A violência é uma solução para problemas, sejam eles pessoais, motivados por traumas passados, sejam eles sociais, econômicos e políticos, motivados pelo poder. É uma reação a algo que acontece com alguém. Um ato movido pelo desejo sem intermediários, um desejo de violência, um desejo que produz violência e se produz violentando. Pode-se “pensar” a violência, antecipá-la, premeditá-la, ensiná-la num curso preparatório mostrando, por exemplo, como não matar, mas também como se matar alguém numa viatura transformada em “câmara de gás”, como aprendem policiais, mas o ato de violência é reativo, uma reação ao momento, mesmo que se se prepare para ele longamente, à espera de um momento para pôr em prática a violência que aprendeu na teoria, quando a violência se torna um golpe ou a solução final. Assim os militares, do Exército e da polícia, esperam ansiosamente pôr em prática a violência aprendida na escola e resolverem os problemas, os seus e os sociais, econômicos e políticos por meio de um golpe, pondo uma solução final aos problemas. É através da guerra entre Estados e nações, ou nas ruas das cidades, que se anseia o golpe e solução para todos os problemas, uma guerra automática, movida por violências passadas, como pressupus no texto anterior.
Por Jean Pierre
Em sua obra O Príncipe, o filósofo italiano Maquiavel diz que “os homens se conquistam ou se exterminam”. Pode-se conquistar um povo sem que seja pelo seu extermínio, mas quando o povo começa a se opor ao poder do príncipe, isto é, do político governante, o extermínio é o golpe ou solução final. Maquiavel, filósofo e também historiador, demonstra em seu livro como muitos poderosos solucionaram seus problemas sem violência, mas principalmente com violência, não por vontade própria simplesmente, mas porque “o desejo de conquistar é coisa verdadeiramente natural e ordinária e os homens que podem fazê-lo serão sempre louvados e não censurados.” No Brasil, louvados e não censurados como mito, no caso, um falso mito, pois o mito compreende uma perspectiva e um ensinamento moral que muitos políticos não possuem.
Maquiavel, foi o primeiro pensador moderno a estabelecer uma relação entre violência e poder a qual Benjamin, por conseguinte, vai pensar como um liame inseparável a partir da palavra alemã Gewalt, que quer dizer, em alemão, violência e poder. Qualquer violência é um ato de poder e qualquer poder é um ato de violência, e quanto maior o poder, necessariamente, maior a violência e vice-versa. A justiça e o direito como mais altas instâncias de poder são também as mais altas instâncias da violência. O direito natural, definido principalmente por uma legítima defesa pelas armas, advoga que é justo a violência para obter determinados fins, é algo natural como o “desejo de conquistar” segundo Maquiavel. Por outro lado, o direito positivo, definido pelo princípio de inocência, não considera a violência algo justo, pelo contrário, algo a ser coibido pela justiça. Todavia, pressupõe que a violência é legítima em defesa da própria justiça, no caso, das leis de um Estado. O problema é que violência é legítima em defesa do que é justo segundo as leis do Estado, isto é, que violência pode ser utilizada de modo legítimo para resolver determinados problemas relacionados à justiça, que violência pode fazer jus à justiça, pô-la em prática, fazê-la presente na vida dos cidadãos.
Na definição de uma violência, está a questão do poder. Em princípio, considerada justa pelo desejo de conquista natural, isto é, pensada como poder, nenhuma violência/poder pode ser admitido pelas leis da justiça de um Estado, mesmo quando esta se ausenta. Benjamin chama a atenção de que há violência até mesmo na ausência de violência, isto é, na omissão, vista como uma chantagem. “Não vou lhe dar isto se não fizer isto.” O desejo de não-violência é, apesar de tudo, uma violência, e é por ser visto como violência que o Estado não admite manifestações mesmo pacíficas e impõe contra elas o poder e a violência militar de seus policiais e Exército contra grevistas e manifestantes. O medo do Estado é que a não-violência dos manifestantes institua um novo direito, que não é mais natural e nem positivo, que não é fundado na violência propriamente dita, e isso lhe afeta profundamente como uma violência, pois a violência é o fundamento do poder do Estado que vê violência até em atos pacíficos.
