceará e o Piauí. Por essa razão, não é possível obter o resultado individualizado. Em 2018, havia 12.126 armas de fogos em poder dos CACs nesses dois estados. Em 2022, esse número saltou para 34.647. 

A quantidade de armas em acervos particulares no país é estimada em cerca de 3 milhões. Em relação aos números nacionais, é possível observar que houve uma mudança no perfil dos registros. De acordo com o Instituto Sou da Paz, em 2018, quase metade do acervo de armas pessoais então existente pertencia a membros de instituições militares (47%). O restante do acervo particular era praticamente dividido entre os registros na Polícia Federal (de armas pertencentes a servidores civis, cidadãos comuns com registro para defesa pessoal e caçadores de subsistência – com 26%) e registros pertencentes a CACs (27%). 

Ao longo dos últimos quatro anos, essa proporção se inverteu com o crescimento da categoria de CACs, que passou a ter 42,5% do total de armas particulares no país, em 2022. Ainda segundo o instituto, isso é “um efeito imediato do descontrole promovido pelos mais de 40 atos infralegais – decretos, portarias e instruções normativas – publicados entre 2019 e 2022, quase todos regredindo em controles até então vigentes”. Por causa disso, os CACs foram a categoria mais beneficiada por essas mudanças, como a facilitação do porte municiado, o acesso a armas mais potentes e em grande quantidade.

Impactos do incremento do número de armas na população

Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, aponta possíveis cenários diante dessa quantidade de armas de fogo em posse de CACs: “O primeiro é a alta quantidade de pessoas armadas e isso incentiva a reação a crimes, como temos visto ao longo dos últimos quatro anos. É muito raro que essa reação seja bem sucedida. A maioria dos policiais morre na folga quando tenta reagir a um crime. Temos visto também muitos casos em que as casas são alvo de roubos, de furtos ou em que a pessoa justamente no momento tenta reagir, não consegue, e acaba perdendo a sua arma.

E acrescenta: “Então existem esses desvios não intencionais e, por fim, temos os desvios intencionais. A gente também tem visto em todos os estados do país uma série de casos de pessoas que emprestam, vendem seu nome como laranjas para fornecer armas ao crime organizado. A quantidade de armas por pessoa e o tipo de armas autorizado ao longo dos últimos quatro anos é um fator de muita preocupação porque essas quantidades são completamente descabidas. Por fim, há ainda a possibilidade de aumento de mortes por suicídios e de acidente tanto com os próprios proprietários quanto com crianças e adolescentes e outras pessoas que venham acessar essas armas dentro de casa”.

Privatização da segurança pelo Governo Federal

Como escrevi anteriormente, “nos últimos quatro anos, o Governo Federal promoveu um verdadeiro desinvestimento na área da segurança, que cada vez mais perde sua conotação de ‘pública’ para se tornar terceirizada (…) O esforço governamental, durante todo esse tempo, deu-se precisamente em desmontar o Estatuto do Desarmamento da forma como pode, atendendo a uma reivindicação da indústria de armamentos não só nacional, mas também internacional, diga-se de passagem.
A licença para aquisição de armas de fogo bate recordes ano após ano. O controle estatal sobre a circulação dos armamentos, por sua vez, foi afrouxado por decretos e mais decretos. O mercadão da morte nunca esteve tão aquecido beneficiando até mesmo as organizações criminosas que veem um cenário repleto de facilidades para obter os armamentos desejados”.

(Com informações da assessoria de comunicação do Instituto Sou da Paz)

Sobre a imagem. Foto com acesso gratuito pela Unsplash.

Morte de Tico da Maraponga completa 9 anos sem punição dos culpados

De acordo com informações de moradores, o pedreiro foi abordado por policiais do Ronda do Quarteirão e levado a um matagal, onde foi agredido até a morte. Policiais militares acusados pelo crime foram absolvidos. Família busca anulação do julgamento para que os assassinos de Tico possam ser conhecidos e responsabilizados.

