Familiar e egresso relatam torturas e maus tratos nas prisões

O sistema penal costuma ser opaco para quem está de fora. Por isso, os relatos em primeira pessoa são importantes para que a sociedade possa conhecer a rotina e o cotidiano de quem cumpre pena nas unidades prisionais do Ceará. Durante uma live promovida pelo Blog Escrivaninha, mães e familiares pediram a palavra e foram ouvidas. O que elas têm a dizer é incômodo e desafiador. Do pagamento das próprias vestes dos presos a agressões gratuitas sob a alegação de um procedimento a ser cumprido. O sistema maltrata, humilha e revolta. É esse o modelo de ressocialização que queremos?

Por Luiza Vieira (especial para o blog) e Ricardo Moura

A live promovida pelo Blog Escrivaninha na última quarta-feira, dia 4, contou com uma inesperada participação de uma mãe de um detento e um egresso do sistema prisional cearense. Ambos relataram as agruras vividas pelos presidiários perante um cenário de violências institucionais, como torturas e maus tratos. As identidades serão preservadas por motivo de segurança.
Lúcia é mãe de um interno que cumpre pena no Interior do Estado. Ela alega ter sido barrada de ver o filho porque possui um processo em andamento na Justiça. Caso os detentos não sigam estritamente as ordens dos agentes, explica, eles são punidos com situações de extrema tortura.
“Os agentes dizem que quem manda lá (na penitenciária) são eles. Caso não sigam as regras impostas por eles, os detentos são enviados para o isolamento. Muitas vezes os internos têm de se sentar no chão quente, despidos e não podem se mexer. Caso haja algum movimento são punidos com açoites ou spray de pimenta”, comenta.
De acordo com seu depoimento, o dia a dia dos internos inicia logo cedo. Os que possuem condições de fazer um curso, fazem. No entanto, os que não dispõem dessa prerrogativa voltam para a cela. Depois voltam para a cela. Tem a rotina do alimento. Tem de comer tudo, não podendo deixar nada pra depois, se não vão para o isolamento e a tranca.
A mãe do interno menciona que os agentes não torturam os internos apenas fisicamente, mas psicologicamente. Por vezes eles procuram desestabilizar os detentos psicologicamente, utilizando palavras de baixo calão. “A lei do sistema é que a família é sagrada, mas eles tentam atingir os internos de qualquer maneira, fazendo diversas ofensas aos familiares como as mães e as esposas”, comentou.
No que diz respeito às visitas aos detentos, é solicitado que os visitantes levem consigo um “malote” contendo duas bermudas laranjas, duas cuecas brancas sem detalhe, duas camisas brancas sem detalhe, uma sandália, lençóis, produtos de higiene e um colchão.
“O malote é disponibilizado na entrada da penitenciária e custa em média 380, 400 reais. É muito caro. Muitas vezes deixamos de comer para comprar um malote, e quando eles (agentes) não querem simplesmente jogam no lixo”, comenta.
Lúcia alega que o Sistema Carcerário está superlotado, e isso ocorre devido às punições realizadas pelos agentes, resultando na transferência dos detentos da Capital para o Interior e vice-versa. “Quando os internos tentam revidar as badernas que os agentes iniciam são transferidos para outra Unidade. Muitos detentos de Fortaleza vieram do Interior como forma de punição. Ano passado foram encaminhados 20 internos para Fortaleza enquanto os familiares moram no Interior. Aqui não tem um albergue para abrigar as famílias, precisamos nos virar para poder visitá-los”, finalizou.
Nathan Benício, vice-presidente do Conselho Penitenciário do Ceará (Copen), afirma que as denúncias relacionadas ao desperdício dos malotes são postas em relatórios e encaminhadas pelo Conselho à SAP, solicitando o direito a uma devolutiva dos produtos. Segundo ele, a situação foi apresentada aos membros da secretaria que teriam exibidos reações de surpresa com esse cenário. “Nós apresentamos isso em reunião e o secretário ficou surpreso, parecendo não ter conhecimento desses pormenores. Ele mencionou que não deve haver critérios diferentes para cada Unidade, mas aparentemente isso não se resolveu, então vamos continuar lutando para que se resolva”, argumenta.

Revolta e agressões

Marcos, egresso do Sistema Penitenciário, descreveu na live um pouco do que viveu durante os seis meses em que esteve cumprindo detenção. Ele relata que, após ser liberado pela Delegacia de Capturas (Decap), o preso é encaminhado para a Unidade Prisional de Triagem e Observação Criminológica (CTOC), um centro de triagem onde são feitos exames e traçado um perfil criminológico antes do interno ser encaminhado a uma das unidades prisionais do Estado.
“Lá fizemos aquele procedimento de raspar a cabeça e tirar a barba. Na hora do banho de sol eles chamam X1, X2, que se refere ao número das celas, mas como não entendemos o que aquilo significa, fazemos da forma errada, então eles nos batem. Primeiro eles nos batem, depois eles ensinam como é o procedimento”,relatou.
O ex-detento mencionou que o banho de sol é realizado ao longo da manhã, por volta das onze horas. O procedimento consiste em sair da cela sem roupa e mãos na cabeça, e caso o interno cubra as partes íntimas é punido violentamente. A saúde também é um ponto a ser discutido, visto que os detentos não recebem medicação caso solicitem. O egresso afirma que as pressões psicológicas e punições são recorrentes. “Teve uma semana que fiquei sem receber o malote porque estava organizado da maneira errada, a certa seria: a toalha, as camisas, o calção e as cuecas, nessa sequência. Passei 15 dias sem nada, acho uma falta de respeito com a família, que trabalha muito pra comprar o malote, paga uber, paga ônibus”, ponderou.
Socos na costela, banhos de sol com os joelhos no chão quente e presos nus em celas seriam situações existentes em tais locais. “A gente passa por um sofrimento. Um dia eu apanhei porque coloquei as mãos na cabeça e não cruzei os dedos. Eles deram cinco, seis lapadas na minha mão porque eu não estava com os dedos cruzados com uma tonfa. Isso é uma coisa que deixa a pessoa revoltado. Se não tiver o psicológico bom, a pessoa já chega doida na unidade”, descreve. Marcos afirma que os internos são coagidos para não denunciarem as punições e torturas sofridas nas prisões.
Sobre o funcionamento das facções no Sistema Prisional, Marcos revela que, no momento da triagem, o interno é questionado se é ou não faccionado. Se não integrar uma facção, é considerado “massa carcerária, não faccionada”. “Se você não fizer parte de nenhuma facção você faz parte da massa carcerária. O certo seria ir para uma cela onde não tem faccionados, mas eles colocam você com todo mundo por um certo tempo, Comando Vermelho, Guardiães do Estado (GDE) e massa carcerária. Logo após, fui transferido para a Pacatuba, onde só tem massa carcerária, sem faccionados”, informou.
As declarações do egresso relataram que a rivalidade entre membros da facções é amenizada no interior das unidades prisionais, pois, segundo ele, a violência partiria principalmente dos próprios agentes penitenciários.

