A retórica fascista da guerra

Vivemos e revivemos a violência em palavras e imagens, na literatura, pintura, fotografia e Vivemos e revivemos a violência em palavras e imagens, na literatura, pintura, fotografia e cinema pelos quais buscamos escapar da própria violência, mas da qual muitas vezes não escapamos tendo em vista que se tornou um trauma. Palavras e imagens se tornam gatilhos de uma arma, uma máquina de guerra que voltamos contra nós, suicidas, ou contra os outros, paranoicos, dominados pelas palavras e imagens que nos perseguem tentando nos capturar e violentar, revividas na lembrança. Vivemos e revivemos a violência a cada momento em que uma retórica da guerra se faz presente em palavras e imagens mesmo que não tenhamos participado de uma guerra de fato, porque é uma mesma violência que existe na guerra e numa retórica da guerra que faz com que a guerra nunca acabe devido aos traumas que produz.

Por Jean Pierre

A retórica é o devir das palavras em imagens e das imagens em palavras. Os gregos resumem este devir retórico numa palavra-imagem, topos, a partir da qual se inicia um discurso, isto é, um logos. O topos é um lugar ou ponto de partida a partir do qual se fala ou se origina a fala, se começa a falar, é a origem da fala, sua arkhé. É, de certo modo, o tema a partir do qual e sobre o qual se fala, e ao qual se retorna e deve se retornar a falar constantemente. Um topos, tema ou lugar que se define pelo que é falado, pelo que é dito num discurso e pelos argumentos utilizados por cada pessoa em sua retórica, motivo pelo qual um topos nunca é o mesmo, ainda que seja a mesma palavra que o define, pois há diferentes retóricas sobre ele dependendo das palavras-imagens utilizadas por cada um.

Se falamos de uma retórica da guerra na segurança pública a cada texto, já não é do mesmo modo, com a mesma retórica, com as mesmas palavras-imagens, muito menos com a retórica do Estado que define o que é a guerra e contra quem se deve guerrear, que define o que, quem e quais são os inimigos, os inimigos do Estado. A retórica muda de um texto para outro, de uma fala a outra, de uma imagem a outra, e a partir de quem a utiliza, seja o Estado, seja aqueles que estão contra o Estado, que não são necessariamente seus inimigos, mas que são contra ele porque não aceitam a retórica de guerra em defesa de uma segurança pública que faz deles seus inimigos. Primeiramente, inimigos de um Estado despótico, os bárbaros,em segundo lugar, os inimigos de um Estado de direito e civilizado, os selvagens, em terceiro lugar, os inimigos de um Estado de direita ou Estado capitalista democrático, os de esquerda ou comunistas, por fim, os inimigos de um Estado de direito da extrema direita capitalista ou Estado fascista, os revolucionários democratas ou comunistas.

O que definimos como retórica de guerra são as palavras e imagens que reproduzem a guerra no pensamento das pessoas, que transformam a violência da guerra numa violência de palavras e imagens que produzem mais guerras, que mantém a guerra viva, que não querem que a guerra morra, que sua violência tenha um limite, um fim. Neste sentido, no século passado, ao terminar a Primeira Guerra Mundial, começou a retórica da Segunda Guerra Mundial por aqueles que não queriam que a guerra acabasse, que não se conformavam com seu fim, ou mesmo, com o fim que teve, no caso, os alemães inconformados com a derrota para os aliados na Primeira Guerra. Os alemães começaram a reproduzir a experiência e pobreza da guerra em palavras e sem palavras, como diz Walter Benjamin em seu texto Experiência e pobreza, de 1933, a imaginar a guerra em narrativas literárias diversas, como demonstra no texto Teorias do fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e guerreiros, de Ernst Jünger, de 1930, e, por fim, a utilizar uma retórica artística da guerra, a fotográfica e, principalmente, cinematográfica em defesa de um Estado nazista, como demonstra em seu texto prognóstico A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de 1935/1936.

O que Benjamin nos faz pensar nestes textos, e em outros sobre a ascensão do fascismo nazista na Alemanha, é como a violência vivenciada na Primeira Guerra é reproduzida de modo traumático em palavras e imagens, isto é, numa retórica, e como isto faz com que os alemães ressintam a violência sofrida na guerra e se ressintam daqueles que os violentaram considerando-os seus inimigos. Uma violência que se transformou num trauma e que a arte fascista buscou fazer com que alemães quisessem “superar” este trauma se pondo em guerra novamente. Sobretudo, Benjamin nos faz pensar como a violência de uma guerra vivenciada por alguns passa a ser vivenciada por todos os alemães a partir de palavras e imagens da retórica fascista da guerra em defesa da segurança pública do Estado alemão. E mais do que isso, como a violência da guerra se torna positiva para os alemães contra toda a negatividade da guerra perdida anteriormente por eles e novamente uma guerra se inicia a partir dos traumas de outra guerra.