Por Luiza Vieira, especial para o blog

Completam-se nesta segunda-feira, 13, nove anos do assassinato de “Tico da Maraponga”. O pedreiro Francisco Ricardo Costa de Sousa morreu quando estava a caminho da casa de sua mãe, no bairro Maraponga, em Fortaleza. De acordo com informações de moradores, Tico, como era conhecido, foi abordado por policiais militares do Ronda do Quarteirão e levado a um matagal, onde foi agredido até a morte. Após ser encontrado em estado grave, vizinhos acionaram a polícia. A população denuncia, contudo, que os policiais que socorreram a vítima seriam os próprios autores do crime. Um ônibus foi incinerado em protesto pelo acontecido.

A irmã de Ricardo, Antônia Costa, relata que Tico, antes de morrer, pediu às pessoas que o socorreram que chamasse apenas a família e não a polícia. Três PMs foram investigados e denunciados pelo assassinato do pedreiro. Eles, contudo, foram absolvidos pelo Tribunal do Júri. A defesa dos policiais afirmou que havia duas viaturas no local, não podendo ser possível identificar qual teria envolvimento com o ocorrido. O argumento causou indecisão no corpo de jurados que decidiu absolver os suspeitos.

A família pediu para recorrer da sentença de absolvição no Tribunal de Justiça (TJ), mas não obteve sucesso. O processo chegou a ser analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas a decisão foi mantida. Conforme o ministro do STJ responsável pelo julgamento, a negativa de autoria “encontra respaldo nos interrogatórios dos réus, tendo o Conselho de Sentença optado pela tese que mais lhe pareceu verossímil, rejeitando, com isso, a versão acusatória”.

“Eles (policiais) foram inocentados porque havia duas versões dos fatos. Daí a gente encaminhou o caso para a segunda instância, mas até agora não houve justiça. Eles não estão presos e já estão trabalhando de novo na polícia, enquanto a gente continua nessa luta por justiça”, desabafou a irmã.

Antônia revela que a família solicitou a anulação do julgamento para que outra investigação fosse realizada. No entanto, o pedido foi negado pela Justiça, haja vista que não havia novas provas do acontecimento.

Mulheres de detentos cobram retorno de visitas íntimas no sistema prisional

As visitas íntimas foram suspensas no ano de 2018 e desde então famílias exigem o retorno. Débora (nome fictício), esposa de um interno, afirma que a suspensão das visitas afeta diretamente o relacionamento da família e acrescenta que algumas mudanças no horário da visita e na alimentação dos detentos deveriam ser realizadas. Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária informou que essa prática está prevista como regalia não sendo obrigatória na Lei de Execução Penal.

Por Luiza Vieira, especial para o blog

Em dezembro de 2021, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), em conjunto com o Ministério de Justiça e Segurança Pública (MJSP), estabeleceu novas normas relacionadas às visitas íntimas nos sistemas prisionais. O texto contido no Diário Oficial da União (DOU) explica que a visita conjugal fica restrita à comprovação de casamento ou união estável entre as partes, ou por meio de declaração firmada pelo casal. No entanto, um ano após a publicação, o retorno das visitas continua sendo exigido pelos internos e por suas parceiras.

De acordo com Aline Miranda, defensora pública e professora universitária, a suspensão dessas visitas afeta diretamente a estrutura familiar: “Os danos são inicialmente de ordem emocional e psicológica, muitas vezes interferindo na manutenção dos laços familiares, implicando em adoecimento emocional. Isso pode dificultar o processo de ressocialização, haja vista que a família é o primeiro núcleo social no qual somos inseridos”, afirma. 

A defensora explicou que o motivo de resistência para regulamentação das visitas íntimas no Sistema Prisional cearense se dá em virtude de um caso de estupro no dia de visitação nos presídios. “Esse acontecimento em específico “não é em razão de casos pontuais e se não se deve retirar o direito de todos os presos, e sim, o Estado ser capaz de garantir esse direito como regra”, explica. 

