“O Estado não é um agente humanizador. O Estado é mantenedor dessa condição de privilégio”, afirma novo presidente do Copen

O professor Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), e Leonardo Aquino, bacharel em Humanidades e estudante do Curso de Licenciatura em Sociologia (Unilab), conversaram com Cláudio Justa, recém-empossado presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará (Copen) para uma pesquisa realizada no maciço do Baturité (CE) sobre o uso da prisão provisória. A entrevista ocorreu em junho de 2019 quando o Conselho enfrentava um processo de desgaste em relação à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). O cenário descrito do sistema prisional, contudo, mudou pouco em relação ao ano passado. Justa é um profundo conhecedor do tema. Sua análise é uma grande contribuição para entendermos as dinâmicas prisionais no Ceará e a lógica que opera no interior das políticas de segurança pública. Confira:

O senhor poderia nos falar um pouco sobre a sua atuação e como funciona o conselho penitenciário, como tem sido feito o trabalho junto ao governo do estado?
O Conselho Penitenciário (Copen) é um órgão vinculado à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), portanto, vinculado ao à Secretaria de Administração Penitenciária, e tem como objetivo fiscalizar a execução da pena ou, mais amplamente, as condições do encarceramento. Então, você tem um encarcerado que está apenado, que é um tipo; e você tem o encarcerado que é provisório. É aquele que está sofrendo uma medida restritiva de liberdade, mas ainda não pesa sobre si uma condenação. O objeto da execução da pena é o condenado, mas excepcionalmente nós temos o provisório, que é aquele indivíduo que ainda não sofreu uma certeza jurídica da sua culpa, mas mesmo assim está sofrendo a constrição da liberdade. E aí, no momento do encarceramento, esses dois se igualam, do ponto de vista das garantias de direito. Eu poderia definir o Copen como o “conselho do encarcerado” ou “do conhecimento sobre o encarcerado”. Ele vai exatamente trabalhar nas condições desse encarceramento. Nós temos uma autonomia porque somos fiscais, só que é uma autonomia que eu chamaria de “imprópria”. Por que que eu chamo imprópria? Porque nós estamos vinculados ao Executivo. Nós fiscalizamos o Executivo. O Executivo é quem implementa a execução da Pena do ponto de vista administrativo. É quem coordena os presídios, quem nomeia os diretores e nós temos o Judiciário, o juiz da execução. E o Conselho fiscaliza, teoricamente, os dois: tanto se o juiz está cumprindo o seu dever jurisdicional de aplicar a medida adequada, como se o Executivo está cumprindo os preceitos da lei de execução penal. O que é que ocorre? Nós estamos vinculados ao Executivo. Então, todo o nosso orçamento, toda a nossa logística, depende do Secretário de Justiça, agora não mais, agora o Secretário de Administração Penitenciária. Então, é complicado. Porque se eu tiver uma inspeção de urgência sobre uma suspeita, por exemplo, uma denúncia de tortura, eu tenho que comunicar ao Secretário para ele liberar o carro.

Vocês conseguem articulação? Com o ministério público ou tem que passar sempre primeiro pelo Secretário?
Veja o complicador: Nós do Conselho estamos prontos à checagem de uma denúncia grave de tortura. Mas eu tenho que avisar ao fiscalizado que eu vou fiscalizá-lo.

Então a situação atual deixa os conselheiros desconfortáveis, sem poder agir?
Claro. E chegando lá eu teria teoricamente a possibilidade de entrar na Unidade. No entanto, eu tenho que comunicar o Diretor. Então, esse desenho institucional, ele compromete de forma sub-reptícia o funcionamento da fiscalização.

É recente esse desenho?
Não, esse desenho institucional do Conselho como órgão dependente, ele sempre foi. Ele é autônomo no ponto de vista funcional. Mas do ponto de vista orçamentário, essa logística, ele absolutamente dependente. Então nós não temos uma condição de autonomia que faça frente, por exemplo, a uma resistência do Estado a ser fiscalizado. Nós teríamos que nos socorrer de outro órgão mais autônomo, no caso o Ministério Público ou mesmo do Judiciário para viabilizar essa fiscalização.

