A história do Messias reescrita em um tom belicista, como descrito nesse breve conto, mostra o quão absurda é a vinculação entre cristianismo e a cultura armamentista atual. Trata-se de uma atitude de quem passou ao largo da leitura dos evangelhos. Há quem possa chamar esse fenômeno de “negacionismo cristão”.
Por Ricardo Moura
Uma descoberta agita o mundo judaico. Em uma carpintaria na Galileia, foi desenvolvido um novo tipo de armamento à base de pólvora, conhecido pelo dialeto local como “pau de fogo”. Os zelotas, ferozes opositores do Império Romano, veem naquele utensílio uma oportunidade de fazer frente à poderosa guarda de Roma que oprime o povo judeu desde que o general Pompeu conquistou aquele território nos idos de 63 a.C. Conhecido como um profeta em ascensão, Jesus decide adquirir um “pau de fogo” a fim de fazer com que suas palavras ganhem mais expressividade. Hábil carpinteiro, chega ainda a fazer alguns ajustes no tal equipamento a fim de deixá-lo ainda mais eficaz. Com um milagre aqui e outro ali, consegue os recursos necessários para distribuir os armamentos entre seus colegas apóstolos dizendo: “Armais uns aos outros como eu vos armeis”. Os discípulos saem atirando a esmo e fazendo ameaças por toda a Judeia. Os escribas o veem como a continuidade perfeita do iracundo deus Javé, que punia os erros alheios com pragas e sentenças de morte sem direito a perdão.
Em suas pregações, Jesus incita a população a se armar a fim de obter o direito à “defesa pessoal, do patrimônio e dos valores da família judaica”. O público vibra, embora não disponha de dinheiro para se municiar. Alguém pergunta sobre a divisão dos pães e peixes, pois a multidão caminhara muito ao lado do mestre e agora se encontrava faminta. O Messias se indigna e retruca: “E como vocês vão se defender dos romanos? Atirando peixes na direção dos soldados?”. O sermão da montanha é encerrado ao som de tiros disparados em direção ao céu.
Os poderes de cura de Jesus eram muito conhecidos. Coxos, cegos e enfermos se avolumavam em busca de um milagre. Embevecido com seu novo poder de fogo, contudo, a imagem de médico das almas cedeu espaço à de um líder feroz e violento. Em dada ocasião, na localidade de Samaria, um grupo de moradores aproxima-se para que pudessem ter a saúde restaurada. O Primogênito, no entanto, desvencilha-se com certa rudeza dos inválidos e doentes. “E daí, lamento. Quer que eu faça o que?”, brada, levantando os braços em tom de impotência.
Dias depois, enquanto percorre as vias de Jerusalém de forma insolente e montado em burricos, o Salvador recebe a notícia de que Lázaro, seu amigo próximo, morrera há pouco. Um silêncio se faz presente: o que Jesus fará? Demonstrará de forma cabal sua vinculação divina? Abrirá as portas do impossível aos meros mortais? A resposta, contudo, veio seca e cruel: “Eu não sou coveiro. A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”.
Os rumores de que o denominado “Cristo” não seja o filho de Deus anunciado pelos profetas começam a correr à boca pequena. Em nada dos seus feitos é possível identificar a realeza de figuras como Davi e Salomão. Os comentários são feitos em voz baixa, haja vista o temor de os seguidores serem vítimas do “pau de fogo”. Talvez a linhagem divina tenha se encerrado em João Batista, argumentam. Não à toa ele foi assassinado por denunciar as estruturas da desigualdade social e econômica de seu tempo.
A situação econômica dos judeus se agrava. Novos impostos passam a ser cobrados pelos tribunos romanos. A postura “contra o sistema” de Jesus arrefece. Em conversas reservadas e sigilosas, o Salvador costura acordos com os saduceus, tidos como os sacerdotes mais ricos e poderosos da Judeia, e o alto escalão do poder romano. O acerto era o de que Ele se mantivesse neutro diante dos grupos dominantes da época. Nada de mexer em vespeiro.
As palavras de esperança proferidas se transformaram em discursos odiosos, insuflando rivalidades até mesmo entre os próprios judeus. O domínio de Roma se torna ainda mais absoluto sob um território dividido. O messias tão esperado dá de ombros para tamanho sofrimento mesmo perante tantos clamores. Pragas se sucedem àquela população, mas da boca do profeta não sai nenhuma palavra de amparo. Longe de morrer pela cruz, Jesus aposentou-se cedo, sendo premiado com uma cadeira permanente no Sinédrio.
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O absurdo contido na narrativa descrita acima não se compara à torpe tentativa de justificar o uso de armas de fogo por meio de uma concepção distorcida da mensagem cristã, religião que tem como centralidade o amor ao próximo, seja lá quem ele for. Jesus Cristo nunca pregou a violência armada, embora tivesse sido provocado a fazer isso. Se houvesse algum armamento parecido com pistola em sua época, certamente Ele teria sido morto com um tiro na cabeça em vez de ser crucificado.
Vale ressaltar que o Filho do Homem, como gostava de se denominar, foi torturado e morto como um prisioneiro político em um julgamento marcado pelo populismo penal e pelo clamor por vingança dos homens e mulheres de bem da Judeia. Qualquer semelhança com o que ocorre hoje não é mera coincidência.