O caso citado aconteceu no ano de 2018, no Centro de Execução Penal e Integração Social Vasco Damasceno Weyne (Cepis), em que uma criança de 11 anos foi estuprada por um preso durante o horário de visitas. Ela estava com a mãe e visitava o pai, que está recolhido na unidade prisional. Durante a visita, porém, um detento levou a menina para dentro de um compartimento do presídio e a estuprou. Após ser encontrada por agentes penitenciários, a vítima passou por exames médicos e periciais que comprovaram o abuso.

Comunicação dentro do sistema prisional

Em cartas enviadas às famílias, os detentos relatam a mudança no cenário prisional após a posse do secretário de Administração Penitenciária Mário Albuquerque. Os textos expõem os maus-tratos sofridos pelos internos durante os últimos quatro anos e reforçam a necessidade do retorno das visitas íntimas. “Sabemos que o secretário Mauro Albuquerque sempre frisa a ressocialização, porém, como nós internos podemos nos regenerar se sofremos vários tipos de abusos?”, questionam. 

A comunicação interna nas prisões é realizada por meio de bilhetes, intitulados pelos detentos como “catatau”. De acordo com Izabel Accioly, mestra em antropologia social pela UFSCar, é proibida a entrada de papéis e canetas dentro dos presídios do Estado. No entanto, os detentos utilizam o “catatau” como alternativa de comunicação entre eles e o corpo de trabalhadores da instituição.

A antropóloga realizou uma pesquisa sobre a escrita de pessoas encarceradas na CPPL 3, em Itaitinga, e a partir disso, foi observado que os internos utilizavam tampa de marmita, papel higiênico e embalagem de medicamentos como papel. “Os bilhetes que circulavam nas prisões incluíam pedidos como compra de comida, atendimento médico, compra de remédios e ligações. E, além do catatau, existem outros tipos de escrita, como por exemplo os fanzines. Esse tipo de escrita iniciou nas prisões em 2002, é uma espécie de revista artesanal”, pontuou. 

Débora (nome fictício), esposa de um interno, afirma que a suspensão das visitas afeta diretamente o relacionamento da família e acrescenta que algumas mudanças no horário da visita e na alimentação dos detentos deveriam ser realizadas. “Queremos visita íntima porque é um direito dos presos, e nós, da família, desejamos o aumento dos horários de visita. Além disso, é necessário que permitam o ingresso de comida para os internos, pois durante a visita só é permitido levar quatro sanduíches”, relatou. 

Outro lado

Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária informou que as chamadas “visitas íntimas” estão previstas como regalias não sendo obrigatórias na Lei de Execução Penal. A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) também alega que as novas normas da resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária estabelecem a obrigatoriedade de espaços apropriados para manter a privacidade e a preservação da intimidade do detento e de quem o visita. As normas servem para os presídios que desejam abrir essa concessão.

De acordo com a assessoria da SAP, no atual momento, as unidades priorizam seus esforços e recursos para ampliar as estruturas físicas de salas de aula e galpões para cursos de capacitação e atividades de trabalho, com o objetivo de promover a profissionalização e plena ressocialização dos detentos.

Sobre a imagem. Nas fotos, dois exemplos de “catataus” usados pelos detentos como uma forma de comunicação.

Como lidar com as vidas que não cabem em um podcast?

Pelo grau de recorrência com quem são vítimas, há um segmento social bastante amplo formado por pessoas cujas existências e mortes são tão comuns e previsíveis que o apelo dramático é quase inexistente. As vidas de tais pessoas importam, contudo, e sua proteção deve se tornar uma pauta para as políticas públicas.

Por Ricardo Moura

Os crimes reais estão na moda. Séries e podcasts retratam episódios que marcaram época por envolverem pessoas famosas ou abordar situações-limite, desafiando a imaginação e os graus do tolerável entre o público. No entanto, não se trata de uma novidade inaudita esse gosto pelo que há de mais mórbido e cruel na vida humana. 