Vocês foram eleitos ou foram escolhidos pelo Executivo?
A composição do Conselho ela é paritária. Então, os órgãos públicos indicam conselheiros, nomes, que serão avaliados pelo governador. É discricionário dele nomear, os órgãos públicos e a sociedade civil. Então nós temos, dos órgãos públicos: os membros do Ministério Público Federal e Estadual; a Defensoria; incluiria aí a OAB; o Conselho Regional de Medicina; e nós temos a sociedade civil, que aí inclui: o conselho da comunidade, a pastoral carcerária e o sindicato dos agentes penitenciários.

Inclui alguém do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, alguma relação entre os dois?
Não.

Cláudio Justa, Advogado criminalista. Com especialização em direito constitucional pela Escola Superior de Advocacia de São Paulo. Ingressou no conselho penitenciário em maio de abril de 2016. Assumiu a presidência do órgão de janeiro de 2017 a fevereiro de 2019.

Eu já participei de algumas reuniões do Conselho Estadual de Direitos Humanos e por outro lado é difícil para eles chamarem às vezes alguns representantes do próprio governo para participar nas reuniões do conselho.
O Conselho Estadual dos Direitos Humanos tem prerrogativas assemelhadas do ponto de vista de poder fiscalizar encarcerados, mas é um Conselho do ponto de vista político muito menos potente do que o COPEN. Ou seja, é muito mais fácil para a Administração Penitenciária impedir a entrada ou a inspeção do Conselho de Direitos Humanos do que do Conselho Penitenciário. Mas nesse novo desenho institucional eles impediram os dois. Tanto que nós tivemos que apelar para o Mecanismo [Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura]. E eles não impediram, no entanto, não deram bola. É incrível: nós apelamos para o Mecanismo, porque o Mecanismo é uma perícia oficial do estado brasileiro no tocante a condições de tortura. Se o Ministério Público não dá bola, se o governo do estado não dá bola, então… Percebe? Nós estamos vivendo um movimento de silenciamento e de esvaziamento da fiscalização no tocante a direitos humanos. Quando o Jair Bolsonaro elogiou o Camilo, ele estava falando disso: “estamos alinhados em silenciar não só a universidade, porque é um centro de reflexão e de crítica, mas aqueles desdobramentos que podem realizar-se como fiscalização efetiva”.

Eu costumo falar sobre essas contradições da coalizão política de um governo associado à esquerda, mas que é elogiado pelo Jair Bolsonaro como exemplo de política que funciona sem direitos humanos.
Isso.

Vocês conseguem ter um acompanhamento dos dados, algum tipo de transparência com relação às atitudes e iniciativas da Secretaria de Administração Penitenciária? Por que está tendo todo um planejamento digamos duro e um tanto quanto radical, com fechamento de cadeias públicas, possibilidade de planejar expansão de penitenciárias…
Veja, o Ministério Público endossou as práticas da atual gestão penitenciária. A Defensoria Pública, se não endossou, não denunciou. E o Judiciário, calou. Ou consentiu na medida em que não interditou quem poderia interditar. Os únicos órgãos, vamos dizer assim, o órgão mais efetivo que poderia se opor era o Conselho, no caso da questão penitenciaria. E nós nos opusemos. E estamos vivendo um processo de desmonte. Hoje eu estava na sessão do conselho, que é composto por padre Marcos Marcelino, membro da pastoral carcerária, a presidente do conselho, a Ruth Leite e Yasmim, delegada e nós meio que decidimos renunciar. Nessas condições não vamos trabalhar [Obs: O entrevistado esclareceu posteriormente que a renúncia era uma intenção naquele momento, mas que não ocorreu. Os mandatos dos titulares terminaram pelo decurso do tempo].

Vocês vão expor renúncia carta pública?
Em carta pública. Vamos explicar por que que os outros órgãos abraçaram a gestão. Qual a natureza dessa gestão e porque ela volta para algo que é confortável, mas violento, que é silenciar. Na verdade, voltamos à invisibilidade do sistema penitenciário pela força, não pela lei. O discurso é: “estamos executando a lei de execuções”. A conversa, na verdade. Eles estão reprimindo pela força. Uma hora isso vai explodir. Os órgãos de controle institucional, no caso, o Ministério Público, Defensoria e o Conselho é que teriam o dever de dizer: “Não, isso não é cumprimento da lei. Isso é contenção, intervenção pela força”. Periciado pelo Mecanismo, não o fizeram. Só o conselho. Se você pegar um único órgão oficial do estado que emitiu nota pública, depois da emissão do relatório do conselho do Mecanismo, foi o Conselho Penitenciário. E nós estamos sofrendo todo tipo de… eles não conseguem fechar porque é algo em lei federal, enfim, mas eles vão esvaziando.