Serviço:
Sede do Conselho Penitenciário do Ceará- Rua Tenente Benévolo n° 1055
Horário de atendimento- todos os dias úteis das 8h às 17h

OAB-CE requer investigação sobre ataques contra defensora pública

Após tecer críticas à atual gestão da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) em seu perfil no Instagram, a defensora pública Aline Miranda passou a ser alvo de ataques virtuais. Requerimento da OAB-CE aponta evidências de assédio moral virtual contra a profissional e afirma que agentes públicos envolvidos no caso devam ser devidamente identificados e responsabilizados pelos atos praticados.

Por Ricardo Moura

A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Ceará (OAB-CE) formulou requerimento à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) para instauração de procedimento com o intuito de apurar as responsabilidades sobre os ataques virtuais cometidos, semana passada, contra a defensora pública Aline Lima de Paula Miranda. As agressões ocorreram após a defensora replicar uma nota de repúdio e fazer críticas sobre a atual gestão da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) na rede social dela.

De acordo com o requerimento, “em razão das suas postagens e denúncias em face da atual administração da SAP, a Defensora em questão passou a ser alvo de ataques violentos e invasões virtuais, estes perpetrados por diversos agentes públicos, de forma orquestrada, articulada, com claro propósito intimidatório. Caso evidente de assédio moral virtual praticado por servidores públicos”.

E o documento acrescenta: “É justamente por meio da manifestação de pensamento que a sociedade demonstra seus anseios e necessidades ao Estado. Por isso, o exercício de tal direito é a verdadeira afirmação do Estado Democrático de Direito […] se requer a apuração dos ataques e invasões virtuais que vêm sendo perpetradas por agentes públicos em desfavor da defensora pública, a fim de que sejam devidamente identificados e responsabilizados pelos atos praticados”.

Assinam o requerimento o presidente da OAB-CE, José Erinaldo Dantas Filhos, e os presidentes das seguintes comissões temáticas da entidade: Mulher Advogada, Direito Penitenciário, Direitos Humanos, Segurança Pública e Promoção Da Igualdade Racial.

Violência das facções desafia profissionais da Saúde no Interior do Ceará

Ameaças, agressões e traumas fazem parte do cotidiano de profissionais da atenção básica. Como é possível promover saúde mental por meio dos equipamentos de saúde se os próprios profissionais se sentem vítimas da mesma violência que adoece seus pacientes? A psicóloga e antropóloga Alana Ávila aborda essa questão que teima em perpassar sua pesquisa do doutorado.

Por Alana Aragão Ávila

Logo nos primeiros minutos de conversa, Paulo (os nomes dos entrevistados são fictícios por questão de segurança) me fala sobre o episódio de violência do qual foi vítima enquanto desempenhava seu trabalho. Atuando como Agente Comunitário de Saúde (ACS) em uma localidade rural com menos de dois mil habitantes no Interior do Ceará, Paulo se viu rendido por assaltantes armados quando realizava uma visita domiciliar. Durante o relato, o agente assegurou que não levaram nada dele pois nunca sai para as visitas portando carteira ou celular, justamente por saber dos perigos que podem existir nos caminhos que percorre. O resultado do ocorrido, além de Paulo ter uma arma apontada para a cabeça, foi que a família que ele foi visitar, composta por dois idosos, resolveu se mudar da localidade. A ideia seria que na sede do município se correria menos riscos, mas não é bem isso que os relatos de outros profissionais sugerem.

Em uma cidade do interior do Ceará, cujo nome o Blog preserva, há tempos não se ouve falar em brigas de gangues. Ao contrário do que acontecia nos anos 90 e começo dos anos 2000, as ocorrências locais não são mais disputas entre traficantes de pequeno porte, tampouco se concentram em bairros estritamente periféricos e de baixa renda. Agora o falatório é em tom de voz baixo, com receio de ser ouvido por qualquer um: “as facções estão tomando de conta”. Com o crime organizado, vieram a insegurança e a violência que atravessam ambientes familiares, comunitários e os próprios equipamentos de saúde do município.

A mudança no tom de voz entre os profissionais de saúde é clara quando se entra na discussão do tema da violência e de como ela surge no ambiente de trabalho. Se em algum momento poderia se pensar que apenas profissionais da urgência ficariam cara a cara com os efeitos imediatos da violência, como no tratamento de pessoas vítimas de arma de fogo, percebe-se que os produtos da violência têm penetrado nos mais diversos níveis de atenção à saúde.

Frustração e naturalização da violência

Natan, formado em medicina há menos de um ano, relata a experiência de atender em um Centro de Saúde da Família (CSF) de um bairro predominantemente de classe popular. Diz que chega ao trabalho e já entra em sua sala pois não quer ficar sendo abordado pelos pacientes que se irritam com a demora na espera pelas consultas. A frustração da população, seja pela demora ou porque são encaminhados para a enfermeira ao invés de para o médico, acaba sendo descontada nos funcionários que ficam na recepção e na triagem da unidade de saúde. Não raro ocorrem discussões e os ânimos se inflamam.

Ainda assim, Natan não fica ileso dentro do consultório. Relatando a angústia de acompanhar demandas de pacientes com questões de saúde mental, o médico fala de pacientes que estão envolvidos em situações de violência, seja a de ter algum familiar jurado de morte por envolvimento com facções, seja através de mulheres que são espancadas e violentadas sexualmente pelos companheiros após os agressores realizarem uso de entorpecentes.

Não falamos de nomes, endereços ou coisas que o valha. A não identificação protege Natan, as vítimas e a mim. Natan reconhece os sinais e conta espantado da naturalidade com que as histórias chegam até sua sala: “Teve uma que levou uma martelada na cabeça e contou a história rindo, como se fosse uma coisa normal”. As formas do discurso naturalizado contrastam com os sintomas do sofrimento mental. Há casos que o corpo desmente a fala. Natan diz não ter sido preparado na faculdade para lidar com esse tipo de situação. O máximo que ele pode fazer é prescrever algum psicotrópico.

