Projeto da Defensoria acolhe vítimas da letalidade policial

Diante da lacuna que existe na sociedade em relação à assistência aos parentes de pessoas vítimas da violência letal, a Rede Acolhe, um projeto da Defensoria Pública do Estado do Ceará, foi idealizada com o objetivo de oferecer uma proteção mais ampliada aos assistidos pelas vítimas de violência, com atenção especial a quem sofreu violência institucional. Saiba mais sobre esse projeto na quarta reportagem “Números da letalidade policial em Fortaleza”.   

Por Dayanne Borges e Ricardo Moura

Quem defende os cidadãos quando o responsável pela ofensa é o próprio Estado? A pergunta passa longe de ser óbvia, haja vista a imensa quantidade de pessoas que se sentem lesadas em seus direitos pela ação estatal ou que são vítimas dos agentes de segurança. Nesta série, apresentamos histórias de famílias que perderam seus entes por causa da letalidade policial.

A quem recorrer nessa situação? Desde 2017, o Ceará conta com a Rede Acolhe, um projeto da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPEC) voltado a atender pessoas vítimas de violência policial e ameaças de morte, bem como familiares de vítimas de homicídio, feminicídio e latrocínio (roubo seguido de morte). Neste ano, 50 famílias foram cadastradas no programa, somando aproximadamente 400 unidades familiares acompanhadas pela Rede Acolhe. As mulheres são maioria na Rede Acolhe.

Campanha lançada este mês busca sensibilizar e tornar a Rede Acolhe mais conhecida entre a população

O primeiro contato é quase sempre marcado pela desconfiança. De acordo com a assistente social Ingryd Melyna, muitos assistidos chegam receosos à Defensoria Pública pelo fato de a instituição ser um órgão do Estado. É feito, então, um diálogo preliminar informando sobre a atuação da defensoria e da rede a fim de se estabelecer um vínculo de confiança.   

A relação interpessoal é um aspecto central no trabalho da Rede Acolhe, como o próprio nome da iniciativa dá a entender. Segundo a defensora pública Gina Moura, é necessário ver a vítima como pessoa. “Quando a vítima é inserida em um pacote maior chamado ordem pública, você acaba apagando e ofuscando a necessidade dela. Tratá-la como pessoa é um compromisso e uma atuação que temos em relação à proteção da vítima, seguindo uma atuação de acordo com os Direitos Humanos”, explica.

Para tanto, os serviços prestados pela Rede Acolhe vão além da esfera jurídica, contemplando ações de caráter psicossocial. Para tanto, a rede dispõe de uma equipe multidisciplinar formada por profissionais da assistência social, do direito e da psicologia. A assistente social e a psicóloga realizam uma escuta qualificada para que a vítima não seja revitimizada, isto é, para que ela não tenha que narrar o acontecido, o que a levou à Rede Acolhe, várias vezes, tendo de passar pelo mesmo sofrimento a cada depoimento prestado. A partir dessa escuta técnica e qualificada é feito um levantamento da condição social. Busca-se identificar benefícios sociais que caberiam ao assistido, como o Bolsa Família, auxílio maternidade, auxílio funerário e o programa do Aluguel Social. A saúde mental também passa por uma avaliação, uma vez que a pessoa assistida é vítima de violência.  

Os desafios de lidar com a violência institucional

O atendimento jurídico é o serviço de excelência da Defensoria Pública. No caso da violência policial, a atuação da Rede Acolhe acontece em três esferas: Criminal, Administrativa e Cível. A esfera criminal envolve o inquérito e o processo judicial. A esfera administrativa, por sua vez, é a que responsabiliza o agente estatal, na qual as sanções de natureza administrativas podem ser aplicadas, sendo a máxima a perda do cargo.

A esfera cível compreende a responsabilidade civil: por se tratar de uma ação contra agentes estatais, ela é dirigida ao próprio Estado, conforme o nível de governo em que o denunciado se insere, por exemplo, municipal ou estadual. A atuação cível busca também obter uma indenização à vítima, o que por vezes é um processo lento e angustiante. O assistido também conta com a perspectiva do direito à informação, que se baseia no conhecimento da vítima sobre como anda o processo de investigação e também na prerrogativa de que possa intervir sobre o caso.