Desde a época dos trovadores, a trajetória das pessoas enforcadas era retratada em verso e prosa para deleite da corte e dos plebeus. Os cordéis, por sua vez, foram um veículo privilegiado para a consolidação do imaginário dos cangaceiros entre os sertanejos.  Foge do escopo da coluna uma discussão mais tematizada sobre o que há de serviço de interesse público nessas novas produções e o que é mero sensacionalismo embalado numa roupagem mais moderna. 

Não sou o público desse tipo de produto. Me interessam justamente as pessoas que, pelo grau de recorrência com que são vítimas, não constituem um caso extraordinário de violência ou crime. Fazendo um paralelo com os locais ditos “instagramáveis”, que rendem boas fotos nas redes sociais, há milhares de histórias de vida que não são “podcastizáveis”, ou seja, suas existências e mortes são tão comuns e previsíveis que o apelo dramático é inexistente.

Trata-se de corpos que engrossam as estatísticas cotidianamente, mas que damos pouca ou nenhuma atenção. E aqui vale um spoiler: estamos cada vez nos importando menos com o destino de tais pessoas, haja vista a distância (geográfica, social, cultural) que nos separa delas. A classe média de Fortaleza, por exemplo, há muito tempo deixou de se apavorar. Destaco, a seguir, três segmentos da sociedade que costumam ser vítimas da violência letal, suas motivações possuem um entrelaçamento, mas cujas mortes não ganham a repercussão devida. 

No ano passado, 272 mulheres foram assassinadas no Estado. Nos 23 primeiros dias de janeiro de 2023, 21 mulheres foram assassinadas no Ceará. Esse número equivale a todo o mês de janeiro do ano passado. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) classifica em suas ocorrências diárias alguns desses homicídios como feminicídios. Na comparação entre esses dois períodos, janeiro/22 e janeiro/23, os casos saltaram de dois para seis na contagem oficial. Vale ressaltar que, por sua complexidade, os feminicídios existentes superam e muito os dados das estatísticas oficiais. 

Em Iguatu, na semana passada, um homem matou a ex-esposa e uma mulher com quem mantinha um relacionamento amoroso. O crime já foi registrado como um duplo feminicídio no portal da SSPDS, mas certamente há casos semelhantes entre as mulheres assassinadas este ano que não foram classificados sob essa tipificação penal. Cabe à investigação levantar as circunstâncias exatas em que as vítimas foram mortas. Traçar um diagnóstico preciso do problema é começar a resolvê-lo.

Dentro dessa perspectiva, de crimes motivados por ódio, um levantamento recente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelou que, em 2022, o Ceará tornou-se o segundo estado brasileiro em que mais se mataram pessoas trans, com 11 assassinatos. Em dados absolutos, os números se mantiveram na comparação com 2021.

Criada pela Lei Estadual 18.250, de 6 de dezembro de 2022, a Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou de Orientação Sexual (Decrim) precisa sair do papel. Compreender as causas e as motivações para esse ódio precisa estar na pauta não só dos órgãos governamentais como da própria sociedade. De onde vem tanta intolerância? Como ela se estrutura e se ramifica? 

Por fim, temos os homicídios juvenis, uma chaga social sem solução à vista. Conforme dados do Painel de Monitoramento de Homicídios do Comitê Cada Vida Importa, da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (ALCE), 412 adolescentes entre 10 e 19 anos foram assassinados no Estado, em 2022. Desse total, 41 eram adolescentes do sexo feminino, ou seja, cerca de 10%. Trata-se de um percentual bastante elevado sob qualquer perspectiva. São mortes causadas por conflito entre facções e pela misoginia. De muito novas, a dura lição aprendida é que a vida da mulher vale muito pouco em um mundo ainda tão machista.

