O paradigma da segurança pública

Por Jean Pierre

Ao nos perguntarmos no texto anterior guerreiros ou guardiões, o que se coloca em questão não é tanto qual modelo de homem se deve ter como policial militar ou guarda municipal, mas que tipo de Segurança Pública queremos. Se nos remetemos ao homem, em particular, e à escolha do modelo de homem em relação à ela é porque isto impacta direta e imediatamente na vida em sociedade, principalmente no que diz respeito aqueles que não considerados “homens”.

A questão guerreiro ou cidadãos é ética, social, política, jurídica e que diz respeito também à ação policial como conduta a ser adotada. Toda sociedade para se tornar democrática ou civilizada é preciso responder esta questão, bem como todo aquele que queira fazer parte desta sociedade. Ser democrático quer dizer ser civilizado neste caso e não a imposição de uma cultura dita civilizada sobre outra dita selvagem como acontece com o domínio de um Império ou Estado sobre outro em período colonial. A civilização pressupõe a democracia e esta aquela, sem uma das quais a outra não é possível, e a condição para isto é a transformação do guerreiro em cidadão com a limitação do poder bélico do guerreiro militar de destruição da sociedade.

A limitação do poder guerreiro militar é o paradigma da Segurança Pública em qualquer sociedade, o que quer dizer na atualidade a limitação da militarização ou desmilitarização. O paradigma é um pensamento dominante estabelecido em alguma área e que deve ser superado por outro quando não corresponde à realidade. É o que acontece com o guerreiro militar como paradigma que não corresponde mais à realidade de uma sociedade quando esta não está mais em guerra e o Estado se volta seu poder para  uma ameaça interior e não exterior a ele.

Se para qualquer pessoa em tempos de guerra é difícil voltar à realidade social com seus hábitos costumeiros, para o guerreiro militar isto é muito mais difícil. O guerreiro militar é treinado para a guerra e, sem ela, é inútil para a sociedade. Seu comportamento não pode ser o mesmo numa e noutra realidade. É preciso uma mudança dele na realidade social em que vive agora sem guerra. Esta mudança é ética no que diz respeito à mudança da virtude do guerreiro militar para a do cidadão, a do primeiro referindo-se ao uso da raiva, força e violência, a do segundo referindo-se ao domínio de tudo isso pela razão ou pensamento, “coisas” invisíveis de que se tornam visíveis ou adquirem expressão na fala, no discurso e no diálogo com os outros, manifestando seus pensamentos, razões em opiniões e escutando a dos outros.

Se o guerreiro militar é treinado para utilizar a raiva, a força e a violência do corpo e suas mãos numa batalha corpo a corpo ou à distância com tecnologias específicas durante uma guerra, na sociedade isto deve ser limitado pela razão e o pensamento através da fala, do discurso e do diálogo. O que diferencia uma e outra ação ética é o fato de que numa sociedade prevalece a relação de amizade enquanto numa guerra prevalece a relação de inimizade. Qualquer pressuposição de que alguém é um inimigo destrói a sociedade e, neste sentido, qualquer um que venha a se tornar inimigo numa sociedade deve ser limitado pela força ou pela lei.

Numa sociedade em guerra é a força que define um inimigo o qual deve ser limitado por uma força contrária superior, mas numa sociedade sem guerra, é a lei que define quem é ou não é um inimigo e por isso em toda sociedade democrática é restringido o direito de vingança que é próprio do guerreiro militar e das sociedades guerreiras. Não poder agir individualmente com raiva, força e violência quando violentado por outro é o princípio de uma lei democrática quando se transfere o poder de ação guerreiro militar para o poder de todos os cidadãos que elaboram leis e que decidem a partir delas o que deve ser feito àquele utilizou da raiva, força e violência contra outro. Uma sociedade democrática é uma sociedade de amigos ou de irmãos e não é admitida a raiva, a força e a violência em qualquer caso em particular e a legítima defesa não é o direito ao revide e, sim, o direito à anulação da raiva, força e violência em sociedade, no caso, a anulação do poder guerreiro militar pela lei.

O guerreiro militar que é atualmente o policial civil, militar ou federal não pode agir individualmente a partir de uma raiva, força e violência. Seu poder deve ser limitado e esta mudança é necessária inclusive na virtude do guerreiro para o militar quando se observa na Grécia antiga e no Império Romano a limitação da ação individual guerreira de um Aquiles ou Odisseu pela ação militar dos guerreiros em conjunto no exército de Esparta, em que cada um faz parte ombro a ombro de uma sociedade de amigos como corporação. Porém, uma corporação não fundada numa hierarquia na medida em que esta introduz a inimizade entre aqueles que fazem parte dela, por uns serem considerados melhores do que outros, e o militar aqui não é aquele que obedece ordens de alguém e faz o que é mandado, é aquele que obedece a ordem social.

É ao obedecer a ordem social que o policial pode ser considerado um cidadão, um guardião da sociedade em sua ação cotidiana que nunca pode ser individual, raivosa, com força, violência e vingativa.

Jean Pierre

Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Ceará e pesquisador do Grupo de Pesquisa Conflitualidade e Violência – COVIO/UECE. Escreve quinzenalmente no Blog Escrivaninha.

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