Os traumas de uma guerra são a continuação de uma guerra que nunca acaba, que permanece na memória, que apenas esfria, como a Guerra Fria após a Segunda Guerra Mundial, com a qual se lembra a última guerra e se revive com a política expansionista da OTAN aos países do Leste Europeu estimulados pelos Estados Unidos para conter o avanço da antiga União Soviética e, atualmente, da Rússia, a qual busca conter essa expansão ao invadir a Ucrânia produzindo novos traumas de guerra, bem como novos modos de reviver a guerra futuramente. Neste sentido, o que vemos acontecer na Ucrânia não é apenas uma disputa territorial, mas também o retorno de antigos traumas de guerra e de uma retórica de guerra diferente a partir de cada envolvido. Por um lado, neonazistas ucranianos defendem a Ucrânia a partir do antigo ressentimento pela guerra perdida pelos nazistas alemães utilizando o nacionalismo como uma defesa do Estado contra minorias. Por outro, Russos se ressentem do avanço militar da OTAN em países do leste europeu em desacordo com os tratados pós-guerra e, em contrapartida a OTAN e demais países do mundo revivem os traumas com o comunismo numa ofensiva de sanções e restrições à Rússia somente comparável às sanções e restrições dos países capitalistas à Cuba.

Se antes esses traumas eram apenas relatos literários como os de Homero, de grandes batalhas travadas por heroicos guerreiros que estimulavam novas guerras, posteriormente, tornados relatos de invasões imperialistas a novos mundos estimulando a colonização deles, e relatos militares mostrando a bravura dos exércitos dos Estados nação colonizando outros Estados nações, a partir do século XX, as fotografias e os filmes se tornaram o principal meio de disseminação de traumas de guerra e, não por menos, estímulos a novas guerras, incluindo uma guerra cultural. E, no início do século XXI, a Guerra no Iraque, em 2003, mudou completamente a retórica de guerra, quando palavras e imagens não eram mais sobre um passado antigo ou recente em anos ou décadas, mas de um passado visto há poucos segundos, com a transmissão “ao vivo” dos bombardeios estadunidenses ao Iraque pelas televisões e, mais do que isso, transformou a retórica fictícia da arte numa retórica de guerra absolutamente falsa (fake) através de informações falsas (fake news) de que o Iraque produzia armas biológicas.

O que se viu posteriormente a isso foi o início de uma retórica de guerra da segurança pública em defesa de um Estado não necessariamente em perigo que através de diversas informações falsas nas mídias estimula e ameaça uma guerra de prevenção. Passa-se do trauma à paranoia esquizofrênica de palavras e imagens que não condizem com a realidade, que fazem reviver a guerra e estimulam o conflito antecipando ansiosamente uma 3ª Guerra Mundial a cada momento, e que começou senão no Dia D, o dia que marca o fim da Segunda Guerra Mundial com a invasão dos Aliados à Alemanha a partir da praia da Normandia. Uma retórica de guerra que leva hoje à mais recente guerra, a invasão da Ucrânia pela Rússia na qual os traumas da Segunda Guerra na Europa ainda continuam vivos, e ao mais recente meio de viver e reviver os traumas desta guerra futuramente: as transmissões ao vivo por meio de telefones com Internet de militares e civis em pleno conflito.

Se antes podíamos esquecer a guerra e só lembrávamos dela em trauma na memória ou ao lermos um livro ou vermos um filme, esquecida posteriormente, hoje já não podemos esquecer a guerra. A retórica da guerra atual a partir da Internet torna a guerra inesquecível tal como a arte fez dela desde Homero. O que nos leva a um problema vindouro lançado a partir de Benjamin: como esquecer os traumas de guerra quando a guerra é estimulada constantemente por diversos meios, antigamente pela arte e, atualmente, pela Internet? Ou ainda, como não reproduzir de modo técnico nas diversas mídias a retórica de guerra que é senão a retórica fascista desde 1930, quando a guerra passou a ser relembrada em palavras e imagens com anseio que acontecesse novamente e não mais lembrada com temor e tristeza querendo que não acontecesse mais, quando a guerra se tornou positiva em vez de negativa, desejada em vez de evitada, no caso, desejada pelos alemães estimulados pela retórica de guerra fascista?

Sobre a imagem. Foto de Gayatri Malhotra on Unsplash

Jean Pierre

Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Ceará e pesquisador do Grupo de Pesquisa Conflitualidade e Violência – COVIO/UECE.

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