Ameaças e traumas são uma constante

Maria Lúcia atua há 13 anos como ACS em um território que mescla a classe média com a popular. Apesar de morar no local, ela não tem confiança para circular em qualquer espaço. Ainda assim, a proximidade com os moradores auxilia seu trabalho por formas não previstas na cartilha do SUS. Revela que antes de fazer visitas domiciliares ela liga para o usuário do CSF a fim de agendar o encontro. É preciso avisar que ela vai circular no território e receber uma autorização. Apesar do cuidado, revela que já recebeu ligações de terceiros avisando para que ela suspendesse a visita naquele dia. Tensões no bairro ou avisos do gênero “não vem porque o neto dela tá usando droga desde cedo na calçada”. Maria Lúcia não vai. Refaz os planos, mas sabe que outro dia ela vai ter de ir até lá. Existem metas de visitação a serem cumpridas.

Quando questionados sobre os casos de demanda por cuidado em saúde mental, os profissionais da saúde fazem coro ao enfatizar o aumento exponencial nos últimos anos. A violência, a pandemia, o desemprego, o empobrecimento… Entre os próprios profissionais existem casos de afastamento do trabalho ou mesmo início de acompanhamento psicológico e psiquiátrico medicamentoso por questões disparadas no próprio processo de trabalho.

Monique, cirurgiã-dentista em um CSF, conta de uma colega que após um caso de violência – um paciente tentou arrombar a porta da sala irritado pela espera – passou a realizar acompanhamento psicológico para lidar com o trauma. Sem apoio específico do município para o cuidado em saúde mental para os profissionais, a colega de Monique buscou atendimento em clínica particular. Ela tem de voltar diariamente ao local do trauma pois, ao contrário de colegas que passaram por situações parecidas, optou por não abandonar o contrato de trabalho.

Quem cuida dos cuidadores?

Em um momento em que se discute a retomada de uma agenda na saúde ancorada nos princípios da Reforma Psiquiátrica e na necessidade de suporte à saúde mental da população, cabe pensar ainda os limites da atuação dos profissionais da Atenção Básica nesta seara. Como é possível promover saúde mental por meio dos equipamentos de saúde se os próprios profissionais se sentem vítimas da mesma violência que adoece seus pacientes? Como descentralizar o cuidado, promovendo uma visão integral em saúde, se os profissionais quando vão fazer atividades dentro da comunidade correm o risco de ter que se esconder em casas alheias para fugir de tiroteios?

É preciso considerar que o cuidado em saúde tem de ser feito de forma integrada e que isso passa também por questões de segurança e lazer. De que adianta indicar a realização de atividades físicas ao ar livre se a circulação entre os bairros é limitada por conflitos fruto do tráfico? Como pensar promoção de saúde mental se os próprios promotores são ameaçados dentro do ambiente de trabalho?

Em seu discurso de posse como nova ministra da saúde, a Dra. Nísia Trindade lembrou que é preciso considerar os determinantes sociais e ambientais envolvidos no processo saúde-doença. Assim, se buscamos a expansão do cuidado em saúde mental, com o fortalecimento das redes de saúde para além dos grandes centros urbanos, é preciso considerar os efeitos da expansão da violência nos territórios. Sem um planejamento que envolva os diversos setores da governança – desde a cultura até à segurança – torna-se uma missão quase impossível a promoção de saúde mental para usuários e profissionais do SUS. Reconhecer o problema, ouvir os profissionais, conhecer os espaços: tudo é parte de uma agenda necessária para o fortalecimento não só do apoio em saúde mental, mas da promoção de uma cidadania plena para profissionais e usuários.

Imagens: Arquivo pessoal da autora.

Alana Aragão Ávila

Psicóloga CRP 12/21661. Doutoranda e mestra em Antropologia Social (UFSC). Bacharela em Psicologia (UFC). Pesquisadora vinculada ao Coletivo de Estudos em Ambientes, Percepções e Práticas (CANOA/UFSC). E-mail: alanaavila01@yahoo.com.br

Elmano opta pelo mais do mesmo na área da segurança pública

As primeiras medidas de Elmano de Freitas foram uma ducha de água fria para muitos apoiadores e para quem acreditou que o paradigma tradicional da segurança pública pudesse ser alterado. O que se viu foi muito pragmatismo na escolha dos secretário da Segurança Pública e da Administração Penitenciária.

Por Ricardo Moura

É uma prática corrente que os governantes adotem as medidas mais radicais ou duras logo no início de seus mandatos, aproveitando a euforia da vitória e a boa vontade do eleitorado com quem chega ao poder. Elmano de Freitas, governador do Ceará, perdeu a oportunidade de deixar sua marca na escolha dos dois principais nomes da área da segurança pública ao dar continuidade ao que Camilo Santana fizera no cargo.

O delegado federal Samuel Elânio, que ocupava a secretaria-executiva da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), assumiu a vaga deixada em aberto pelo delegado federal Sandro Caron, que assumiu a Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul. Conhecedor dos meandros da máquina, Samuel Elânio certamente não é uma má escolha, mas também passa longe da ousadia.

Em Pernambuco, estado vizinho ao nosso, a governadora Raquel Lyra (PSDB) nomeou a primeira mulher a conduzir a Secretaria da Defesa Social, nome dado à secretaria da segurança pública de lá. A delegada federal Carla Patrícia Cunha, com mais de 20 anos de atuação profissional, já foi superintendente da Polícia Federal, atuou na Corregedoria e atualmente é doutoranda do curso de Engenharia de Produção.  

Dias antes do anúncio oficial, chegou-se a especular que o Ceará poderia ter uma mulher à frente da SSPDS. Nomes excelentes na Polícia Civil do Estado não faltam. Mudar a lógica das políticas públicas de segurança, sinalizar que a nova gestão seria diferente, rever a mesma prática governamental de indicar delegados federais ao cargo. Todas essas perspectivas foram deixadas de lado em nome da manutenção do que já vinha sendo feito. 

Ainda que não fosse uma delegada, por que não nomear para o cargo um delegado da Polícia Civil, com conhecimento aprofundado sobre a dinâmica dos homicídios e do crime organizado, ou seja, um profissional de ponta, que conhece a rotina da atividade policial em seus pormenores? Fica a sugestão para uma próxima. 

Se o governador pode usar o argumento inexato de que “em time que está ganhando não se mexe” para justificar a escolha do novo secretário da Segurança Pública, a mesma alegação merece ressalvas em se tratando da recondução de Mauro Albuquerque à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). A vinda do secretário, no começo de 2019, atendia a uma situação de descalabro no sistema penal. Sua chegada foi recebida com protestos e ataques de organizações criminosas.

O choque de gestão da nova secretaria permitiu que os presídios pudessem ser geridos com maior controle por parte do Estado. A comunicação foi restringida e os detentos passaram a cumprir rotinas disciplinares que limitavam sua autonomia no interior das unidades penais. No entanto, juntamente com a doutrina do procedimento vieram as primeiras denúncias de torturas e maus tratos. 

Os casos, à época, nem chegaram a arranhar a popularidade de Mauro Albuquerque, um nome que, como já disse anteriormente nesta coluna, poderia ser reconduzido ao cargo por qualquer um dos principais candidatos ao Governo do Estado. Em setembro, em plena campanha eleitoral, policiais penais e um diretor de presídio foram denunciados por torturas contra os encarcerados. Contudo, as denúncias permaneceram e nada de muito drástico foi feito por parte de quem ocupava o Palácio da Abolição. 

Como saber a extensão de tais práticas? São casos isolados ou atos sistemáticos? Qual o grau de responsabilidade do secretário sobre tudo isso? Será que não é possível manter a disciplina sem violação de direitos no Estado do Ceará? São perguntas ainda sem respostas que nem mesmo os candidatos quiseram se aprofundar. 

Para quem acha que criticar a gestão da SAP é “defender bandido”, o sindicato dos policiais penais vem denunciando desde o ano passado as más condições enfrentadas pelos profissionais, que teriam resultado até mesmo em diversos casos de suicídios. Os agentes alegam que as mudanças na gestão penitenciária geraram acúmulo de atividades e condições insalubres de trabalho, resultando em adoecimentos. 

Elmano se elegeu sob a égide de um defensor dos movimentos sociais, sendo até atacado durante a campanha eleitoral por causa disso. A decisão de manter Mauro Albuquerque gerou críticas entre a sociedade civil. Uma nota de repúdio assinada por 64 entidades nacionais e estaduais tornou-se pública. Em um dos trechos, os signatários afirmam: “Nós que votamos e apoiamos o novo Governador estamos decepcionados […] Tínhamos a expectativa de que haveria mudança […] Imaginávamos que seríamos ouvidos e que nossa voz seria levada em consideração pelo novo Governo, já que o atual tampouco deu relevância a essas denúncias. Estávamos errados”.

As primeiras medidas de Elmano de Freitas foram uma ducha de água fria para muitos apoiadores e para quem acreditou que o paradigma tradicional da segurança pública pudesse ser alterado. O que se viu foi muito pragmatismo. Ser um governador “progressista” não é apenas fazer a política do possível, mas sim ousar, provocar mudanças no cerne do que há de mais reacionário na sociedade. O governo está só começando. Que tenhamos boas surpresas pela frente. 

Sobre a imagem. Equidade de gênero no secretariado, pragmatismo nas escolhas da área da segurança.

Crédito: Ascom Governo do Estado.

A segurança pública não pode virar refém do pânico moral

A Decrim é a culminância de uma série de medidas desenvolvidas recentemente pelo Governo do Estado em torno da defesa de populações vulneráveis por sua condição de gênero. Na esfera institucional, a violência contra a população LGBT começa na própria dificuldade de caracterizar as vítimas por suas identidades de gênero. Não raro elas são denominadas pela forma como são registradas na certidão de nascimento e não pelos seus nomes sociais.

Por Ricardo Moura

A Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (ALCE) aprovou, no início deste mês, a criação da Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim). Vinculada ao Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis da Polícia Civil (DPGV), a nova unidade policial atenderá vítimas de racismo, intolerância religiosa, homofobia, transfobia e demais formas de intolerância. Do ponto de vista da proteção de grupos vulneráveis, trata-se, certamente, de um avanço para a sociedade cearense.

A homofobia e a transfobia no Estado não se manifestam apenas em ofensas verbais ou por meio de atos discriminatórios. Levantamento da Rede de Observatórios de Segurança Pública aponta que o Ceará registrou o maior número de casos de mulheres trans ou travestis mortas por causa do ódio à diversidade, o transfeminicídio, em 2021, entre os cinco estados monitorados pela iniciativa. Algo mais concreto precisava ser feito por parte do poder público no sentido de coibir essas práticas criminosas.

Vale ressaltar que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero é proibida por lei, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), sendo punida pela Lei de Racismo (7716/89), que passou a compreender crimes de discriminação ou preconceito por  raça, cor, etnia, religião e procedência. No entanto, faltava um órgão especializado que pudesse apurar esse tipo de crime tendo em vista a responsabilização dos autores. A criação de uma lei, por si só, não é suficiente para que a cultura da tolerância seja de fato efetivada no país.

Na esfera institucional, a violência contra a população LGBT começa na própria dificuldade de caracterizar as vítimas por suas identidades de gênero. Não raro elas são denominadas pela forma como são registradas na certidão de nascimento e não pelos seus nomes sociais. Além disso, existe uma dificuldade em definir crimes como homofobia e transfeminicídios como tais. O reconhecimento dessa particularidade é fundamental para que o problema da discriminação seja evidenciado em toda sua extensão.

A Decrim é a culminância de uma série de medidas desenvolvidas recentemente pelo Governo do Estado em torno da defesa de populações vulneráveis por sua condição de gênero. Policiais estão sendo capacitados sobre o tema e toda uma estrutura institucional foi criada para dar suporte a essas ações. O respeito precisa fazer parte do cotidiano da atividade operacional dos agentes em geral e não somente dos que atuam nessa temática. A nova delegacia deverá atuar em parceria com a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial e a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção LGBT, órgãos vinculados à Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS).

Dentro dessa articulação, em fevereiro foi realizada a primeira reunião do Observatório Cearense dos Crimes Correlatos por Lgbtqiapnfobias. O principal objetivo do órgão é monitorar casos de violência contra vítimas LGBTQIA+ e discutir estratégias de prevenção contra esses crimes. Integram o observatório representantes da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, Polícia Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros Militar, Perícia Forense do estado do Ceará, Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará e Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública.

O caminho para que a Decrim saísse do papel, contudo, foi longo e tortuoso. A ideia de uma Delegacia Especializada no Combate à Intolerância Religiosa ganhou forma em 2020 quando o deputado Renato Roseno (PSOL) encaminhou projeto de indicação na Assembleia Legislativa. A proposta levou cerca de dois anos e meio tramitando sob forte resistência de grupos conservadores. Vale ressaltar que a delegacia ainda não foi sancionada pela governadora Izolda Cela e, por causa disso, não possui regulamentação e nem prazo para entrar em funcionamento.  

A razão de tanta demora pode ser explicada pela mobilização do conceito de pânico moral em torno dos direitos da população LGBT. De modo simplificado, o pânico moral pode ser entendido como um processo discursivo que transforma grupos específicos em uma ameaça aos valores e interesses sociais da maioria, com suas características sendo apresentadas de forma estereotipada pelos meios de comunicação e nas redes sociais.

Em nome de uma noção fossilizada de família, líderes religiosos e parlamentares sentem-se à vontade para disseminar discursos de ódio e mentiras com o intuito de barrar ou limitar direitos constitucionais de populações historicamente marginalizadas. Tais falas e comportamentos são reverberados na sociedade sob as mais diversas formas. De tão entranhados, nem percebemos o quanto nosso vocabulário e nossas práticas são permeados de expressões ou gestos discriminatórios.

É preciso que haja campanhas educativas e mobilizações sociais com foco nessa mudança de mentalidade e na construção de uma sociedade mais inclusiva, mas é necessário também que haja punição. A diversidade é uma conquista social permanente e as políticas públicas de segurança não podem ser reféns do que há de mais retrógrado na sociedade. Os cães ladram, mas a caravana da cidadania plena passa.

Em nota, coletivos e entidades afirmam estar decepcionados com Elmano

A recondução de Mauro Albuquerque à frente da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) causou muita repercussão na sociedade civil cearense. Entidades estaduais e nacionais se manifestaram contrárias à decisão tomada pelo futuro governador do Estado, Elmano de Freitas (PT). Uma nota de repúdio foi publicada ontem. O texto integral é o que segue, com as assinaturas:

NOTA DE REPÚDIO DA SOCIEDADE CIVIL CEARENSE À RECONDUÇÃO DE
MAURO ALBUQUERQUE À SECRETARIA DE ADMINISTRAÇÃO
PENITENCIÁRIA – SAP

  1. Nós que votamos e apoiamos o novo Governador estamos decepcionados.
  2. Acompanhamos nos últimos 4 anos a escalada de violência institucional
    sistemática constatada por diferentes órgãos. Todas as informações foram dadas ao
    Governo eleito.
  3. Tínhamos a expectativa de que haveria mudança. Não apenas mudança de
    nomes. Mas mudança de paradigma.
  4. Nenhum de nós defende nem indisciplina nem arbítrio. Além das denúncias de
    violências, o adoecimento em escala dos servidores da pasta e as denúncias de
    assédio representam uma consequência óbvia da insustentabilidade desse modelo.
  5. Imaginávamos que seríamos ouvidos e que nossa voz seria levada em
    consideração pelo novo Governo, já que o atual tampouco deu relevância a essas
    denúncias. Estávamos errados.
  6. O Governo Federal reviu a indicação para a futura Secretaria de Políticas Penais.
  7. Aguardamos o mesmo do Governo Eleito do Ceará.

Assinam:

  1. Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares do Ceará (Renap Ce)
  2. Comissão de Direitos Humanos da Oab/Ce
  3. Pastoral Carcerária do Estado do Ceará
  4. Pastoral Carcerária Nacional
  5. Grupo de Pesquisa Margens, Culturas e Epistemologias Dissidentes –
    MARGENS/UECE
  6. Conselho Estadual de Defesa de Direitos Humanos- CEDDH (Presidência)
  7. Coletivo Vozes de Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo e Prisional do
    Ceará
  8. Coletivo Flor do Urucum
  9. Movimento pela Vida de Pessoas Encarceradas do Ceará (MOVIPECE)
  10. Renato Roseno (presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da
    Assembleia Legislativa)
  11. Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa
  12. Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial
  13. Rede de Comunidades e Movimento Contra a Violência
  14. Movimento Candelária Nunca Mais
  15. Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado
  16. Frente pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro
  17. Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência da Baixada Fluminense
  18. Movimentos de Mães da Amar
  19. Frente pelo Desencarceramento Piauí
  20. Frente pelo Desencarceramento Espírito Santo
  21. Coletivo FAPAM
  22. Frente Estadual pelo Desencarceramento Amazonas
  23. Coalizão pela Socioeducação
  24. Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luiza Mahin -Frente pelo
    Desencarceramento do Rio Grande do Norte
  25. Frente pelo Desencarceramento de Goiás
  26. Frente pelo Desencarceramento da Paraíba
  27. Frente pelo Desencarceramento do Acre
  28. Frente pelo Desencarceramento em Sergipe
  29. Coletivo Mulheres Arteiras de Sergipe
  30. Frente pelo Desencarceramento em Rondônia
  31. Agenda Nacional Pelo Desencarceramento
  32. Sindpen- Sindicato dos Policiais Penais
  33. Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Fortaleza
  34. Pastoral Carcerária da Diocese de Limoeiro do Norte
  35. Centro de Defesa da Crianças e do Adolescente – CEDECA
  36. Frente Estadual pelo Desencarceramento do Ceará
  37. Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas
  38. Fórum Cearense de Mulheres
  39. Sociedade da Redenção
  40. Travessias: Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Culturas Juvenis, Afetividades
    e Direitos Humanos/UECE
  41. Associação Cearense de Diversidade e Inclusão
  42. Fórum Caririense de Combate à violência de gênero LGBTFOBIA
  43. Associação Nordestina de LGBT
  44. Articulação de Direitos Humanos dos Missionários Combonianos do Brasil
  45. Mandata Coletiva Nossa Cara/CMFor
  46. Frente de Mulheres do Cariri
  47. Grupo de Valorização Negra do Cariri
  48. Coletivo Marielle Franco Cariri
  49. Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Ceará
  50. Instituto Horácio Dídimo de Arte, Cultura e Espiritualidade
  51. Coletivo FAFIB
  52. Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia
  53. Fórum Popular de Segurança Pública Ceará
  54. Rede de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável do Grande Bom
    Jardim
  55. Associação Espírita de Umbanda São Miguel – AEUSM
  56. Movimento RUA – Juventude Anticapitalista assina
  57. Associação dos familiares dos Presos de Rondônia (AFAPARO)
  58. Coletivo de Esposas de Rondônia
  59. Coletivo de Mães de Rondônia
  60. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
  61. Frente Estadual pelo Desencarceramento de Brasília
  62. Coletivo Rosas no Deserto (DF)
  63. Conselho Regional de Psicologia do Ceará
  64. Movimento Mães da Periferia de Vítima Por Violência Policial do Ceará

Entidades de Defesa dos Direitos Humanos veem com desconfiança recondução de Mauro Albuquerque ao cargo

Embora o Estado tenha assumido um maior controle sobre a atuação das facções nos presídios cearenses, as denúncias de tortura e maus tratos sobre a população carcerária lançam uma sombra espessa sobre a continuidade do trabalho de Mauro Albuquerque à frente da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP).

Por Ricardo Moura

O anúncio oficial ainda não ocorreu, mas há grandes possibilidades de que Mauro Albuquerque seja reconduzido ao cargo de secretário da Administração Penitenciária no futuro governo Elmano. Embora, em sua gestão, o Estado tenha assumido um maior controle sobre a atuação das facções nos presídios cearenses, as denúncias de tortura e maus tratos sobre a população carcerária lançam uma sombra espessa sobre o seu trabalho.

