Caso Lázaro: a lógica da caçada policial em uma sociedade punitiva

Por Ricardo Moura

Identificado, localizado e morto. A trajetória de Lázaro Barbosa, longe de ser um caso isolado, revela uma constante na forma como o Estado se organiza na defesa de seus interesses. Em seu romance “O Mapa e o Território”, o escritor Michel Houellebecq assim descreve a atividade policial:

Seu trabalho específico era perseguir a caça, depois trazê-la e depositá-la aos pés dos juízes, e, mais genericamente, do povo francês (eles operavam em seu nome, pelo menos era a fórmula consagrada). No âmbito de uma caçada, a caça depositada aos pés do caçador achava-se, na maioria das vezes, morta – sua vida terminara durante a captura.

A caçada policial em um contexto de normalidade democrática expressa uma atuação diferenciada da Polícia em que o efetivo e os recursos mobilizados são maiores que o de outras intervenções cotidianas. A caça exige maior dispêndio de tempo e mais riscos a quem está envolvido nela. A expressão perpassa o cotidiano policial, sendo usada com frequência no noticiário policial e em meio a conversas informais.

A narrativa oficial e midiática em torno da caça também é um aspecto importante. A busca por um bandido sanguinário inflama a imaginação coletiva e alimenta o populismo político em torno da segurança pública. Não à toa, a perseguição a Lázaro mobilizou parlamentares, governadores e até mesmo o presidente da República, que comemorou um feito com a macabra expressão “CPF cancelado”.

Quando a polícia atua sob o regime da caça, isso permite ao policial uma flexibilidade de ação maior que sob o policiamento ostensivo geral. Tudo se passa como se o modelo da caça, do caçador, da presa, gerasse uma nova forma de socialidade que podemos nomear de predação. Essa inversão é o que torna a caçada humana tão peculiar. A presa pode se recusar a continuar como presa e passar a elaborar estratégias de caça, estabelecendo uma nova relação: a de luta e de combate. Se a presa humana se torna animalizada durante a caça, o caçador também tem sua dimensão animal ressaltada enquanto caça. A alegria obtida pelo prazer de caçar humanos pode transformar o caçador em um selvagem ou, em última instância, em um criminoso.

Na verdade, predador e presa compartilham diversos elementos em comum, como o gosto pelas armas, pela violência, pelo prêmio obtido ao fim da caça, seja ele financeiro ou a cabeça do inimigo. A caçada envolve ainda uma forma ativa de percepção do ambiente a partir de uma intensa movimentação do policial como caçador em busca de sinais, pistas e rastros que possam levar ao criminoso como presa. Não se trata de uma relação estática, que une dois mundos separados, mas de uma atuação recíproca em um universo pleno de capacidades agentivas em que, mais que uma intersubjetividade, predomina a interagentividade, conforme assinala Tim Ingold.

A caçada humana em uma sociedade punitiva

O nexo dessa relação envolve agentes humanos e não-humanos que constituem o espaço simbólico em que ocorre a caçada. Tudo é feito em nome da segurança. É preciso erradicar o “indivíduo perigoso” que aflige a população. No curso “A Sociedade Punitiva”, Foucault traça um paralelo entre a guerra e a política, ecoando as reflexões de Hobbes e Clausewitz. Interessa a Foucault, contudo, a “guerra civil”, ou seja, os conflitos que se estabelecem no interior de uma sociedade entre os indivíduos que infringem as leis e o Estado. Quatro grandes formas de tática punitiva desempenham um papel privilegiado no regime penal da idade clássica: 1) exilar, rechaçar e banir para fora das fronteiras; 2) organizar uma compensação, impor um resgate; 3) Expor, marcar, ferir, apoderar-se do corpo e nele inscrever as marcas do poder; e, por fim, 4) enclausurar.

