Familiar e egresso relatam torturas e maus tratos nas prisões

O sistema penal costuma ser opaco para quem está de fora. Por isso, os relatos em primeira pessoa são importantes para que a sociedade possa conhecer a rotina e o cotidiano de quem cumpre pena nas unidades prisionais do Ceará. Durante uma live promovida pelo Blog Escrivaninha, mães e familiares pediram a palavra e foram ouvidas. O que elas têm a dizer é incômodo e desafiador. Do pagamento das próprias vestes dos presos a agressões gratuitas sob a alegação de um procedimento a ser cumprido. O sistema maltrata, humilha e revolta. É esse o modelo de ressocialização que queremos?

Por Luiza Vieira (especial para o blog) e Ricardo Moura

A live promovida pelo Blog Escrivaninha na última quarta-feira, dia 4, contou com uma inesperada participação de uma mãe de um detento e um egresso do sistema prisional cearense. Ambos relataram as agruras vividas pelos presidiários perante um cenário de violências institucionais, como torturas e maus tratos. As identidades serão preservadas por motivo de segurança.
Lúcia é mãe de um interno que cumpre pena no Interior do Estado. Ela alega ter sido barrada de ver o filho porque possui um processo em andamento na Justiça. Caso os detentos não sigam estritamente as ordens dos agentes, explica, eles são punidos com situações de extrema tortura.
“Os agentes dizem que quem manda lá (na penitenciária) são eles. Caso não sigam as regras impostas por eles, os detentos são enviados para o isolamento. Muitas vezes os internos têm de se sentar no chão quente, despidos e não podem se mexer. Caso haja algum movimento são punidos com açoites ou spray de pimenta”, comenta.
De acordo com seu depoimento, o dia a dia dos internos inicia logo cedo. Os que possuem condições de fazer um curso, fazem. No entanto, os que não dispõem dessa prerrogativa voltam para a cela. Depois voltam para a cela. Tem a rotina do alimento. Tem de comer tudo, não podendo deixar nada pra depois, se não vão para o isolamento e a tranca.
A mãe do interno menciona que os agentes não torturam os internos apenas fisicamente, mas psicologicamente. Por vezes eles procuram desestabilizar os detentos psicologicamente, utilizando palavras de baixo calão. “A lei do sistema é que a família é sagrada, mas eles tentam atingir os internos de qualquer maneira, fazendo diversas ofensas aos familiares como as mães e as esposas”, comentou.
No que diz respeito às visitas aos detentos, é solicitado que os visitantes levem consigo um “malote” contendo duas bermudas laranjas, duas cuecas brancas sem detalhe, duas camisas brancas sem detalhe, uma sandália, lençóis, produtos de higiene e um colchão.
“O malote é disponibilizado na entrada da penitenciária e custa em média 380, 400 reais. É muito caro. Muitas vezes deixamos de comer para comprar um malote, e quando eles (agentes) não querem simplesmente jogam no lixo”, comenta.
Lúcia alega que o Sistema Carcerário está superlotado, e isso ocorre devido às punições realizadas pelos agentes, resultando na transferência dos detentos da Capital para o Interior e vice-versa. “Quando os internos tentam revidar as badernas que os agentes iniciam são transferidos para outra Unidade. Muitos detentos de Fortaleza vieram do Interior como forma de punição. Ano passado foram encaminhados 20 internos para Fortaleza enquanto os familiares moram no Interior. Aqui não tem um albergue para abrigar as famílias, precisamos nos virar para poder visitá-los”, finalizou.
Nathan Benício, vice-presidente do Conselho Penitenciário do Ceará (Copen), afirma que as denúncias relacionadas ao desperdício dos malotes são postas em relatórios e encaminhadas pelo Conselho à SAP, solicitando o direito a uma devolutiva dos produtos. Segundo ele, a situação foi apresentada aos membros da secretaria que teriam exibidos reações de surpresa com esse cenário. “Nós apresentamos isso em reunião e o secretário ficou surpreso, parecendo não ter conhecimento desses pormenores. Ele mencionou que não deve haver critérios diferentes para cada Unidade, mas aparentemente isso não se resolveu, então vamos continuar lutando para que se resolva”, argumenta.

Revolta e agressões

Marcos, egresso do Sistema Penitenciário, descreveu na live um pouco do que viveu durante os seis meses em que esteve cumprindo detenção. Ele relata que, após ser liberado pela Delegacia de Capturas (Decap), o preso é encaminhado para a Unidade Prisional de Triagem e Observação Criminológica (CTOC), um centro de triagem onde são feitos exames e traçado um perfil criminológico antes do interno ser encaminhado a uma das unidades prisionais do Estado.
“Lá fizemos aquele procedimento de raspar a cabeça e tirar a barba. Na hora do banho de sol eles chamam X1, X2, que se refere ao número das celas, mas como não entendemos o que aquilo significa, fazemos da forma errada, então eles nos batem. Primeiro eles nos batem, depois eles ensinam como é o procedimento”,relatou.
O ex-detento mencionou que o banho de sol é realizado ao longo da manhã, por volta das onze horas. O procedimento consiste em sair da cela sem roupa e mãos na cabeça, e caso o interno cubra as partes íntimas é punido violentamente. A saúde também é um ponto a ser discutido, visto que os detentos não recebem medicação caso solicitem. O egresso afirma que as pressões psicológicas e punições são recorrentes. “Teve uma semana que fiquei sem receber o malote porque estava organizado da maneira errada, a certa seria: a toalha, as camisas, o calção e as cuecas, nessa sequência. Passei 15 dias sem nada, acho uma falta de respeito com a família, que trabalha muito pra comprar o malote, paga uber, paga ônibus”, ponderou.
Socos na costela, banhos de sol com os joelhos no chão quente e presos nus em celas seriam situações existentes em tais locais. “A gente passa por um sofrimento. Um dia eu apanhei porque coloquei as mãos na cabeça e não cruzei os dedos. Eles deram cinco, seis lapadas na minha mão porque eu não estava com os dedos cruzados com uma tonfa. Isso é uma coisa que deixa a pessoa revoltado. Se não tiver o psicológico bom, a pessoa já chega doida na unidade”, descreve. Marcos afirma que os internos são coagidos para não denunciarem as punições e torturas sofridas nas prisões.
Sobre o funcionamento das facções no Sistema Prisional, Marcos revela que, no momento da triagem, o interno é questionado se é ou não faccionado. Se não integrar uma facção, é considerado “massa carcerária, não faccionada”. “Se você não fizer parte de nenhuma facção você faz parte da massa carcerária. O certo seria ir para uma cela onde não tem faccionados, mas eles colocam você com todo mundo por um certo tempo, Comando Vermelho, Guardiães do Estado (GDE) e massa carcerária. Logo após, fui transferido para a Pacatuba, onde só tem massa carcerária, sem faccionados”, informou.
As declarações do egresso relataram que a rivalidade entre membros da facções é amenizada no interior das unidades prisionais, pois, segundo ele, a violência partiria principalmente dos próprios agentes penitenciários.

Serviço:
Sede do Conselho Penitenciário do Ceará- Rua Tenente Benévolo n° 1055
Horário de atendimento- todos os dias úteis das 8h às 17h

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