Por causa disso, a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP-CE), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), encaminhou, no dia 25 de novembro, um relatório em que aponta a tortura como uma prática sistemática nas prisões cearenses e escreveu uma carta dirigida à governadora Izolda Cela pedindo que Mauro Albuquerque seja afastado do cargo:

“Esta CBJP não consegue compreender por qual razão o titular dessa secretaria – com tantas denúncias sérias, de órgãos acreditados do próprio Governo do Estado e do Poder Judiciário ainda permaneça à frente do sistema penitenciário, o que é um contrassenso no que respeito ao espírito e de respeito aos direitos humanos (…) O mais grave (como se pudesse medir gravidade com relação a tanto despautérios) é que se anuncia que o secretário permanecerá no novo governo que começa no próximo dia primeiro de janeiro”.  

Conforme um membro da comissão ouvido pelo blog, Elmano de Freitas teria sinalizado anteriormente que Mauro Albuquerque não permaneceria no cargo. De lá para cá, a manutenção do atual secretário no cargo ganhou força. A comissão tentou realizar uma segunda audiência com o futuro governador, mas os membros ainda não foram recebidos pelo petista. Leia a carta na íntegra:

Na semana passada, por sua vez, a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) e o Escritório Frei Tito de Alencar de Assessoria Jurídica Popular (EFTA) lançaram um relatório conjunto sobre violações de direitos humanos no sistema prisional cearense. As denúncias vão dos casos de tortura à precarização da saúde dos policiais penais, passando transferência massiva de presos e fechamento de unidades prisionais no Interior do Ceará.

Crédito da foto: Ascom SAP.

O cinismo da pobreza no Brasil

Importa entender que a pobreza é um estágio de privação das necessidades básicas que em última instância, retira do indivíduo a capacidade de se relacionar socialmente. Nesse cenário há insuficiência das condições de acessar elementos materiais da cidade.

Por Rafael dos Santos da Silva

Observar o cinismo da pobreza me faz regressar ao pensamento do iluminista inglês Francois Marie, popularmente conhecido por Voltaire. Para este pensador “o conforto dos ricos depende de uma oferta abundante de pobres.” Pois bem, é desconfortável identificar que no Brasil quase 30% da população encontram-se afetados por algum tipo de pobreza na renda, 7% deles estão no Ceará. É o que revela o IBGE a partir do seu mais recente relatório de Indicadores Sociais, publicado na última Pnad-continua.

Para entender esse resultado é preciso pensar as raízes do problema e imaginar que o Brasil sempre foi marcado pela pobreza material do seu povo. Desde as caravelas que operava nestas terras um modelo econômico baseado no patriarcado e no colonialismo. Esses dois elementos foram centrais para se estabelecer aqui uma espécie de capitalismo dos trópicos, onde o gênero masculino (patriarcado) e a concentração da riqueza (colonialismo) tudo podia para garantir o enriquecimento fácil e ilícito.

Importa dizer que a condição de pobreza imposta aos grupos sociais mais vulneráveis é de fato uma decisão política tomada na surdina do poder. Aponta o fracasso de nossa democracia inacabada e especialmente reescreve a ditadura da opressão internalizada pela linha da desigualdade, pelo aprofundamento da exclusão social, até finalmente se revelar no flagelo da fome.

Com o tempo o capital modernizou sua estrutura, mas não sua substância. A redenção das pessoas escravizadas não reparou o estrago social da escravidão. A abolição mal acabada resultou no analfabetismo estrutural; em parcas infraestruturas sanitárias; em moradias precárias. Em outras palavras, a república chegou sem o apelo da coisa pública. Como resultado as periferias das cidades foram ganhando contornos inumanos.

Por consequência, sempre tivemos problemas em radicalizar a democracia. Todos os esforços ocorria para que não passássemos de uma “sociedade civilizada”, bem expressa no horrível dizer de Gilberto Freire; uma “democracia racial.” A ausência da democracia entre nós teve consequências gravíssimas quanto ao acesso a direitos sociais, civis e políticos. A cidadania no Brasil sempre foi assunto de segunda ordem e até a simples democracia eleitoral fora instrumentalizada para perpetuar o poder da elite econômica. Basta lembrar a experiência em 1964, e mais recentemente em 2016.

Na melhor expressão de Jacks Rancière, alimentamos historicamente um letal “ódio a democracia” O primeiro sintoma de uma sociedade democraticamente esfacelada é o aumento da pobreza. Este é o caso do Brasil, sobretudo depois que sua classe política reformou a previdência, as leis trabalhistas e impôs o mais severo teto aos gastos públicos evitando investimentos em áreas essenciais à cidadania.

A reforma do trabalho causou redução nos ganhos médios dos trabalhadores e lhes impôs a modalidade do trabalho intermitente. A reforma da previdência evitou acesso a direitos historicamente consagrados. Tudo isso somada a redução dos gastos públicos, com boa razão podemos lembrar a expressão de Darcy Ribeiro, para quem a questão social no Brasil virou um “moinho de gastar gente

A tragedia não para! Soma-se aos fatos acima a maior pandemia sanitária já enfrentada no mundo, e principalmente: a incompetente, covarde e sorrateira gestão do planalto central. Essa realidade produziu como resultado os piores números relativos à pobreza como passo a apresentar a seguir:

Antes importa entender que a pobreza é um estágio de privação das necessidades básicas que em última instância, retira do indivíduo a capacidade de se relacionar socialmente. Nesse cenário há insuficiência das condições de acessar elementos materiais da cidade, como infraestrutura básica, trabalho, educação, mobilidade, saúde, segurança e etc. Várias escolas associam essa fase à ausência da cidadania. Ou seja, a pobreza como uma profunda síntese da injustiça social.

Compreender a dimensão da pobreza exige ainda dimensionar o problema da insegurança alimentar. Nesse campo a principal contribuição vem da Rede Persan que em 2022 alertou para o crescimento do grupo das pessoas expostas à fome. Segunda a pesquisa intitulada “Olhe para a Fome” são mais de 33 milhões de brasileiros expostos a condição famélica, e 125 milhões são afetados por algum tipo de insegurança alimentar.

Contudo, outras escolas entendem que o recorte da renda é suficiente para entender a pobreza. Essa linha de raciocínio argumenta que uma vez possuindo renda, todos os outros acessos ficam garantidos. Não concordamos totalmente com essa visão, mas é preciso aceitar que tal método se revela pedagógico por facilitar leitura.