Passou da hora de o Governo do Estado compreender esses três segmentos como um público prioritário das políticas de segurança pública em sua forma mais ampla: não se restringindo apenas à repressão qualificada, mas abarcando ainda políticas de prevenção e formação escolar. Misoginia e transfobia se aprendem em casa e na rua. E são exercidas por adolescentes que matam e morrem numa guerra insana. Cabe ao poder público prover uma formação que vise à promoção dos direitos humanos desde cedo. Construir uma cultura de paz e de tolerância: este é o nosso desafio para que um dia a violência letal esteja presente apenas em séries e podcasts de ficção em vez de uma realidade que se impõe a milhares de famílias. 

Mestre Nena: OAB pedirá afastamento cautelar dos PMs

Por Ricardo Moura

A comissão de Segurança Pública da OAB Ceará (OAB/CE) entrará com um requerimento solicitando o afastamento cautelar dos policiais militares envolvidos na abordagem violenta contra Mestre Nena e seus filhos, ocorrida no último dia 21, em Juazeiro do Norte. Familiares da vítima se reuniram na tarde desta sexta-feira, dia 27, com representantes das comissões de Segurança Pública, dos Direitos da Pessoa Idosa, de Promoção da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, na sede da entidade. O caso será acompanhado pelo Procuradoria da Ordem.
Francisco Gomes Novaes, o Mestre Nena, denunciou que tanto ele quanto os filhos foram agredidos por PMs. De acordo com o relato dele, três viaturas da Polícia Militares estavam na casa de um de seus filhos, na tarde do sábado, por causa de uma denúncia de que no local haveria drogas e armas de fogo. Nena afirma que um dos filhos foi agredido enquanto as filhas estavam trancadas para que não pudessem acompanhar a ação policial.
Em entrevista ao OPOVO, o mestre da cultura disse que tentou intervir. Um tiro foi disparado, ele caminhou em direção aos PMs e, então, começou a ser agredido. Um boletim de ocorrência foi feito, bem como o exame de corpo delito. A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) e a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) afirmaram estar acompanhando a investigação, devendo tomar as providências cabíveis.
Mestre Nena é considerado um Tesouro Vivo do Ceará pela Secretaria da Cultura. Ele é fundador do Bacamarteiros da Paz, grupo bacamarteiro bastante representativo do folclore nordestino. Há 50 anos ele dedica a vida à cultura popular.

Homicídios caem no segundo Governo Camilo; mortes por intervenção policial crescem

A curva de decréscimo nos homicídios registrada no governo Camilo Santana/Izolda Cela, contudo, não se desenhou linearmente, mas sim sob a forma de uma parábola, reforçando a ideia de que as estatísticas sobre criminalidade no Estado podem ser representadas como uma montanha-russa, com altos e baixos contrastantes.

Por Ricardo Moura

Em janeiro de 2019, escrevi uma coluna em que destacava um fato inédito no ciclo de governadores do Ceará das duas últimas décadas: pela primeira vez um governante encerrava seu mandato com números mais baixos de assassinatos na comparação com o ano anterior ao que assumiu. O feito coube a Camilo Santana (PT) que, à época, findou sua primeira temporada à frente do cargo com uma redução de 2% nos crimes violentos letais intencionais (CVLI), embora o patamar fosse bastante elevado, ou seja, acima dos quatro mil homicídios.

Sucedendo Camilo Santana no cargo, Izolda Cela concluiu o último ano do mandato com 2.970 homicídios, uma queda de 52% na comparação com 2018. No ano passado, nenhum mês superou a marca dos 300 assassinatos. A última vez em que isso ocorreu foi em setembro de 2021, quando o Estado contabilizou 301 crimes violentos letais intencionais.

Fechar uma gestão com índices de letalidade em queda é um resultado bastante positivo. Nesse quesito, o segundo mandato de Cid Gomes (2011-2014) ostenta uma marca negativa histórica. O pedetista deixou o governo com 42% de aumento no número de homicídios na comparação com o fim de seu primeiro mandato. É nesse período que os crimes violentos letais e intencionais atingiram um novo patamar, superando a barreira primeiramente de 3 mil e, logo em seguida, de 4 mil assassinatos por ano mesmo com todos os vultosos investimentos feitos na área.

