O adoecimento policial e o “direito a ter direitos”

As políticas de prevenção não podem se reduzir a meras ações de afastamento do policial adoecido das ruas e/ou sua transferência para outro local de trabalho. E muitas dessas ações são tidas e vivenciadas pelos policiais adoecidos como castigo e não como medidas de tratamento, cuidado e apoio.

Por Glauciria Mota Brasil

A chacina de quatro policiais civis cometida também por um policial civil, ocorrida na delegacia de Camocim, no litoral do Ceará, em 14 de maio, não pode ser visto como um caso isolado. A cena se repetiu no interior de São Paulo, no dia seguinte, quando um sargento da PM matou um capitão e um sargento com um fuzil, também em seu local de trabalho. De acordo com matérias da imprensa, foram três ocorrências em pouco mais de um mês (em 5 de abril, um sargento da PMSP foi assassinado pelo comandante da unidade onde trabalhava, na zona sul da capital paulista).

Se observarmos o histórico dos assassinatos, veremos que estes estão relacionados, segundo depoimentos relatados pela imprensa, às condições de trabalho, ao assédio e, sobretudo, ao adoecimento mental de policiais. Esta realidade não é só local como nacional e, por esse motivo, não pode mais ser ignorada pelos gestores públicos da área da segurança pública e pelos governantes.

Sofrimento psíquico bastante presente

Em pesquisa que realizamos, em 2020, em parceria com pesquisadores de outras universidades, sobre a atuação das Polícias Militares em tempo de pandemia nas cidades brasileiras, um dos achados trata da vitimização do policial submetido aos sentimentos de apreensão, ansiedade, cansaço e esgotamento.

Mais de 40% dos policiais participantes da pesquisa informaram sentir medo, tristeza, desânimo e irritação no cotidiano profissional. Esses depoimentos são reveladores não apenas do adoecimento desses agentes, mas do sofrimento psíquico a que estão submetidos no exercício das suas atividades profissionais que, como tudo indica, parece ter encontrado um espaço de revelação pública durante a pandemia e que não se encerra na pós-pandemia.

São questões que nos levam a refletir sobre o fato das polícias tratarem o problema de saúde e do adoecimento mental dos seus efetivos como caso um caso pontual e de responsabilidade individual, e não tanto institucional.

Para alguns pesquisadores, a saúde mental dos policiais é hoje, no Brasil, um dos problemas mais graves da segurança pública por ter atingido um número expressivo de suicídios de policiais e de atos de violência cometidos por policiais contra seus parceiros e parceiras.

O depoimento a seguir de um ex-policial militar que acabou se desligando, é um exemplo do que estamos falando: “[a] Polícia Militar te adoece até que você se mate ou mate seu comandante”. 

Em relação ao caso dos suicídios, alguns estados como o Ceará têm produzido cartilhas com objetivos de prevenção do suicídio dos membros da corporação. Contudo, para pesquisadores mais atentos, as cartilhas como iniciativas de prevenção dos suicídios “… ainda são fúteis diante do desafio do problema. […] tanto na lógica de gerir seus policiais quanto na lógica de formar seus gestores”.

Migracão das mortes

No Brasil, o policial visto e tido como “herói guerreiro” está bem longe da realidade cotidiana de esgotamento e de sofrimento psíquico profissional que pesquisas como a que realizamos revelam. Períodos como o da pandemia, quando a urgência da saúde pública entrou em cena, parecem ter propiciado aos policiais espaços de admissão de problemas estruturais e subjetivos que dificilmente se revelam em outros momentos da vida social com exceção das denúncias que vem a público como o assassinato progressivo de policiais por policiais como estamos assistindo.

Nesse contexto, há que se mencionar que as polícias brasileiras são consideradas as polícias mais letais do mundo devido ao alto número de mortes em decorrência de suas abordagens violentas, na sua maioria, das populações moradoras das periferias, pobres, de baixa escolaridades e jovens do sexo masculino.

Observo, como pesquisadora, haver um movimento dessa letalidade policial como fenômeno migratório tipificado por ações de policiais que se matam (ou tentam se matar) e por ações de policiais que matam parceiros e parceiras. Nesse contexto, o problema é estrutural e estruturante e não adianta apenas mudar a “formação” das forças de segurança, que hoje está reduzida a ritos ligeiros de passagem em muitos estados, se a estrutura de poder dos dispositivos policiais não alterar a racionalidade organizacional e hierárquica da cultura policial tendo como referência o fato de que quem cuida da manutenção da “lei e da ordem” na sociedade também precisa de cuidados.