A violência militar contra indivíduos não-violentos que se manifestam pacificamente, não somente politicamente nas ruas, mas em sua própria existência como seres políticos em sua etnia, raça, gênero, ou mesmo em casa, festejando seus aniversários, é o golpe ou solução final para manter a violência/poder do Estado por direito e justiça. Militares são o braço armado do Estado em defesa da violência, de uma violência necessária para eles, estabelecida para que eles próprios se mantenha como defensores da “Segurança Pública”, da “ordem social” ou da “pacificação”, seja esta entre Estados e nações, seja no próprio Estado. “O militarismo é a compulsão para o uso generalizado da violência como um meio para os fins do Estado.”, diz assertivamente Benjamin (1986, p. 164), em Crítica da violência e do poder. Por compulsão, entenda-se desejo de uma violência generalizada, isto é, de uma guerra, ansiada pelos militares a cada momento como um direito, uma forma de fazer justiça, de resolver os problemas do direito e da justiça, senão da política, por outros meios, como pensa Clausewitz, pois “A compulsão consiste no uso da violência como meio para fins jurídicos.” (BENJAMIN, 1986, p. 165)
A violência da guerra é uma violência generalizada, o golpe ou solução final encontrada pelo Estado para resolver seus problemas políticos de insegurança pública, no caso, a sua própria insegurança quanto ao público, quando não tem mais segurança quanto ao seu poder político, quando até mesmo atos pacíficos são vistos como atos violentos, pois são contra si, contra a pacificação que ele visa instituir. Colocar uma pessoa numa viatura transformada em câmara de gás e matá-la asfixiada somente por não estar com capacete e questionar sua autuação demonstra a insegurança pública do Estado em relação aos seus cidadãos vistos como seus inimigos, agindo com a maior violência contra atos que não são violentos.
Não por acaso aqueles que defendem a violência do Estado defendem a pena de morte para se manter a segurança do Estado, pois é o extermínio, como diz Maquiavel, a solução para aquele que deseja a conquista pela violência e poder. E não por acaso também, Hitler defendeu a pena de morte em câmaras de gás como solução final para os judeus nos campos de concentração quando não conseguiam mais trabalhar, e a recusa ao trabalho motivada principalmente para a fome, era vista como uma violência ao seu poder cujo lema era “‘Arbeit macht frei’ (‘trabalho liberta ou nos torna livres’”, que pode ser traduzido também pelo lema capitalista de que “o trabalho dignifica o homem”. O golpe e solução final do extermínio surge quando a violência do trabalho forçado e explorador não consegue mais submeter o povo ao poder do Estado, e do capital. O motivo do golpe e solução final é porque “no exercício do poder sobre vida e morte, o próprio direito se fortalece, mais do que em qualquer outra forma de fazer cumprir a lei.” (BENJAMIN, 1986, p. 166)
O direito, a justiça, o poder, se fortalece com a morte, com a violência mais letal, com o extermínio daqueles que se manifestam até mesmo do modo mais pacífico, por meio de uma “greve de fome”, seja porque a fome impede de trabalhar como no caso dos judeus, seja porque a fome é utilizada como forma de denúncia da violência e do poder do Estado como no caso de Gandhi na Índia governada pelos britânicos na época de sua colonização. O desejo de violência militar é uma reação ao desejo de não-violência. A guerra é o golpe e solução final para o Estado que busca exterminar aqueles que resistem à sua violência, por fome e por falta de emprego, sejam eles judeus ou pobres trabalhadores que se manifestam pelos seus direitos à comida e trabalho.
O golpe é a solução final para políticos cuja violência e poder se tornaram a única alternativa para se manterem no poder diante da insegurança de perderem o poder. Declarar guerra a outros Estados, à sua população e às urnas é apelar para uma justiça com as próprias mãos contra a justiça do Estado, ou ainda, por mãos divinas, quando se passa de um direito natural de violentar, para um direito divino, isto é, de uma violência/poder míticos, o direito por natureza, para uma violência/poder divinos, ambos ansiosos em pôr fim à vida, ambos ansiosos pela morte, o primeiro como pressuposto do fascismo e o segundo realização do fascismo, com a diferença que:
“O poder [violência] mítico é poder[violência] sangrento sobre a vida, sendo esse poder o seu fim próprio, ao passo que o poder[violência] divino é um poder puro sobre a vida toda, sendo a vida o seu fim. O primeiro poder[violência] exige sacrifícios, o segundo poder os aceita.” (BENJAMIN, 1986, p. 173)
Aqueles que buscam resolver os problemas com a violência/poder de suas próprias mãos, os militares, golpeiam e matam para pôr uma solução final àqueles que resistem ao seu poder, isto é, sacrificam os outros e a si mesmos, e aqueles que buscam resolver com a violência/poder divino, os religiosos, aceitam as mortes como sacrifícios necessários ao seu deus. Não por acaso, por fim, militares e religiosos se definem como guerreiros, pois, a guerra é o momento oportuno para o golpe e promoverem a solução final com o extermínio, o fuzilamento daqueles que resistem a eles, que preferem a mão que acolhe, em festa, à mão que golpeia com violência daqueles que empunham armas como bíblias e bíblias como armas. É a partir da retórica da guerra que o golpe e a solução final pelo extermínio se tornam possíveis.

Jean Pierre
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Ceará e pesquisador do Grupo de Pesquisa Conflitualidade e Violência – COVIO/UECE.