Detenções ocorridas contra os golpistas que vandalizaram a sede dos Três Poderes fizeram com que os “patriotas” revissem seus conceitos e se tornassem ferrenhos defensores dos direitos humanos. Mesma atitude não é vista em relação às mais de 661 mil pessoas que superlotam o sistema prisional brasileiro. Na comparação com o tratamento destinado cotidianamente aos encarcerados, pode se afirmar que os golpistas desfrutam de uma condição “premium”, embora essas medidas sejam previstas em lei para todos os cidadãos.
Por Ricardo Moura
A classe média brasileira costuma ser pródiga em adotar um discurso hiper punitivista como forma de solucionar todos os problemas de violência e da criminalidade no país. Vale ressaltar que os alvos dessa fúria justiceira são sempre os mesmos: pretos, pobres e periféricos. Os textos que escrevo acerca do sistema prisional sempre encontram comentários responsabilizando os detentos pela sua própria sorte e exigindo ainda mais punição para quem, por vezes, tem de pagar uma dupla pena na cadeia: a do crime cometido e a da violação de sua dignidade.
Embora tenham chegado muito tarde, as detenções ocorridas contra os golpistas que vandalizaram a sede dos Três Poderes fizeram com que os “patriotas” revissem seus conceitos e se tornassem ferrenhos defensores dos direitos humanos, artigo fundamental que quase sempre é negado para a imensa população. Cerca de 1,2 mil pessoas foram detidas, somando as que estavam nos locais dos ataques e as que se abrigaram no acampamento após o ato.
Conforme o ministro da Justiça Flávio Dino, os detidos passarão por uma espécie de triagem na Academia Nacional da Polícia Federal, onde serão identificados e ouvidos. De lá, poderão ser liberados ou seguir para a prisão. A “superlotação” na academia e uma suposta falta de alimentação foram motivos de queixa na segunda-feira passada, dia 9. “Estamos reféns desde as 7 da manhã”, bradou um dos golpistas. “Sem comida, sem água, estamos sendo humilhados”, comenta um dos detidos. Mesmo preso, outro homem foi flagrado insuflando novos ataques. Em dado momento, a notícia de que uma idosa teria morrido percorreu o local e foi repercutida nas redes. No entanto, a informação foi desmentida pouco tempo depois pela própria PF.
Vale ressaltar que as “denúncias” foram realizadas de dentro do espaço de detenção por meio do uso de celulares. Até mesmo esse processo de triagem tornou-se objeto de espetacularização, marca da ação ocorrida no último domingo, que foi amplamente divulgada e transmitida pelas redes sociais, mas que, ainda assim, aconteceu de forma impassível sob os olhares da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).
O Brasil é um dos países que mais encarceram no mundo. Em 2022, pela primeira vez desde a redemocratização, a população carcerária recuou na comparação de um governo para outro. Mesmo assim, o número de encarcerados é bastante elevado: 661,9 mil pessoas. Em dezembro de 2018, último ano do Governo Temer, esse número era de 744,2 mil.
A escalada do número de presos se deu a partir de 2004, no primeiro mandato do Governo Lula, o que mostra que a solução mágica do encarceramento perpassa governos de esquerda e de direita. Quanto a essa questão paradoxal das gestões ditas “progressistas”, temos um exemplo muito concreto aqui no Ceará.
No pouco tempo em que estão detidos, os golpistas tiveram um gosto do que é ser uma pessoa encarcerada no Brasil. E olhe que estamos falando de uma detenção temporária, com todas as garantias previstas, sem torturas e maus tratos. A atualização mais recente dá conta que 240 mulheres com filhos pequenos e pessoas idosas com comorbidade foram liberadas pela Polícia Federal. Na comparação com o tratamento destinado cotidianamente aos presos brasileiros, pode se afirmar que se trata de uma condição “premium”, embora essas medidas sejam previstas em lei para todos os cidadãos.
Seria ingênuo achar que essa breve estadia no “inferno” fará com que tais pessoas se sintam um pouco mais solidárias com a imensa quantidade de detentos que superlotam as prisões em todo o país. O sentimento de privilégio fala mais alto nesse momento. Da forma como todo o ataque foi conduzido, com direito à escolta da polícia e vista grossa das autoridades, é possível afirmar que a divisão entre os andares de cima e o de baixo persiste até mesmo em se tratando de vandalismo. Todos somos iguais perante a Lei, mas uns são mais que outros. A vidraça que ainda poderia manter a opacidade dessa condição de desigualdade foi completamente estilhaçada nesse domingo.
Sobre a imagem. A foto acima é um frame de uma transmissão por celular em que um golpista denuncia estar preso sem água e sem comida na academia da PF. “Estamos sendo humilhados”, lamenta.
Presenciamos mais uma distopia inversa no multiverso de algum de inferno. Não encontro adjetivos para o quê está acontecendo com este sistema. Apenas lamento que o humilde seja sempre o alvo da “justiça”.
CurtirCurtir