Pois bem, tomando a renda como referência, os últimos dados do IBGE apontam que no mesmo Brasil, onde se assistiu a ascensão de 40 novos bilionários durante a pandemia, viu também a chegada de 17,9 milhões de pessoas na extrema pobreza. Este grupo teve um aumento de 48,2%, sendo 46,2% composta por crianças e 37,7% por pessoas negras e pardas. Ainda consta que 44,9% da população do Norte, e 48,7% do Nordeste vivem na pobreza. De modo geral, o aumento é assustador, e apesar de se tratar do perfil renda, revela as entranhas de um país desigual.

No Ceará, as pessoas afetadas pela extrema pobreza chegam a 1,4 milhão. Esse número representa 15% da população local. Se comparado ao ano anterior que era 9,3%, o salto é injustificável. O Estado ainda amarga 27,3% com renda inferior até U$ 3,2, enquanto 46,8% não alcançam renda à U$ 5,50. Com isso é correto afirmar que 4.319.84 milhões de cearenses estão afetados por algum nível de pobreza na renda. Uma tragédia! 

De modo geral, esses resultados determinam por assim dizer o fracasso dos Objetivos do Milênio levantado pelas Nações Unidas, especialmente em seus objetivos 1 e 2, quando se propôs acabar, pela metade, a pobreza, e erradicar a fome até 2030. Nessa toada, as metas não serão cumpridas, mas revelam o cinismo da pobreza.

Entretanto, uma notícia alvissareira ecoa na grande mídia. Ela dá conta de um Projeto de Emenda Constitucional – PEC da transição – proposta pelo presidente eleito Lula da Silva, visa retirar do teto dos gastos públicos os investimentos aos mais vulneráveis. Estimado em R$ 190 bilhões, mesmo a contra gosto da “Faria Lima”, os valores funcionarão como amortecedores da desigualdade, e principalmente da fome. Com esse pouco dinheiro será possível realocar o pobre no orçamento público. Associado a isso, volta a pulsar nas periferias das capitais, iniciativas coletivas de enfrentamento a fome e fortalecimento da democracia. O papel dos movimentos sociais nesse novo cenário político será determinante para recuperar o espaço perdido. Será preciso caminhar com o governo, disputar o orçamento público e colocar a democracia em movimento. Será preciso erguer-se novamente após um longo e tenebroso inverno. Finalmente, é preciso reafirmar que a pobreza em todas as suas dimensões é resultado de uma decisão política tomada por um conjunto da sociedade a partir do sequestro da democracia. Diante dessa realidade enfatizamos que somente decisões igualmente políticas, coletivas e racionais poderão realizar seu real enfrentamento. Qualquer caminho que não aponte para o seu fim é por definição um cinismo plutocrata. Porém, qualquer inciativa que a enfrente precisa ser recebida com o entusiasmo de que um país rico é um país sem pobreza!!!

Crédito da foto: Vladimir Platonow/Agência Brasil.

Rafael dos Santos da Silva

Professor da UFC. Membro do Observatório de Políticas Públicas da UFC. Doutor em Sociologia e assessor dos movimentos sociais.

“Tá uma Ucrânia”: guerra reconfigura mapa das facções em Fortaleza

O modelo de atuação das facções no Estado tem gerado um custo imenso de vidas humanas. Já não há mais tantos “seres matáveis” dispostos a dar a vida por um conflito sem fim e, por muitas vezes, visto como sem sentido algum. Manter essa condição, em um contexto de vulnerabilidade social agravado pelos efeitos da pandemia, parece ser insustentável até mesmo sob o império da violência e do medo. Este é um terreno fértil para a ascensão dos “neutros”, com todo o rastro de violência que os processos de tomada de territórios deixam.

Por Ricardo Moura

Enquanto nossa atenção está voltada aos jogos do Brasil na Copa do Catar, algo muito sério acontece nas periferias de Fortaleza: o mundo do crime vem sendo reconfigurado à força por uma terceira organização criminosa. Denominado de “neutro”, esse novo grupo armado entrou no radar das autoridades a partir do primeiro semestre de 2021 diante do enfraquecimento das duas principais facções do Ceará: Guardiões do Estado (GDE) e Comando Vermelho (CV).

Por dois anos, entre 2017 e 2018, as duas organizações criminais travaram uma guerra sem precedentes na disputa por pontos de venda e pelo predomínio sobre comunidades inteiras fazendo com que o Ceará batesse recordes nos números de assassinatos. Como resposta, desde 2019, o Governo do Estado promove medidas no sentido de reprimir a ação de tais grupos, como as profundas mudanças ocorridas na gestão do sistema prisional, dificultando a comunicação entre os presídios e as ruas, bem como operações policiais que desarticularam lideranças e cortaram rotas de financiamento do tráfico.

Nesse ínterim, a resistência local que dará origem à ideia de neutralidade em relação às duas principais organizações ganhou fôlego. As comunidades se viram sufocadas pelos salves (ordens vindas do tráfico) abusivos do CV e da GDE, bem como pela extorsão dos próprios moradores sob a forma de pedágios. No Grande Jangurussu, epicentro do fenômeno das facções em Fortaleza, a gota d’água se deu no dia 25 de abril de 2021, após a Chacina do Barroso, em que cinco pessoas foram executadas.

De acordo com relatos obtidos pela coluna, a chacina foi um divisor de águas na relação já conturbada que havia entre o Comando Vermelho e a comunidade do Campo Estrela, no Jangurussu. Para se vingar da GDE por causa da morte de uma liderança, as vítimas foram escolhidas a esmo e sem que tivessem qualquer ligação com o crime organizado. A ação teria rompido qualquer princípio de razoabilidade na percepção dos moradores locais e, por consequência, o rompimento com o CV tornou-se inevitável. Daí a nomenclatura “neutro” como uma tentativa de fortalecerem uma terceira via em meio aos dois principais grupos criminosos do Estado.

Essa busca por uma autonomia territorial visa, sobretudo, atender interesses e demandas mais localizadas. Mudanças desse porte, contudo, geram reações violentas. Na semana passada, os “neutros” divulgaram suas novas conquistas nas redes sociais: a “neutralidade” das comunidades do Maria Tomasia, José Euclides, Sítio São João e Casinha, áreas do Grande Jangurussu e Grande Messejana tradicionalmente pertencentes às duas principais facções do Estado. O conflito foi reportado por O POVO no sábado. Uma das mensagens trazia a seguinte inscrição (o texto foi adaptado para melhor legibilidade): “Não existe mais facção aqui dentro da área. Queremos paz para os moradores”.