É preciso repensar o funcionamento das instituições

Mantido o quadro atual, as coisas tendem a recrudescer mais ainda. E como alterar o que está posto? Por meio de políticas públicas efetivas que repensem o funcionamento das instituições policiais, das suas estruturas hierárquicas de poder, tendo como eixo norteador a racionalidade do ordenamento constitucional que determina como deve se organizar e agir os dispositivos policiais no estado democrático de direito em vez de se guiar por ações insensatas de chefias patriarcais que escolhem fazer uso despótico das hierarquias de comando sem se preocupar com a reverberação dessas ações nas condições de trabalho dos efetivos policiais.

As polícias são dispositivos tanto de repressão como de prevenção à criminalidade e, nesse cenário, a saúde mental dos seus efetivos é condição sine qua non para o êxito das atividades de manutenção da “lei e da ordem” na sociedade. Os gestores precisam conhecer as causas que podem levar ao adoecimento policial para se antecipar e prevenir, por meio de diretrizes e estratégias de curto, médio e longo prazo, acontecimentos que estão gerando assassinato de policiais por policiais. E não se faz isso sem conhecimento!

É necessário tomar conhecimento de outras realidades e abordagens de prevenção ao adoecimento policial visando compreender melhor o que está acontecendo para identificar e propor soluções objetivas. Há que se fazer isso com o objetivo de desmontar armadilhas, tendo como apoio processos formativos que valorizem a condição de humanidade do policial, assim como a sua saúde mental e física por meio da educação continuada dos efetivos policiais e dos gestores da área da segurança pública para melhor gerir as políticas públicas de prevenção ao adoecimento mental.

As políticas não podem se reduzir a meras ações de afastamento do policial adoecido das ruas e/ou sua transferência para outro local de trabalho. E muitas dessas ações são tidas e vivenciadas pelos policiais adoecidos como castigo e não como medidas de tratamento, cuidado e apoio. Políticas públicas de prevenção são ações continuadas de cuidados que demandam políticas de retaguarda, dependem de interlocuções permanentes com outras políticas e áreas como a saúde pública uma vez que o adoecimento policial se tornou um problema de saúde pública.

Por fim, não se pode ignorar que o policial é um ser biopsicossocial. Mais que um “herói guerreiro” impávido que morre pela instituição, é um ser humano que, para cuidar da sociedade, carece de cuidados que lhe garantam o “direito a ter direitos”. 

Glauciria Mota Brasil

Professora emérita da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e coordenadora sênior do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética da Universidade Estadual do Ceará (Labvida). Pesquisa a área da segurança pública há mais de 30 anos.

Publicidade

Um comentário em “O adoecimento policial e o “direito a ter direitos”

  1. Tudo que é proibido é crime??? Vi essa pergunta em um site. Olha gente, aqui nesse país de um judiciário que vive de aparência para matar a população e usando as denuncias que eles fazem para isso!!! o CRIME ORGANIZADO É O JUDICIÁRIO!!! OS COMPORTAMENTOS FALAM POR SI SÓ

    Aqui crimes é só da população. Porque a meses tentam matar uma moça em CAMPINAS-SP- E TODO MUNDO IGNORA. OU SEJA, OU ELA MORRE, OU ELA MORRE!!! NOSSO OBJETIVO É ESSE- ATITUDES DA PROMOTORIA DA CIDADE DE CAMPINAS QUE FICA NA CIDADE JUDICIÁRIA E TODA A POLICIA BRASILEIRA- QUE NUNCA EXISTIU. A tática de “nois é assim gente”: “NOIS MATA AS FAMILIAS, E ESCONDE QUASE TUDO E FICA ASSEDIANDO QUEM DENUNCIA- NOSSA TÁTICA DE MATAR É ASSIM- SABIAM DISSO???!!! REPITO ATITUDES E TÁTICA DA POLICIA HONRADA BRASILEIRA E SEU JUDICIÁRIO!!! E ELES GOSSSSSSTAAAAAM- PORQUE POLTICAGEM É COM ELES MESMO!!! ENTÃO GENTE, QUANDO CADA UM CITAR DISCURSOS FERVOROSOS FALANDO EM CONSTITUIÇAO- USA PARA LIMPAR A BUNDA!!! E vulgaridade eles adoram, desprezam as pessoas por isso, o objetivo deles é que se chegue a VULGARIDADE. Sabiam disso também???!!! PORQUE AQUI EXISTEM PESSOAS QUE SÓ PENSAM EM BUNDA, E NÃO NO CORAÇÃO- ELA É IGNORADA GENTE!!! ESPERAM A MORTE DELA- ENTÃO É PENSAR MAIS NO CORAÇÃO É MENOS NA BUNDA- É ISSO QUE SE PEDE A TODO MUNDO

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: