O modelo de atuação das facções no Estado tem gerado um custo imenso de vidas humanas. Já não há mais tantos “seres matáveis” dispostos a dar a vida por um conflito sem fim e, por muitas vezes, visto como sem sentido algum. Manter essa condição, em um contexto de vulnerabilidade social agravado pelos efeitos da pandemia, parece ser insustentável até mesmo sob o império da violência e do medo. Este é um terreno fértil para a ascensão dos “neutros”, com todo o rastro de violência que os processos de tomada de territórios deixam.
Por Ricardo Moura
Enquanto nossa atenção está voltada aos jogos do Brasil na Copa do Catar, algo muito sério acontece nas periferias de Fortaleza: o mundo do crime vem sendo reconfigurado à força por uma terceira organização criminosa. Denominado de “neutro”, esse novo grupo armado entrou no radar das autoridades a partir do primeiro semestre de 2021 diante do enfraquecimento das duas principais facções do Ceará: Guardiões do Estado (GDE) e Comando Vermelho (CV).
Por dois anos, entre 2017 e 2018, as duas organizações criminais travaram uma guerra sem precedentes na disputa por pontos de venda e pelo predomínio sobre comunidades inteiras fazendo com que o Ceará batesse recordes nos números de assassinatos. Como resposta, desde 2019, o Governo do Estado promove medidas no sentido de reprimir a ação de tais grupos, como as profundas mudanças ocorridas na gestão do sistema prisional, dificultando a comunicação entre os presídios e as ruas, bem como operações policiais que desarticularam lideranças e cortaram rotas de financiamento do tráfico.
Nesse ínterim, a resistência local que dará origem à ideia de neutralidade em relação às duas principais organizações ganhou fôlego. As comunidades se viram sufocadas pelos salves (ordens vindas do tráfico) abusivos do CV e da GDE, bem como pela extorsão dos próprios moradores sob a forma de pedágios. No Grande Jangurussu, epicentro do fenômeno das facções em Fortaleza, a gota d’água se deu no dia 25 de abril de 2021, após a Chacina do Barroso, em que cinco pessoas foram executadas.
De acordo com relatos obtidos pela coluna, a chacina foi um divisor de águas na relação já conturbada que havia entre o Comando Vermelho e a comunidade do Campo Estrela, no Jangurussu. Para se vingar da GDE por causa da morte de uma liderança, as vítimas foram escolhidas a esmo e sem que tivessem qualquer ligação com o crime organizado. A ação teria rompido qualquer princípio de razoabilidade na percepção dos moradores locais e, por consequência, o rompimento com o CV tornou-se inevitável. Daí a nomenclatura “neutro” como uma tentativa de fortalecerem uma terceira via em meio aos dois principais grupos criminosos do Estado.
Essa busca por uma autonomia territorial visa, sobretudo, atender interesses e demandas mais localizadas. Mudanças desse porte, contudo, geram reações violentas. Na semana passada, os “neutros” divulgaram suas novas conquistas nas redes sociais: a “neutralidade” das comunidades do Maria Tomasia, José Euclides, Sítio São João e Casinha, áreas do Grande Jangurussu e Grande Messejana tradicionalmente pertencentes às duas principais facções do Estado. O conflito foi reportado por O POVO no sábado. Uma das mensagens trazia a seguinte inscrição (o texto foi adaptado para melhor legibilidade): “Não existe mais facção aqui dentro da área. Queremos paz para os moradores”.
Em uma espécie de manifesto, os integrantes dos “neutros” afirmam agir “pelo certo”. “Não somos pirangueiros”, fazem questão de deixar claro. A mensagem prossegue: “Jamais nossa ideologia se bate com a ideologia desses cachorros que obrigam os membros deles a pagar pedágio. Que facção é essa que você paga para ser bandido? Que mata os irmãos se eles não pagarem 50 reais? […] Qualquer besteira é motivo de decreto e de oprimir bandido […] O crime certo não vai recuar, vamos guerrear para acabar com essa raça imunda de GDE safado”.
Como se vê, ao contrário do que o senso comum costuma crer, ética e moralidade também são elementos constituintes do mundo do crime. A repressão contra quem ousa se insurgir é imediata. Os picos de violência letal registrados em Fortaleza quase sempre seguem essa lógica de ação e reação. No entanto, recentemente, determinadas práticas, até então toleradas, passaram a ser objeto de contestação.
O modelo de atuação das facções no Estado tem gerado um custo imenso de vidas humanas. Já não há mais tantos “seres matáveis” dispostos a dar a vida por um conflito sem fim e, por muitas vezes, visto como sem sentido algum. Manter essa condição, em um contexto de vulnerabilidade social agravado pelos efeitos da pandemia, parece ser insustentável até mesmo sob o império da violência e do medo.
Enquanto isso, os moradores vivem dias de horror na busca por essa “paz” prometida pela neutralidade dos territórios. Em um relato obtido pela coluna, uma moradora afirma que a situação vivida pela comunidade “tá uma Ucrânia”, referência direta à guerra que envolve o país e a Rússia. Somente uma imagem bélica seria capaz de dar conta da realidade de milhares de pessoas que se veem impedidas de acessar serviços básicos como saúde e educação em seu cotidiano. O torpor causado pela experiência de torcer em uma Copa do Mundo encerra-se dia 18. O sentimento de pânico experimentado por quem vive na periferia de Fortaleza parece não ter fim.