Em paralelo a isso, acrescenta Foucault, os criminosos são retratados pelos criminalistas do século XVIII como os “inimigos” da sociedade: Em suma, os reformadores, em sua grande maioria, a partir de Cesare Beccaria, procuraram definir a noção de crime, o papel da parte pública e a necessidade de uma punição, partindo tão-somente do interesse da sociedade ou unicamente da necessidade de protegê-la. O criminoso lesa, antes de tudo, a sociedade; ao romper o pacto social, passa a constituir-se nela como um inimigo interno. Há uma ênfase na resistência exercida por tais indivíduos ao poder estatal.

O filósofo francês compara, então, o exercício cotidiano do poder a uma “guerra civil”. Ao longo de sua trajetória intelectual, contudo, Foucault irá se afastar progressivamente dessa concepção “guerreira” do modo como o poder é exercido, passando a privilegiar o conjunto de mecanismos e de procedimentos que têm por papel, função e tema assegurar o poder, ou seja, estamos agora no campo da governamentalidade.

Embora concorde com o percurso histórico traçado por Foucault na análise que ele elabora sobre o poder nas sociedades ocidentais, defendo a hipótese de que as táticas punitivas elencadas pelo filósofo francês ainda persistem nas sociedades atuais. Há uma margem considerável de “ingovernabilidade” nas relações sociais que tornam o emprego de tais recursos quase que indispensáveis. Minha atenção se concentra na primeira tática descrita por Foucault, que trata de exilar e rechaçar os indivíduos indesejáveis. No resumo em francês, essa forma de tática punitiva é descrita como “exiler, chasser, bannir, expulser hors des frontières“. A expressão “chasser“, além de “rechaçar” como utilizada na tradução brasileira, significa caçar.

A caça também possui o significado de expulsão da presa de algum local. Para Grégoire Chamayou, a caça é uma tecnologia de governo dos viventes que se contrapõe ao poder pastoral preconizado por Foucault. Enquanto o pastor conhece as ovelhas pelo nome e sua atuação é fundamentalmente beneficente, o caçador persegue sua presa a fim de se aproveitar dela. O poder cinegético (relativo à caça) está fortemente relacionado ao território. Não se trata de uma relação fixa, mas de constante anexação. O caçador deixa a cidade em busca de acumular novas presas.

Em apenas um tuíte, a síntese da forma como o relato a caçada policial é mobilizado na sociedade

Caçadas pastorais

O território de caça se estende ao espaço de captura em um movimento essencialmente predatório. A individualização se dá ainda por um processo de divisão em que os mais fracos são identificados e isolados. Não basta apenas caçar. É preciso contabilizar as presas adquiridas. A principal diferença, no entanto, reside no fato de que o poder pastoral é um poder protetivo enquanto o poder cinegético é um poder predatório.

Há um paradoxo aqui. O poder pastoral também caça no que Chemayou denomina de “caçadas pastorais”. Esse aspecto é central na relação entre Estado e sociedade. Para defender o rebanho, é preciso às vezes eliminar uma das ovelhas. Isso não caracteriza, contudo, uma ação no interior de uma lógica predatória, mas sim de uma exclusão beneficente. Impõe-se aqui a metáfora da doença: a parte infectada e enferma precisa ser extirpada. É preciso dispor de técnicas capazes de identificar, excluir e eliminar os elementos perigosos. A ovelha abandonada é deixada à sua própria sorte em um território repleto de predadores. Ela está sujeita a uma tripla exclusão: da comunidade, da lei e da segurança. Em tais circunstâncias, ser morto não se configura propriamente um crime. Há ecos do homo sacer, de Agamben, nesse processo de proscrição.

Os relegados, contudo, não são sujeitos passivos. Eles formam agrupamentos denominados de bandos. Daí o nome bandidos. A divisão da responsabilidade na captura de tais sujeitos pode ser vista como uma onipotência do soberano ou, como defende Eric Hobsbawn, na sua fraqueza, ou seja, na partilha do poder entre os cidadãos em torno de uma ameaça tão forte que é capaz de abalar os alicerces da própria sociedade.

O texto acima é um extrato, com modificações, do artigo “O Estado que caça: defesa social e política no Brasil”. In: Revista Reflexões, Fortaleza-CE, Ano 5, Nº 8, jan-jun de 2016, p. 176-196

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