Por Jean Pierre
Nos artigos anteriores, apresentou-se a retórica da guerra na Segurança Pública a partir do guerreiro e sua diferença em relação ao cidadão e no último, O paradigma filosófico da segurança pública, relacionamos o guerreiro à militarização como este paradigma filosófico. A militarização da Segurança Pública não diz respeito, porém, somente ao guerreiro ou policial militar ou ao homem macho em particular como aquele que age com violência armada para dar segurança à população. Trata-se de um pensamento militar que domina todos na cidade, governantes e governados, e a própria cidade em sua arquitetura urbana, bem como todas as cidades de um Estado. Ou seja, é um pensamento que domina (paradigma) propriamente tudo e todos na sociedade capitalista em que vivemos, que possui uma estrutura particular e geral, isto é, sistemática na realidade que é preciso nomear claramente, isto é, demonstrar como aparece na realidade social esta militarização.
Quando uma sociedade se volta para a guerra, em qualquer território ou época, ela se militariza, isto é, busca uma forma de dar segurança a si. A escolha de um território já demonstra isto, seja ocupado de modo nômade ou sedentário, pois em ambos os casos o que se pretende é a segurança da sociedade, ou seu bem-estar, e podes tê-lo até mesmo nos lugares inóspitos como o deserto onde vivem os nômades asiáticos. Mesmo existindo escassez de alimentos neles, há segurança, pois o espaço aberto permite ver o que e quem vem de longe e se preparar para enfrentá-lo ou fugir por todos os lados, ou seja, permite um controle à distância do que pode trazer insegurança, um inimigo. Cada pessoa no deserto é um panóptico ou uma torre de vigilância a visualizar à distância quem vem e quem vai e, sobretudo, de donde vem e para onde, seja para ser abordado seja para se fugir dele. Com os nômades indígenas na América do Sul antes da colonização hispânica e portuguesa não era diferente, mas é o espaço fechado, denso, das matas e florestas que permite o controle à distância, isto é, ver sem ser visto, em cima de árvores ou por trás delas, como animais à espreita das presas, imóveis, esperando para dar o bote, vigiando quem vem e quem vai, e cada farfalhar de folhas é um sinal de alerta para a captura da presa ou de perigo em se virar presa, e o guerreiro militar é senão formado nas florestas para dar segurança a todos.
Uma sociedade guerreira é uma sociedade em alerta para a guerra, o que quer dizer, para a captura ou fuga em relação ao inimigo, que busca no seu ambiente e em si mesma meios de se assegurar quanto a isto, que espreita o inimigo e pensa de antemão que ele está à sua espreita. É uma sociedade panóptica vigiando tudo e todos inimigos, bem como uma sociedade paranoica se sentindo vigiada por tudo e por todos como inimigos. Todas as sociedades historicamente são mais ou menos guerreiras não importa o quão civilizadas sejam e a diferença entre elas no espaço e tempo é de grau e não evolutiva, dependendo do quanto se militarizam para a guerra, e a mais civilizada é onde há uma maior grau de militarização, a que é mais voltada para a guerra ao contrário do que se pensa.
Se voltar para a guerra não quer dizer estar em guerra constante, mas em se construir toda uma estrutura subjetiva e objetiva para o combate na guerra. Neste sentido, são formados subjetivamente os homens como guerreiros, para serem machos, o que quer dizer violentos, para reagirem a qualquer ação suspeita, inimiga, até mesmo dos mais próximos, que podem lhe trair. Pois se o guerreiro é um traidor é porque não confia ninguém e trai primeiro antes de ser traído, para estar um passo à frente daquele que tente lhe dominar, inclusive, aqueles que pagam seu soldo, os cidadãos, ou o Estado. O guerreiro não confia no cidadão, pois o cidadão pode lhe tirar o poder da guerra, o poder de violentar e de matar inimigos que é, nas sociedades mais civilizadas, o poder do policial e militar. Numa sociedade formada por guerreiros ninguém confia em ninguém, pois há sempre a possibilidade de ser traído, e a subjetividade do guerreiro é a de que alguém vai traí-lo em algum momento, talvez até o fim do dia.
Para além dessa estrutura subjetiva, mas não menos relacionada a ela de modo geral, há uma estrutura objetiva de segurança. Em primeiro lugar, o território escolhido para ser ocupado que dê segurança à sociedade, em segundo lugar, uma fortificação da segurança nele com a construção de estruturas de segurança visíveis: muralhas com torres de vigilância voltadas para o exterior e interior das cidades ou postos de vigilância para inibir inimigos ou sinalizar sobre o perigo deles. Também prisões no interior das cidades para se assegurar de que os inimigos internos sejam vigiados num lugar fixo dando segurança à sociedade. Em segundo lugar, estruturas de segurança móveis na cidade com policiais dando voltas à pé ou cavalo ou em algum meio de locomoção tecnológico à medida que é desenvolvido (bicicletas, carros, motos, helicópteros, aviões, patinetes motorizados, hoverboards, etc.), e todo o armamento militar que pode ser mobilizado. Por fim, estruturas de segurança invisíveis através das novas tecnologias de informática e comunicação, no primeiro caso, a Internet e suas mídias a vigiar cada som, palavra ou imagem das pessoas em qualquer lugar por geolocalização e, no segundo caso, com as tecnologias de câmeras integradas ou não à Internet, e sobretudo integradas a estas com sistemas de reconhecimento facial e biométrico.
Do espaço aberto ao espaço fechado na sociedade civilizada o que se tem é uma militarização dela temendo que algo que lhe aconteça. A vigilância é tanto externa, voltada para o exterior, os que vem de fora, quanto interna, ao interior, os de dentro, e ao mais interior dela e deles em sua privacidade com os dispositivos de segurança em computadores e celulares informando através de boletins de ocorrências instantâneos sobre o perigo. E, neste sentido, cada pessoa nas redes sociais vigia a sociedade e informa à polícia sobre o inimigo quando os sistema de segurança desta são falhos por não chegarem à casa e à vida real e virtual de cada cidadão.
Neste sentido, a militarização como paradigma da Segurança Pública não quer dizer simplesmente mais policiais nas ruas, quer dizer toda uma estrutura subjetiva e objetivamente para se enfrentar um perigo iminente à sociedade. É quando cada cidadão se torna um guerreiro e cada objeto criado tem em vista a segurança pública, ainda que invada a vida privada das pessoas, retirando-lhes sua privacidade. Porém, nesta sociedade militarizada cada cidadão se torna também um inimigo, um traidor em potencial, alguém no qual não se pode confiar, principalmente se está armado, pois pode lhe matar por qualquer motivo, principalmente se você for pobre, jovem, negro, mulher, trabalhador na sociedade.

Jean Pierre
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Ceará e pesquisador do Grupo de Pesquisa Conflitualidade e Violência – COVIO/UECE. Escreve quinzenalmente no Blog Escrivaninha.
Um comentário em “A militarização da sociedade”