Não é admissível que as únicas alternativas para lidar com essa questão se resumam a essa guerra sem fim contra as drogas cujo efeito colateral é a superpopulação carcerária. O centro de toda essa política está na concepção de que o usuário é um criminoso em potencial igualando-o ao traficante
Por Ricardo Moura
Sem muito alarde, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, recolocou em pauta uma questão central para a política de segurança pública no Brasil: a descriminalização do porte da maconha para consumo próprio. Até o momento, há três votos favoráveis a essa decisão. Como o caso tem repercussão geral reconhecida, a perspectiva de que a descriminalização possa ser aprovada traz novas possibilidades sobre a forma como nós, como sociedade, lidamos com os entorpecentes.
O fato motivador para que esse assunto entrasse na pauta do STF foi um recurso apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo. Em 2010, Francisco Benedito de Souza foi condenado à prestação de dois meses de serviços comunitários após ser flagrado com três gramas de maconha em sua cela em uma prisão paulista. A decisão ampara-se no artigo 28 da Lei de Drogas que prevê penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”.
Contudo, essa tipificação penal, de acordo com a defensoria, ofenderia o princípio constitucional da intimidade e da vida privada. A Procuradoria-Geral da República (PGR), por sua vez, defendeu a constitucionalidade do artigo e a criminalização sob a alegação de que o consumo de entorpecentes não afetaria quem usa a droga, em sua privacidade, mas a sociedade como um todo.
O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, disse, em seu voto, que a criminalização estigmatiza e compromete medidas de prevenção e redução de danos, além de se configurar como uma punição desproporcional ao usuário. Como um elemento de sua argumentação, o ministro fez menção a um estudo em países que descriminalizaram as drogas: não houve aumento no consumo em nenhum deles.
Os grupos mais conservadores já começaram a se manifestar nas redes sociais de forma contrária à descriminalização. Conversei com uma dessas pessoas e até mesmo versículos bíblicos foram utilizados na tentativa de defesa desse argumento. Essa é uma amostra sobre como o assunto é tratadode uma forma muito moralizante, em vez de ser analisado a partir de uma ótica mais objetiva e madura.
A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) comemorou, em seu site, o aumento de 188% no número de apreensões de drogas em abril deste ano na comparação com abril de 2022. No quadrimestre, o crescimento foi de 32,8%. Os números mostram uma polícia atuante e cuja inteligência tem sido capaz de interceptar parte do fluxo de entorpecentes que abastece o tráfico.
No entanto, quando pensamos em uma política realmente consequente em relação ao consumo de drogas, a sensação é que se está enxugando gelo. Não é admissível que as únicas alternativas para lidar com essa questão se resumam a essa guerra sem fim contra as drogas cujo efeito colateral é a superpopulação carcerária. O centro de toda essa política está na concepção de que o usuário é um criminoso em potencial igualando-o ao traficante na responsabilização.
Como a lei não especifica uma quantidade máxima permitida em posse do usuário, é plenamente possível que uma pessoa com três gramas de maconha seja tratada com o mesmo rigor de quem é flagrado conduzindo um caminhão abarrotado de entorpecentes. Da forma como está, a legislação mais atrapalha que ajuda. Além disso, sabemos muito bem que a tolerância das autoridades com esse tipo de crime varia conforme o status social e a cor da pele de quem é detido. Dependendo de qual família você pertença, é possível até mesmo pilotar um helicóptero repleto de cocaína e sair impune.
Por fim, também não é possível estabelecer uma ligação direta entre o consumo de entorpecentes e os homicídios, argumento que vez ou outra dá margem a cruzadas morais visando à “erradicação” das drogas. Nos mercados mais “profissionais” de compra e venda de entorpecentes, as mortes diminuíram. No Ceará mesmo, os picos de assassinatos se devem a disputas entre organizações criminosas sobre uma atividade ilegal. Na medida em que essa relação se encontra “pacificada”, os homicídios caem.
Descriminalizar as drogas tiraria boa parte do poder dos grupos armados, mas há interesses escusos para que essa situação se mantenha. A proibição enseja a criação de um mercado paralelo que sustenta muita gente e não estou me referindo apenas aos traficantes. O crime só se organiza com a conivência de agentes públicos e econômicos. O Velho Marx, já em seu tempo, destacava a imensa cadeia produtiva que se ancorava na figura do criminoso. Enquanto essa lucrativa engrenagem se mantém, sua peça mais vulnerável, o usuário, paga uma pena desproporcional para que todo o sistema funcione. O STF pode por um fim nisso.