A curva de decréscimo nos homicídios registrada no governo Camilo Santana/Izolda Cela, contudo, não se desenhou linearmente, mas sim sob a forma de uma parábola. Entre 2020 e 2021, no auge das medidas de isolamento social por causa da pandemia da Covid-19, os números de violência letal apresentaram uma escalada, reforçando a ideia de que as estatísticas sobre criminalidade no Estado podem ser representadas como uma montanha-russa, com altos e baixos contrastantes.

Em um cenário hipotético, sem a sombra do Coronavírus, possivelmente as mortes violentas seriam menores? Não podemos dizer ao certo. Como tudo em se tratando de segurança pública, as variáveis são imensas. Vale ressaltar que em fevereiro de 2020 o Ceará assistiu a uma greve de policiais militares que causou profundas repercussões nos índices de criminalidade. Teríamos um ano mais violento que o anterior, certamente, mas em que medida?

O segundo mandato de Camilo Santana foi marcado por uma mudança drástica na forma como o Governo do Estado passou a gerir o sistema prisional. Compreender as interrelações entre essa nova política e a dinâmica de redução dos homicídios é uma tarefa que ainda demanda ser cumprida. 

Dentre as explicações apresentadas pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) para os bons resultados, destacam-se os investimentos em inteligência tanto na Polícia Civil quanto na Coordenadoria de Inteligência. O próprio Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) teve seu efetivo reforçado, fazendo com que o número de prisões aumentasse na comparação com o ano anterior.

Em 2022, 655 pessoas foram presas em Fortaleza por algum tipo de envolvimento com assassinatos. A valorização do trabalho da polícia investigativa é um ponto constantemente ressaltado por esta coluna. Não deixa de ser um alento ver que os resultados começam a chegar.

Em contrapartida, as mortes por intervenção policial permanecem elevadas a despeito da queda nos índices de letalidade. Em 2022, o Ceará registrou 152 ocorrências desse tipo, sendo que o mês mais letal foi julho, com 22 óbitos. Esse número é o maior desde 2018, quando o Estado contabilizou 221 pessoas mortas durante ações policiais. A falta de informações sobre as circunstâncias de tais mortes é uma lacuna a ser preenchida.

Na semana passada, o governador Elmano de Freitas (PT) anunciou que câmeras corporais deverão ser acopladas nos uniformes de policiais militares e civis. A expectativa é que esses indicadores se reduzam, assim como ocorreu com a Polícia Militar de São Paulo. A maior transparência em tais episódios também é uma garantia aos próprios profissionais que, por vezes, são denunciados por crimes que não cometeram.

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A coluna de 2019 trazia como título “um fio de esperança”. Ao longo dos últimos quatro anos, vivemos diversas situações-limites em que esse sentimento era tudo o que nos restava. O ano novo se inicia com uma perspectiva mais animadora. Os desafios existem, são muitos, mas estamos mais fortes. Que o balanço do próximo ciclo de quatro anos seja ainda mais positivo. O Ceará merece.

Crédito da foto: Thiara Montefusco / Governo do Ceará.

A classe média desce ao inferno do sistema prisional

Detenções ocorridas contra os golpistas que vandalizaram a sede dos Três Poderes fizeram com que os “patriotas” revissem seus conceitos e se tornassem ferrenhos defensores dos direitos humanos. Mesma atitude não é vista em relação às mais de 661 mil pessoas que superlotam o sistema prisional brasileiro. Na comparação com o tratamento destinado cotidianamente aos encarcerados, pode se afirmar que os golpistas desfrutam de uma condição “premium”, embora essas medidas sejam previstas em lei para todos os cidadãos.

Por Ricardo Moura

A classe média brasileira costuma ser pródiga em adotar um discurso hiper punitivista como forma de solucionar todos os problemas de violência e da criminalidade no país. Vale ressaltar que os alvos dessa fúria justiceira são sempre os mesmos: pretos, pobres e periféricos. Os textos que escrevo acerca do sistema prisional sempre encontram comentários responsabilizando os detentos pela sua própria sorte e exigindo ainda mais punição para quem, por vezes, tem de pagar uma dupla pena na cadeia: a do crime cometido e a da violação de sua dignidade.