Vocês vão denunciando, aí talvez eles vão colocar pessoas que não tenham histórico…
É. E aí quem tem algum histórico dentro dessa caminhada não vai permanecer. E aí nós decidimos hoje, é até algo inédito aí para vocês: vamos renunciar. E vamos renunciar e vamos denunciar que o que está sendo feito no estado do Ceara é uma contenção arbitrária, afeita à tortura, é contra os condenados que teoricamente eram condenados segundo a lei, mas eles não estão sendo tratados segundo a lei, eles estão sendo tratados segundo o “etiquetamento social”. Nós estamos denunciando o sistema de justiça. O sistema de justiça não está seguindo a lei. A lei é uma ideologia do sistema de justiça. A lei representa uma aparência. Mas a sua efetividade é absolutamente violenta e politicamente militante.

Embora não haja uma narrativa explícita sobre o porquê desse funcionamento né? Mas isso talvez se ligue, as versões que se constroem sobre isso, é porque é uma política de sucesso no combate às facções. Eu acredito que seja uma narrativa implícita, não sei se é uma narrativa explicita, em relação a isso. Você acabou de falar que isso vai explodir…
Veja, quando você pega o fenômeno das facções criminosas, você tem de entender como é que elas se estabelecem. Se você pegar o mapa da violência histórica (não é a violência de dez anos para cá), as zonas mais violentas do estado do Ceará não eram muito diferentes das zonas atuais. Bom Jardim, Jangurussú…Eu digo aqui em Fortaleza. Elas foram só turbinadas pelo ingrediente de natureza econômica, que permite um maior volume de engajamento desses jovens que estão absolutamente fora da capacitação, da capacidade de geração de renda. Então, as facções, elas representam um fenômeno que não está deslocado ou descolado da vulnerabilidade social já existente. Não existiria esse padrão de criminalidade sem essas condições previamente estabelecidas. Quando você tem uma política de repressão, apesar de ela ter sido pensada como não repressora no Ceará Pacífico, mas ela resultou em repressão, ela não consegue superar a realidade efetiva. A menos que tivesse superado a realidade efetiva, você teria um outro padrão de comportamento do Estado. Mas não superando a realidade efetiva você não teria outro caminho senão a repressão. Mais repressão. Então o Estado ampliou a sua capacidade repressiva sobre aqueles que se insurgem […] Eles aparecem como epifenômeno de crime organizado, mas na verdade, eles são insurgência da exclusão. Pensando assim, como insurgência da exclusão, primeiro, a violência é intrínseca às relações sociais. Os controles disso é que são diferenciados. Quando você tem uma margem de exclusão muito grande, você não tem muito controle sobre a emergência da sua violência, ou sobre a natureza dessa violência. No momento que você introduz um ingrediente econômico, o tráfico de drogas, que é um ingrediente comercial, em um lugar tão vulnerável, você incendeia. Qual é a única resposta do Estado, já que ele nunca teve uma outra antes? É punir, prender, matar. Na verdade, existe quase um planejamento para matar. Por que? No momento que você estabelece a guerra, você estabelece a legitimidade do alvo e o alvo é mortal. Então, “ou é cadeia ou cemitério”

Em algum momento o Ceara Pacífico surgiu como o melhor desenho possível de uma política de segurança pública como plano. Mas as ações do governo parece que foram cada vez mais se autonomizando com relação ao discurso do programa. Pensando no interior do Ceara, é o Raio né? A concepção territorializada de segurança e política pública integrada perde totalmente espaço para gestão que vem com a segurança pública da força. Contra aquele ideário do Ronda do Quarteirão né? Algo que acontece na capital também. Eu falo do interior, porque lá ficou muito mais evidente. Não existe outra estratégia. É o Raio. Eu queria só complementar: eu acho que faz sentido com o que você está falando: há a vulnerabilidade externa dos territórios, a exclusão econômica fora, mas também a vulnerabilidade das prisões. Esse duplo fator né?
Tanto que uma se tornou o território da outra. Veja, as prisões não eram do Estado, no seu sentindo ideal. As prisões estavam mais próximas do lugar de vulnerabilidade do preso, do que daquilo que nos idealizamos como Estado. Obviamente que o domínio sobre as prisões era uma questão de tempo. Por quê? Porque nós não tínhamos exatamente, digo o Estado não tinha controle sobre as prisões. Você tinha um confinamento e um confinamento de forma muito peculiar. Você estabelecia arranjos muito próximos dos arranjos que se fazem dentro das zonas de vulnerabilidade. Ou seja, o Estado operava ali à semelhança de como opera em uma zona de vulnerabilidade. Então, você tinha aí um preso um pouquinho mais agraciado, outro um menos. Mas essa era a forma possível de humanização e eu digo de singularização de tratamento dentro daquilo que seria o espaço prisional. O que acontece hoje e a retomada é basicamente essa ideia, e não é exatamente retomada, porém é um saneamento infra estrutural do sistema. Seria torná-lo exatamente um território idealmente do Estado, não faz com que o estado tenha essas condições objetivas. O que que ele faz? Ele amplia a força de vigilância. Isola, reprime, bate, sufoca. Então aquilo que seria um espaço de acomodação humanitário possível se tornou insustentável. Porque ele nem consegue fornecer as condições para o cumprimento da lei e nem, ao mesmo tempo, consegue permitir esses arranjos que foram permeados pelas facções. Veja: para impedir o fluxo de influência das facções, ele criou uma situação absolutamente inóspita para seres humanos à longo prazo. Para seres humanos. Por quê? Porque ele não tem condições de humanização em nenhum lugar. O Estado brasileiro não tem condições de humanização em nenhum lugar, a não ser na Avenida paulista, enfim, nós sabemos. As zonas que estão fora do campo do raio de retribuição do mercado não têm humanização. O Estado não é um agente humanizador. O Estado é mantenedor dessa condição de privilégio. Eu acho que nós deveríamos jogar outdoor nessa cidade. Porque o Estado é um ideal, mas é um ideal que diz o quê?: “Eu vou cuidar daquilo que é remanescente da mão invisível”. Mas não deveria ter nem um remanescente da mão invisível, ela é tão mágica para cuidar de todos? Mas entendo, caberia o Estado. O Estado é uma mentira. Porque na verdade todo o esforço dele é para manter invisível essa mão perversa. Então prisões, todos os espaços de exclusão, são todos eles um esforço de silenciamento, de repressão. E que como não pode mais ser contido ali, porque é uma realidade eloquente, que fala, o Estado agora começa a conter quem pode dizer. Ele passa a conter a minha voz. Ele passa a conter a sua voz na universidade. O passo agora, já que estamos para um passo liberal, é impedir quem está, quem transita no sistema, que ele fale. Então, é esvaziar o conselho penitenciário, os órgãos dos direitos humanos, os professores universitários.

Exemplos de vasilhames usados para armazenar água no CPPL 3

Um retrocesso em relação a todos os dispositivos constitucionais que previam participação social, fiscalização do Estado…
A Constituição se tornou algo quimérico. Nós não temos uma Constituição. Tem um autor chamado Carl Schmitt. Ele se opôs a uma visão a outro alemão que é o Hans Kelsen, que falava da possibilidade principiológica do Direito. Ou seja, que o Direito é uma necessidade da sociabilidade e que essa necessidade impõe regramentos. Então, o Direito ele teria um condão lógico-positivo. Ele se efetiva, é um pouco parecido com Hegel, o que se efetiva é racional. O Schmitt não. Ele vai dizer: “estamos tratando com o campo da política e das decisões consensuadas e não tem principiologia não”. “O lugar do direito é aquele lugar que foi decidido como direito”.

São relações de força
Apenas. Só que existe uma questão que é ética, que perpassa os dois lugares. E que seria o lugar de toque. O direito é ético? É toda discussão sobre se o direito é positivo ou jusnatural, é ética. É como eu respondo a natureza da lei para aqueles questão perdendo. Como é que eu justifico a lei para aqueles que estão desiguais?

Acho importante a sua fala para termos um “pé atrás” com os discursos que o Estado elabora, especialmente sobre ressocialização, humanização… Para ficar atento a não cair no encanto do discurso da legalidade. Mas como é que nós chegamos a essa situação? Especificamente as prisões provisórias? Não sei se esse sempre foi um problema, mas progressivamente, o Ceará é primeiro colocado proporcionalmente né? São 11 mil presos provisórios, mais ou menos 63% da população prisional, não sei se os dados estão atualizados em 2019, mais ou menos 63,6 % são não julgados
Primeiramente tem que entender o que é que significa a prisão provisória. A prisão provisória é um instituto do direito processual que autoriza a restrição ou a neutralização do indivíduo, ainda que ele não esteja julgado, que ele não tenha exercido exaustivamente, como é do seu direito, a defesa. Mas existe aí uma clara demonstração da sua ofensividade social. Então o indivíduo foi preso em flagrante assaltando com revolver na mão. Há uma presunção de veracidade da narrativa da polícia. Isso é presunção legal. O juiz então decreta a segregação preventiva: “Ok, ele tá presumidamente inocente, mas eu vou segregar. Ele vai exercer plenamente isso. Ao menos que ele descontrua aquilo que está aqui no flagrante construído, ele tá preso. Eu antecipo os efeitos da sentença em relação a ele. Por quê? Porque essa é minha convicção atual”. Ok. Isso é o modelo. Em um sistema de justiça célere, pensado como a lei pensou, isso não demora muito. Isso não pode demorar. Isto é uma contingência processual que deve ser superada rapidamente. Porque a segregação, a inibição da liberdade a vida são os dois grandes valores. Então, para que você tome essa providência, você tem que se garantir de que isso esteja muito rapidamente saneado. Que essas suas dúvidas sejam absolutamente saneadas em pouquíssimo tempo a fim de que um inocente, ou melhor, o presumidamente inocente não sofra os efeitos de uma presumível condenação. Esse é sistema célere no ideal da lei. Como é que acontece na prática? A polícia, quanto mais você aumenta a repressão mais você encontra situação de flagrante. Mais você encontra situação de suspeição, de violência. O que é que o juiz faz como representante do Estado? Ele segrega. A ideia é que isso fosse saneado no mais rápido possível. Mas não. Porque o sistema de justiça não consegue operacionalizar o processo. Você não tem defensores públicos. Você não tem juiz. Você não tem promotor que possam dar celeridade a essa máquina. E aí é o seguinte: nós não estamos falando de uma prisão massificada de empresários, deputados… Nós estamos falando de prisões massificadas de pessoas periféricas, sem nome, sem nada. Então você não exige o cumprimento do devido processo legal. Essas pessoas ficam anos. Eu já encontrei em inspeções que eu fiz, pessoas que foram presas por receptação. Receptação é no máximo três anos. É a pena em abstrato, ou seja, que o juiz pode aplicar no máximo. Essa pessoa estava com quatro anos. Então como que ela foi presa, ela teria um ano de crédito se condenada fosse, porque ela era presumidamente inocente. Então o indivíduo foi preso por receptação. Ele foi acusado de receptação. No contexto de uma prisão em flagrante você prende todo mundo e depois que você identifica as condutas. Ele foi preso junto com outros, que tem a condutas típicas de tráfico. Mas ele era receptação. Receptação é até três anos no máximo a condenação. E ele estava ali confinado no presídio como se traficante fosse. E ninguém… Nós temos um sistema de justiça que não tem exatamente o interesse de promoção da justiça, e sim da repressão às condutas. Aí você diz: “Mas, poxa, como que é isso de repressão as condutas no sistema justiça?” Porque a repressão a conduta está intimamente ligada à culpabilidade do agente. E isso é uma questão de justiça. Você não reprime a conduta sem culpabilidade e a culpabilidade é um processo judicial de imputação. Ora, nós fazemos na varredura muito mais a repressão do que a imputação. Aí se eu tivesse falando no programa do Ratinho (risos), iam me perguntar: “Quer dizer que são todos inocentes?” Eu digo: “Não, eu não tô dizendo isso. Eu tô dizendo que você não sabe. Eu tô dizendo que o Estado não sabe. Eu não tô dizendo que eles são inocentes. Eu tô dizendo que o modo como Estado estabeleceu aquilo que é culpa e aquilo que não é, não é aplicável ali. E por que não é aplicável ali? Porque não há interesse. Porque o objeto, o alvo da repressão, não exige essa providência”. Quando a Lava Jato se implantou, você viu todo o processo legal, aliás traduzido na Folha de São Paulo, no O Globo, ou seja, aula de direto total, todo mundo entendia porque que uma coisa porque outra, e todo mundo entendia quando é que botava um camarada pra ser preso na marra. Todo mundo entendia como é que seria e todo mundo entendeu como é que não foi feito (risos). Mas todo mundo entendeu. Era para ser assim, mas não. Mas enfim, não foi. Mas era para ser assim. Na lei estava assim. Essas pessoas que são o alvo da polícia, do Raio, do esforço que o Estado tem de contenção da criminalidade está toda ela voltada para esse primeiro momento. É tão engraçado que se você amplia a capacidade repressiva do Estado, você deveria ampliar ato continuo a capacidade processual de culpabilidade, de processamento de culpa. Então você está claramente mostrando que o alvo já é culpado. O alvo já é preso. Existe o corpo matável. Existe o corpo para ser preso. Não sei nem se existe essa palavra, mas o corpo matável é o mesmo corpo preso. É uma questão de contingência que ele não é morto. Ele não é morto por detalhe. Ele não é morto por perspectiva de direito. O corpo que não é morto na abordagem policial é por contingência, não por princípio. O princípio não é prender e julgar? Tá invertido. Você coloca o Raio nas ruas, o Raio na área. O Raio, ele é para matar. Eventualmente ele prende.

Sessão do Copen em 2017, ano do primeiro mandato de Cláudio Justa à frente do órgão

A polícia de combate de confronto, primeiro vai o confronto e depois do combate a gente pode ver quem pode ser preso, quem sobrou
Ou como fizeram lá em Milagres. Mata quem tiver na frente. Quem escapar… Só que eles não sabiam que tinham reféns né? Atrapalhou o plano repressivo. Mas a lógica ali está muito bem desenhada. Você chega para matar. Você chega não para prender, não para garantir a ordem pública pelo Direito. Você chega para matar. Então, esse consenso estabelecido na lei, ele é uma mentira. A lei não é a presunção do consenso social sobre um comportamento do Estado? Estamos quebrando isso. Aquilo que está consignado na lei como sendo pressuposto do comportamento do Estado não está sendo cumprido.

Quando a gente falava de segurança pública na universidade mesmo, a gente falava como é difícil caracterizar um plano ou uma política pública de segurança, geralmente tudo é resumido em ações policias né? O ronda do quarteirão, o Raio e tudo. O sistema que a gente chama de justiça criminal ele é orientado parece, pelo seu próprio discurso agora, orientado por essa primeira fase, por essa primeira fase repressiva. De forma que o sistema é todo desequilibrado. Ele não funciona como um sistema. E no interior a gente está assim, como funciona muito mais talvez fragmentado, não sei, por completa falta de condições de exercício. A defensoria pública. O defensor vai uma vez por semana, enfim. Tem essas questões. A gente não tem mínimas condições. E o que esperar dessa Secretaria, que tem em vista um planejamento para expandir o sistema penitenciário para o interior do estado. O senhor consegue enxergar um planejamento de fato? Isso me intriga um pouco: são três secretarias que atuam em conjunto, ora atuam em separado: a Secretaria de Segurança Pública, a Secretaria de Administração Penitenciária e a Secretaria de Justiça. Quando o atual secretário foi perguntado sobre as condições dos presos provisórios ele disse: “Aqui eu só cuido da questão prisional. A questão processual é na secretaria de justiça”. Há um efetivo planejamento? Essas pessoas se sentam para planejar investimento dentro de um padrão mais sistêmico ou cada cabeça pensa o seu?
O que é que acontece na prática né? Obviamente você tem um mapa do encarceramento, um padrão. Então o Estado sabe exatamente quantos eles encarceram por mês. Então ele tem essa condição de prever orçamentariamente o custo. Só que esse custo, ele não é suportável. Porque esse custo do preso ele envolve não apenas comida. Ele envolve todo um complexo de garantias. Então quando você vai discutir concretamente orçamento do preso, você tem que discutir isso, que é constitucional. Então o que é que se faz? Não se discute. Porque você tem um número de encarceramento muito alto, seria astronômico. E seria concorrencial com a saúde. E é inconcebível para a sociedade supor que o Estado gaste tanto com preso como com a saúde. Então eles não divulgam um orçamento como esse. Você consegue fazer esse cálculo minucioso com relação ao IJF, HGF os hospitais públicos. Mas você não faz isso com um presídio. Ai a pergunta: “porque que não faz?” Por uma questão de escolha política. Eu não vou projetar orçamento para essa coisa. Eu vou projetar orçamento para saúde, para educação e não para isso aí. Só que isso aí existe. Veja: na construção orçamentária do Estado está a invisibilidade do lugar do encarcerado. Porque o lugar do encarcerado não é o do empresário que cometeu um deslize e foi preso. É daquele mar de excluídos, que nós não queremos saber nem quem é. Nós não queremos saber o nome. Nós não queremos hospedar. Se eram excluídos, que permaneçam excluídos. No entanto, eles não podem é fazer balbúrdia. Então eles estão sendo reprimidos. Mas não vamos contabilizar o número orçamentário dessa repressão. Nós vamos contabilizar quantos soldados botamos nas ruas, quantos fuzis. Mas não exatamente o quanto nós “cuidamos”. Primeiro, que “nós não cuidamos”. É a primeira coisa. O orçamento disso ia revelar que nós não estamos cuidando. Então nós não vamos orçar. Nós não queremos cuidar exatamente por quê? Primeiro: a sociedade não aceita. Olhe o discurso do Bolsonaro. Ele é simplesmente a caricatura. A revelação. Ele não é outra coisa. Ele é a nossa cara. A nossa cara é aquele palhaço. O Bozo é a cara do Brasil. O Brasil ficou ali. Tá ali. Olhem para o espelho. É aquela coisa bem desarticulada, tosca e que fala. É como nós olhamos a nossa conjuntura. De forma tosca, desarticulada e interditada para falar. É. Porque daquilo eu não quero falar. Eu quero é matar. Mas não posso. Não deixam. Na verdade, a culpa toda dos direitos humanos é que ele não deixa é matar. Não é por nada. “Puxa, era pra matar”. “Mas porque não pode matar?”. Aí você tem que destrinchar toda origem do que é ser humano. O problema dele é com os seres humanos, não é? O problema é com os seres humanos que não frutificaram. E uma noção bem primária, liberal, elitista, mas está na névoa da cabeça de uma pessoa como aquela. Então, se nós pudéssemos matar e quando você coloca a arma nas mãos das pessoas você está dizendo: “mate, mate, mate. Faça o que é pra fazer”. É quase como você colocar uma bíblia na mão de quem vai orar. Mate! Se ele afrontou, mate!” Então, o que se está fazendo no Brasil é: “vamos exterminar! Vamos acabar com a desigualdade pelo o extermínio!”. Na verdade, acabaríamos até com o problema prisional. Porque se nós exterminarmos, não tem preso né? Para quê cadeia se nós podemos exterminar. Isso parece um absurdo, isso parece uma caricatura, uma coisa meio Trump, mas é a nossa realidade. De alguma forma ele revelou como é que o Estado brasileiro se movimenta sobre essas questões da desigualdade, da exclusão. Nós nos movimentamos como se fossemos a fala do Bolsonaro. No fundo ele é a tradução do Estado. Porque o Estado está controlado pelas elites, que em última instancia operam o poder. O discurso é torto, mas o comportamento é muito parecido. Só que não tinha esse discurso tão torpe. As pessoas não querem ouvir esse discurso torpe. Mas quando são confrontados, e por isso é existe esse encantamento, é que quando o cara aperta eles… aí você vê que era assim. Quando você aperta, o cara é Bolsonaro desde criancinha. Por quê? Porque nunca foi conscientizado. Nunca teve mesmo doutrinação massiva. Nada de nada. Então, no fundo a nossa sociedade é elitista, segregadora, violenta. É perversa. Somos tudo isso e agora nós conseguimos um discurso, uma política possível para uma monstruosidade que somos. Imagine vocês uma política possível para nossa monstruosidade. Imagina cara, uma política possível. E aí não importa o que é que está na lei. A lei vem lá de Montesquieu, e isso passou por uma elaboração discursiva. Isso pouco importa. Mas essa desconstrução do intelectualismo, da fala qualificada… Peguem um guarda-chuva e dancem e brinquem. Façam qualquer chacota. Porque não importa mais o valor do discurso. Importa que todo mundo chegue rapidamente a essa conclusão: matar, prender, isolar, impedir. São palavra-chave, não há muito o que elaborar. Então, eu não tenho menor receio de dizer que isso aqui é um nazismo de forma diferenciada. Porque também não somos Alemanha, que é um povo diferente. Mas isso aqui é um nazismo. O que está se fazendo no Brasil é. O que é que o povo alemão fez? A não ser articular os seus temores, os seus preconceitos, os seus medos na forma política. Estamos fazendo a mesma coisa. Quando esse povo vai para as ruas gritar “acabem com o congresso”. “Eu prefiro essa loucura”. Tá dizendo muito. “Ah! Mas são meia-dúzia. Mas não teve um volume que se contrapusessem a essa meia dúzia. Então, não é só meia dúzia. Quero colocar que essas coisas: as políticas criminais e penitenciária não estão descoladas de para onde nós estamos modelando nosso Estado. Nós estamos na verdade pondo formato de legitimidade para aquilo que já estava modelado para ser excludente. Nós estamos legitimando o mal. Não basta agora mais ser mal. Porque de alguma forma nós intuíamos que éramos maus. Ou alguém olhando para uma favela achava que aquilo ali era um produto de uma sociedade boa? Estamos agora construindo um discurso que legitima ser mal, ser perverso. Nós estamos na construção da perversidade como natural. Por quê? Porque afinal de contas, enfim, “são bandidos”, “merecem a morte”, “escolheram isso”. Aí pega um e diz: “poderia ser diferente”. Quem é esse um? Um em um milhão que, por alguma contingência, teve um outro curso. Aí você pode dizer: “Tá bom. Pega esse um agora. Eu quero saber como é que foi a história do pai dele, da mãe do irmão, do filho, do primo. Eu quero a família toda. Não quero ele não. Não que ele não conseguiu. Ele chegou. Mas eu não quero ele. Eu quero saber como foi a trajetória da família dele. Só tragédia. Só exclusão. Então ele não é eloquente para falar sobre esse lugar dele. Ele é na verdade uma excepcionalidade. Então assim é quando você pergunta: “O Raio é a resposta do Estado?” É a resposta do Estado na medida em que ele, por mais que ele tenha estudado, articulado a universidade, o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), para falar sobre qual seria o melhor plano de pacificação social, ele não aplicou esse plano. Ele não aplicou. Ele aplicou o que o Tasso aplicava: bota e bala. Ou seja: você tem toda construção de um caminho de política pública que não foi efetivado. Aí você pergunta: “Porque que não foi efetivada essa política pública?!” Porque as causas nunca foram exatamente enfrentadas. Nunca houve nenhum envolvimento inclusive da sociedade para cuidar das causas. Se você não tem nenhum envolvimento de cuidar das causas da violência, como é que você espera que a resposta para violência seja diferente? Então você tem toda uma mobilização em 2014, a respeito dos assaltos na Aldeota, “Fortaleza Apavorada”. O governador acabou botando um soldado em cada esquina e tudo mais para inibir a violência aqui. Mas o fato concreto é que, passado o medo dessa Fortaleza, que não é A Fortaleza, é o Meireles, Aldeota e adjacências, você resolveu a violência? O que estava acontecendo nas periferias e não era obra da polícia. A obra da polícia era aqui. Nas periferias a obra era de outros atores: as facções. Aí você vai me dizer que a polícia não tinha nada a ver com as facções?

Um pacto de convivência?
“Eu não posso ter problema aqui. Resolvam os problemas de vocês aí”. Você quer me dizer que isso não é um pacto? Bom, diga. Mas é um pacto. É um pacto tácito, que você pode chamar de qualquer nome, chame do que quiser, mas isso é uma escolha de política pra preservar uma determinada imagem de segurança pública e condenar toda uma população a se subordinar ao crime organizado cada vez mais potente dentro daquelas comunidades, arregimentando os jovens, articulando… Aí, de repente, eles se tornam tão potentes que eles controlam os presídios, aí você parte pra cima.

Francisco Thiago Rocha Vasconcelos
Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Ceará. Coordenador do Curso de Licenciatura em Sociologia (2018-2020)
Coordenador do SEJUDH – Grupo de Pesquisa e Extensão em Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos. Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Leonardo Aquino
Bacharel em Humanidades (Unilab). Estudante do Curso de Licenciatura em Sociologia (Unilab) . Coordenador pedagógico do ensino fundamental II da escola municipal Capitão Antônio Joaquim em Vazantes, Aracoiaba (CE). Bolsista do Projeto “O uso da prisão provisória no Maciço de Baturité-CE” (2018-2019)

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