Em outubro, a Rede Acolhe lançou a pesquisa intitulada “Em busca por Justiça – Investigação dos crimes violentos em Fortaleza: Um olhar da Defensoria Pública do Ceará”, sobre causas, motivações e perfis da vítimas atendidas pelo programa (foto: Defensoria Pública do Ceará)

A defensora Gina Moura afirma ainda que o direito à memória das pessoas atendidas pela Rede Acolhe é um pressuposto do trabalho que fazem. Uma das principais dificuldades das pessoas violentadas pela polícia, por exemplo, é ser reconhecida socialmente como vítima: “É importante que os papéis não sejam invertidos e que as vítimas não sejam criminalizadas. Quando ocorrem esses episódios de intervenção policial, é comum saturar e explorar de forma indevida os antecedentes de quem sofre a violência”.

Diante dessas tarefas, a equipe da Rede Acolhe enfrenta uma série de desafios. A chegada dos assistidos ao programa ocorre por três maneiras: busca espontânea; indicação de equipamentos, como o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Crea) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Cras); e a busca ativa, que foi instalada a partir da pandemia. Mesmo com essa dinâmica, chegar até as famílias das vítimas é um desafio da equipe. Um segundo problema é a dificuldade de encontrar espaços adequados para o cuidado da saúde mental dos assistidos. Os Centros de Atenção Psicossocial estão superlotados, pois só existem 14 para atender a demanda de toda a capital cearense.

Tendo em vista superar as dificuldades de acesso, a Rede Acolhe realiza atividades pensadas para alguns territórios específicos, como os bairros do Bom Jardim, Vicente Pinzón e Barra do Ceará.

APOIO EM MEIO À DOR

Tânia Brito, mãe de Juan Ferreira, adolescente de 14 anos assassinado pela polícia no Morro Santa Teresinha, em setembro de 2019, relatou as adversidades que enfrenta desde o assassinato de seu filho. A história de Tânia foi publicada na segunda reportagem da série do Blog Escrivaninha sobre letalidade policial. Ela é uma das assistidas pela Rede Acolhe.  

A mãe do adolescente chegou ao programa por meio da promotora de justiça Joseana França, que atua no Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (NUAVV), do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Tânia Brito contou que um advogado fez contato com ela, mas o profissional queria ingressar com uma ação apenas na esfera cível, o que não a interessou.

Por meio da Rede Acolhe, Tânia Brito conseguiu abrir um processo nas duas esferas que ela ansiava, criminal e cível. Além disso, a Defensoria Pública atuou para que Tânia e seu marido, que estava desempregado, recebessem ajuda financeira da Cruz Vermelha durante três meses.

O contato com o programa é permanente ao longo de todo esse tempo. Ainda assim, a demora na entrega do laudo da reconstituição do crime, contudo, é algo que a aflige. O prazo de 45 dias foi esgotado. O caminho para que a justiça seja feita é árduo. Mas Tânia, assim como centenas de pessoas, pode contar com o apoio de um programa que faz jus ao nome nessa trajetória.

SERVIÇO

Quer buscar apoio na Rede Acolhe? O contato pode ser feito pelo telefone (85) 98895.5723 ou pelo e-mail redeacolhe@defensoria.ce.def.br

Esta reportagem foi publicada no âmbito do Programa de Jornalismo de Dados de Segurança Pública oferecido pelo Instituto Sou da Paz, do qual o Blog Escrivaninha e a repórter Dayanne Borges participaram.

Sobre a série “Números da letalidade policial em Fortaleza”

O Blog Escrivaninha obteve com exclusividade os números sobre letalidade policial em Fortaleza a partir de um levantamento de dados solicitados à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), por meio da Lei de Acesso à informação (LAI). Para ler as reportagens anteriores, acesse:

De 81 mortos por intervenção policial em Fortaleza, apenas um era negro. É o que dizem os números oficiais

Lentidão e falta de amparo às vítimas são características em comum nos casos de letalidade policial

Em Fortaleza, áreas com maior número de assassinatos possuem menor casos de letalidade policial

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