Embora tenham chegado muito tarde, as detenções ocorridas contra os golpistas que vandalizaram a sede dos Três Poderes fizeram com que os “patriotas” revissem seus conceitos e se tornassem ferrenhos defensores dos direitos humanos, artigo fundamental que quase sempre é negado para a imensa população. Cerca de 1,2 mil pessoas foram detidas, somando as que estavam nos locais dos ataques e as que se abrigaram no acampamento após o ato.

Conforme o ministro da Justiça Flávio Dino, os detidos passarão por uma espécie de triagem na Academia Nacional da Polícia Federal, onde serão identificados e ouvidos. De lá, poderão ser liberados ou seguir para a prisão. A “superlotação” na academia e uma suposta falta de alimentação foram motivos de queixa na segunda-feira passada, dia 9. “Estamos reféns desde as 7 da manhã”, bradou um dos golpistas. “Sem comida, sem água, estamos sendo humilhados”, comenta um dos detidos. Mesmo preso, outro homem foi flagrado insuflando novos ataques. Em dado momento, a notícia de que uma idosa teria morrido percorreu o local e foi repercutida nas redes. No entanto, a informação foi desmentida pouco tempo depois pela própria PF. 

Vale ressaltar que as “denúncias” foram realizadas de dentro do espaço de detenção por meio do uso de celulares. Até mesmo esse processo de triagem tornou-se objeto de espetacularização, marca da ação ocorrida no último domingo, que foi amplamente divulgada e transmitida pelas redes sociais, mas que, ainda assim, aconteceu de forma impassível sob os olhares da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).

O Brasil é um dos países que mais encarceram no mundo. Em 2022, pela primeira vez desde a redemocratização, a população carcerária recuou na comparação de um governo para outro. Mesmo assim, o número de encarcerados é bastante elevado: 661,9 mil pessoas. Em dezembro de 2018, último ano do Governo Temer, esse número era de 744,2 mil.

A escalada do número de presos se deu a partir de 2004, no primeiro mandato do Governo Lula, o que mostra que a solução mágica do encarceramento perpassa governos de esquerda e de direita. Quanto a essa questão paradoxal das gestões ditas “progressistas”, temos um exemplo muito concreto aqui no Ceará.  

No pouco tempo em que estão detidos, os golpistas tiveram um gosto do que é ser uma pessoa encarcerada no Brasil. E olhe que estamos falando de uma detenção temporária, com todas as garantias previstas, sem torturas e maus tratos. A atualização mais recente dá conta que 240 mulheres com filhos pequenos e pessoas idosas com comorbidade foram liberadas pela Polícia Federal. Na comparação com o tratamento destinado cotidianamente aos presos brasileiros, pode se afirmar que se trata de uma condição “premium”, embora essas medidas sejam previstas em lei para todos os cidadãos.

Seria ingênuo achar que essa breve estadia no “inferno” fará com que tais pessoas se sintam um pouco mais solidárias com a imensa quantidade de detentos que superlotam as prisões em todo o país. O sentimento de privilégio fala mais alto nesse momento. Da forma como todo o ataque foi conduzido, com direito à escolta da polícia e vista grossa das autoridades, é possível afirmar que a divisão entre os andares de cima e o de baixo persiste até mesmo em se tratando de vandalismo. Todos somos iguais perante a Lei, mas uns são mais que outros. A vidraça que ainda poderia manter a opacidade dessa condição de desigualdade foi completamente estilhaçada nesse domingo.

Sobre a imagem. A foto acima é um frame de uma transmissão por celular em que um golpista denuncia estar preso sem água e sem comida na academia da PF. “Estamos sendo humilhados”, lamenta.

