O Ceará assistiu a uma disputa velada sobre quem comandaria os rumos da política no Estado. Izolda Cela representa um modelo de compreensão sobre a segurança pública mais complexo e plural que vai além do ethos guerreiro, cuja lógica pautou todos os governantes até agora. Os gestos da governadora se insurgem contra essa lógica: não são estridentes, mas possuem consequências. São ações que, sem alarde, provocam mudanças sutis, mas duradouras.
Por Ricardo Moura
A decisão do PDT em contar com Roberto Cláudio como candidato do partido para o governo do Ceará no lugar da atual governadora, Izolda Cela, que tentaria a reeleição, causou reações diversas no cenário político estadual. Há quem defenda que a decisão faz parte do jogo de poder entre grupos adversários, mas o ocorrido pode ser compreendido como um episódio de violência política de gênero. Se o mundo da política é um ambiente dominado por homens, na área da segurança pública não é diferente. Pelo contrário. O grau de participação da mulher é ainda menor. O Ceará, por exemplo, é o segundo estado brasileiro com menor proporção de policiais militares femininas: apenas 3,8% do efetivo. A promoção de mulheres a tenente-coronel é um acontecimento raro, capaz de se tornar notícia, e não uma prática corriqueira.
Vinda de uma bem-sucedida experiência como gestora na Educação, Izolda Cela conheceu de perto as entranhas desse universo. Em 2015, então vice-governadora, ela assumiu o comando do Pacto por um Ceará Pacífico, carro-chefe da gestão Camilo Santana na área da segurança pública. Tratava-se de uma ação ambiciosa, um concerto entre atores políticos e institucionais em prol da redução dos índices de violência e criminalidade no Estado.
Dentro da área de abrangência das Unidades Integradas de Segurança (Uniseg), a dimensão mais visível do Ceará Pacífico, a intenção era desenvolver programas preventivos especializados voltados à mediação de conflitos e redução de vulnerabilidades.
O pacto, contudo, demorou a engrenar. No plano federal, turbulências políticas na presidência da República repercutiram na atuação dos estados. O plano nacional que poderia dar continuidade ao Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Governo Lula, ficou pelo meio do caminho. No plano estadual, as Unisegs eram implementadas em um ritmo lento. Enquanto isso, o crime organizado no Estado se reestruturava, ganhando novas formas e uma capilaridade nunca vista.
A busca por uma resposta mais rápida ao problema das facções veio por meio da criação de bases fixas de policiamento em pontos vulneráveis de Fortaleza conhecidas como Proteger. Nesse meio tempo, o polo de dinamismo das forças de segurança migrou da vice-governadora para o então secretário da Segurança Pública, André Costa. Com sua postura mais presente às operações cotidianas, posando ao lado de policiais e agentes nas redes sociais e adotando como lema “justiça ou cemitério”, o delegado da Polícia Federal logo assumiu uma figura de protagonismo entre a corporação.
Quem está no governo dificilmente reconhecerá, mas o machismo incrustado nos órgãos de segurança certamente possui um fator preponderante para que Izolda Cela não assumisse de forma plena o papel de protagonista para o qual foi designada. Embora esboçasse uma política de segurança mais sofisticada em seu início, a gestão Camilo Santana cedeu ao tradicional modelo do policiamento “operacional” em detrimento de ações preventivas mais abrangentes e complexas.
Em 2021, o Governo do Estado aprovou um projeto que poderia dar novo impulso ao Ceará Pacífico, sob a forma do Programa Integrado de Prevenção e Redução da Violência (PReVio). O programa, cuja coordenação compete a Izolda Cela, visa a qualificação da prevenção social e segurança pública com foco em públicos específicos e quase sempre esquecidos pelos governantes, como crianças, jovens, adolescentes gestantes, egressos do sistema socioeducativo, população LGBT e mulheres em situação de violência.
O olhar do PReVio sobre esse público aponta para uma concepção mais larga sobre segurança pública. A visão corrente privilegia o enfrentamento à mediação. Não se trata, contudo, de um erro dos governantes, mas da própria lógica de atuação dos órgãos de segurança que desconsidera as potencialidades do capital humano no estabelecimento de relações sociais mais pacíficas.
Nesse aspecto, os governos precisam levar em consideração o conhecimento acumulado das mães das periferias, obtido pela experiência e pela dor cotidiana. Cuidar de uma casa, trabalhar fora, manter a criação dos filhos a despeito de todas as adversidades, lutar por direitos básicos como saúde e educação são atividades constituintes de uma sociedade, mas que permanecem invisibilizadas por uma ótica míope que compreende apenas o olhar masculino como protagonista das ações.
É necessário que tais elementos estejam presentes na formulação de políticas e na construção de fortes vínculos comunitários, onde a responsabilidade seja compartilhada igualmente entre homens e mulheres. A assinatura de uma lei estadual punindo servidores com a exoneração por causa da violência doméstica é um exemplo de como o Estado pode afetar microestruturas cotidianas de dominação e agressão. Basta comparar tal medida com o descaso com que o conceito de feminicídio é conduzido pelo poder público, cuja subnotificação é gritante. A segurança pública precisa superar o ethos do guerreiro com toda sua pirotecnia e pouco resultado efetivo. Tantas armas, tantos veículos e tantas operações não são capazes de fazer com que a população se sinta segura. O medo continua falando mais alto. Os gestos de Izolda Cela se insurgem contra essa lógica: não são estridentes, mas possuem consequências. São ações que, sem alarde, provocam mudanças sutis, mas duradouras. Em universos tão machistas como o da segurança pública e o da política, a governadora abre frestas e desvela caminhos. Um pequeno passo adiante e tudo muda de lugar.
Crédito da foto: José Wagner / Governo do Ceará.