Em uma espécie de manifesto, os integrantes dos “neutros” afirmam agir “pelo certo”. “Não somos pirangueiros”, fazem questão de deixar claro. A mensagem prossegue: “Jamais nossa ideologia se bate com a ideologia desses cachorros que obrigam os membros deles a pagar pedágio. Que facção é essa que você paga para ser bandido? Que mata os irmãos se eles não pagarem 50 reais? […] Qualquer besteira é motivo de decreto e de oprimir bandido […] O crime certo não vai recuar, vamos guerrear para acabar com essa raça imunda de GDE safado”.

Como se vê, ao contrário do que o senso comum costuma crer, ética e moralidade também são elementos constituintes do mundo do crime. A repressão contra quem ousa se insurgir é imediata. Os picos de violência letal registrados em Fortaleza quase sempre seguem essa lógica de ação e reação. No entanto, recentemente, determinadas práticas, até então toleradas, passaram a ser objeto de contestação.

O modelo de atuação das facções no Estado tem gerado um custo imenso de vidas humanas. Já não há mais tantos “seres matáveis” dispostos a dar a vida por um conflito sem fim e, por muitas vezes, visto como sem sentido algum. Manter essa condição, em um contexto de vulnerabilidade social agravado pelos efeitos da pandemia, parece ser insustentável até mesmo sob o império da violência e do medo.    

Enquanto isso, os moradores vivem dias de horror na busca por essa “paz” prometida pela neutralidade dos territórios. Em um relato obtido pela coluna, uma moradora afirma que a situação vivida pela comunidade “tá uma Ucrânia”, referência direta à guerra que envolve o país e a Rússia. Somente uma imagem bélica seria capaz de dar conta da realidade de milhares de pessoas que se veem impedidas de acessar serviços básicos como saúde e educação em seu cotidiano. O torpor causado pela experiência de torcer em uma Copa do Mundo encerra-se dia 18. O sentimento de pânico experimentado por quem vive na periferia de Fortaleza parece não ter fim.

No Ceará, negros têm 10 vezes mais chances de serem assassinados que brancos

Assassinatos revelam a face racista tanto da sociedade brasileira quanto dos órgãos de segurança. Proporção de pessoas negras mortas excede o percentual da população negra na população total do país. Em 2023, novos governantes assumem o cargo. Resta saber se eles terão coragem política o suficiente para lidar com essa questão de frente. Dispor apenas de uma secretaria específica sobre o tema é muito pouco.

Por Ricardo Moura

O Brasil é um país onde a desigualdade racial é parte constituinte do que somos como sociedade. Temos uma dívida histórica com a população negra que está longe de ser paga. Pior ainda: o próprio Estado brasileiro parece querer varrer essa condição para debaixo do tapete, como se tudo se tratasse apenas de uma questão de meritocracia e que o peso da cor não tivesse influência no ponto de partida para melhores empregos e condições de vida.

Uma passada rápida pelo álbum de retratos dos parlamentares e das equipes que compõem os governos é o suficiente para que nos perguntemos sobre o paradeiro das pessoas negras nos espaços de decisão. A política é dominada principalmente por homens brancos, cujos interesses versam quase sempre na manutenção de privilégios mantidos desde a colonização.

O racismo cimenta nossas relações, naturalizando e estruturando essa divisão. Para além de ser uma questão ideológica e social, a raça também define quem merece viver e quem está condenado à morte. Dois estudos recentes comprovam que a cor da pele é determinante no que diz respeito à violência letal.

Dados do Instituto Sou da Paz revelam que 80% das vítimas da violência armada são homens negros, que possuem 3,5 vezes mais chances de serem assassinados do que pessoas não negras. No Ceará, essa proporção é ainda maior: aqui a população negra tem 10 vezes mais chances de ser morta por armas de fogo que a população branca. Como se vê, não se trata apenas de números aleatórios, mas de um elemento constituinte e perverso dessa desigualdade racial cotidiana.

Como reflexo disso, as forças de segurança trazem consigo diversos componentes racistas que se expressam das mais diversas formas. A mais trágica é a forte incidência de pessoas negras vítimas entre os mortos por intervenção policial. Pelo terceiro ano consecutivo, a Rede de Observatórios da Segurança, da qual faço parte como consultor regional, divulgou a cor da letalidade policial.

O boletim “Pele alvo: a cor que a polícia apaga” apresenta dados das secretarias de segurança de sete estados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). De acordo com o documento, a polícia é o núcleo duro do racismo no Brasil, haja vista que ao menos cinco pessoas negras são mortas por policiais todos os dias. Das 3.290 mortes em ações policiais ocorridas em 2021 nos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo, 2.154 vítimas eram negras, tomando como referência o critério do IBGE que considera como população negra a soma de pardos e pretos.

Ao contrário do que o senso comum poderia especular, o percentual de negros mortos pela polícia é muito maior que a presença de negros na composição da população. Esse número, contudo, seria ainda maior se não fosse a subnotificação. No Maranhão não é feito o registro da cor das vítimas. No Ceará, o percentual de casos sem classificação racial chega a 69%. A forma como tais informações são desconsideradas pelos órgãos públicos dá a dimensão do pouco caso com que a questão racial é tratada pelos governos.

Diante dessas estatísticas não é preciso muito esforço para compreender que qualquer medida relacionada à redução dos homicídios no Brasil passa por enfrentar a desigualdade racial e o racismo. Esse enfrentamento é ainda mais decisivo em se tratando de instituições que historicamente foram criadas para manter a apartação entre brancos e negros como a polícia.

Para se ter um exemplo disso, basta fazer um recorte sobre como expressões predominantemente negras da cultura popular como o samba, o rap e o funk foram (e ainda são) criminalizadas ao longo do tempo. Nos dias atuais, manifestações de jovens em praças e espaços públicos são dissolvidas por policiais e guardas municipais sem qualquer motivo mais grave. A própria circulação de tais corpos pelas vias da cidade é monitorada com uma lupa. A implementação de torres de vigilância é um sinal imponente do medo social que temos de tais pessoas.

Em 2023, novos governantes assumem o cargo. Resta saber se eles terão coragem política o suficiente para lidar com essa questão de frente. Dispor apenas de uma secretaria específica sobre o tema é muito pouco. É preciso que haja uma política de governo que vise superar a desigualdade racial com profissionais negros ocupando postos de comando na máquina administrativa. Além disso, a população negra precisa ser compreendida como portadora de direitos e não como uma ameaça em potencial. Esse é o mínimo que se espera de uma política de segurança pública que possa vir a ser considerada antirracista. Seria pedir muito?  

Sobre a imagem. Reprodução da capa do Relatório “Pele-alvo”, da Rede de Observatórios da Segurança. Ilustração: Douglas Lopes.