Números de mortes no sistema prisional são divergentes, afirma defensora

Quantidade de óbitos no sistema prisional cearense é motivo de divergências entre a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) e dados tornados públicos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Solução do impasse passa pela maior transparência no processo de produção dos dados. Para tanto, a sociedade precisa estar mais a par do que acontece no interior das unidades prisionais. Para vice-presidente do Conselho Penitenciário, o principal desafio é reconstruir os canais de comunicação com a pasta

Por Luiza Vieira (especial para o blog) e Ricardo Moura

No dia de sua posse, o secretário Mauro Albuquerque afirmou que, em sua gestão à frente da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), os números de mortes nos presídios foram reduzidos, na comparação com as gestões anteriores. “Salvamos mais de 200 vidas”, disse em entrevista ao jornal OPOVO. Essa estatística, porém, choca-se com números apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anteriormente, de acordo com a defensora pública Aline Miranda. A declaração ocorreu durante uma live realizada na última quarta-feira, dia 4, no perfil do Blog Escrivaninha no Instagram.
De acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), somente em 2020 o Ceará registrou 266 óbitos no sistema prisional, mais de três vezes a média registrada entre os anos 2014 e 2019, que era de 92,4. O Estado chegou a ter a maior taxa de mortalidade nas prisões naquele ano: 741,6 por cem mil habitantes, conforme levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), enquanto a taxa média no Brasil alcançava o percentual de 177,5. Quase a totalidade das mortes registradas em 2020 no Ceará (86%) foram apontadas como tendo causa desconhecida.
“Com relação a essa grande transformação que teria ocorrido no sistema prisional, esses números são questionados porque os dados dos relatórios contrapõem a muitos dos dados apresentados. Nos anos anteriores o índice de mortes por facções era exorbitante, e frisaram que não haveria mais mortes por facções. No entanto, os dados apresentados apontam mais de 200 mortes no Sistema Prisional ao ano por causas não identificadas”, relatou a defensora que chegou a denominar esse descompasso nas informações como uma “realidade paralela”.
Presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-CE, Cláudio Justa cobrou mais transparência sobre o que acontece no sistema prisional cearense. “Houve uma luta para que o sistema penitenciário ganhasse maior visibilidade, visto que existe uma dualidade sobre o que é tolerável e intolerável dentro das Unidades Penitenciárias. Após Mauro Albuquerque assumir o cargo, houve um fechamento do sistema para o controle social público. Órgãos públicos detentores do poder judiciário, como o Ministério Público do Ceará, concordaram de alguma forma com essas práticas sob o argumento de que isso era necessário para a manutenção da ordem prisional e para a garantia da segurança pública”, afirmou.
Cláudio Justa alega que, dentre as consequências das práticas disciplinares realizadas nas Unidades, a superlotação nos presídios é tida hoje como a mais preocupante. Em decorrência do fechamento das cadeias públicas, houve a migração dos internos para outros equipamentos prisionais na Região Metropolitana de Fortaleza, argumenta. A possibilidade de uma discussão aberta sobre o Sistema Penitenciário e o livre acesso às Unidades Carcerárias são questões que podem ser melhoradas.
Nathan Benício, vice-presidente do Conselho Penitenciário do Ceará (Copen), afirma que o órgão recebe diariamente demandas dos familiares dos internos apresentando os problemas relacionados à superlotação e restrição de visitas sociais, por exemplo. Como encaminhamentos, o Copen utiliza os canais de comunicação disponíveis e apresenta à SAP todas essas denúncias. O advogado ressalta, contudo, que a relação entre ambas as instituições precisa ser solidificada.
“Com os canais disponíveis, oficiamos as demandas, informamos de forma verbal e tentamos conversar com os diretores das Unidades Prisionais. O Conselho faz o que está ao alcance para verificar o que está acontecendo e encontrar as soluções possíveis”, pontuou.
O vice-presidente mencionou que, hoje, o principal desafio do órgão é reconstruir os canais de comunicação com a SAP para que a segurança prisional não seja utilizada como argumento de restrição das visitas sociais, por exemplo.