“A questão Judaica: o pária como paradigma do agir e do pensar em Hannah Arendt”

Em um mundo de refugiados e populações marcadas pelas circunstâncias de não pertencerem à nação alguma, a figura do pária, longe de ser um personagem marginal, assume a condição de protagonismo nas relações internacionais e no debate político. O filósofo Ricardo George de Araújo Silva (UVA) aborda a questão a partir do olhar da filósofa Hannah Arendt, que viveu na própria pele essa situação. O texto que segue é uma breve introdução à tese que se transformou em livro e que pode ser adquirido aqui

Por Ricardo George de Araújo Silva

Ao enfrentarmos o tema da questão judaica em Arendt estamos perseguindo a letra da autora, mas, sobretudo, estamos atentos àquilo que demarcou sua teoria política, a saber: sua condição de judia, que a lançou na compreensão do fenômeno e de toda questão judaica em si. Desse modo, agir e pensar aparecem como paradigmas desse modo de estar no mundo. Foi como pária que Arendt viveu sua vida. Foi como pária que ela buscou compreender os eventos de sua época, e quando pode, agiu também como pária. Dessa feita, sua teoria não poderia esta circunscrita de outro modo, a não ser pelo modo pária de estar e agir no mundo, de pensar o mundo, no diálogo silencioso que visa compreender.

Nesta direção, parece-nos importante entender que Hannah Arendt não só se identificou como judia, mas afirmou que sua defesa, enquanto ser humano que está no mundo hostil, é definido pela sua condição de judia. Nas palavras do filósofo Richard Bernstein, “Arendt foi bastante clara e assertiva quando se afirmou como uma judia pária”.

Pensar-se como tal tornou-se para Hannah Arendt uma forte marca de localizar-se no mundo e revelar-se mostrando sua identidade. Isso não significa assumir o rito da religião judaica ou as tradições milenares do judaísmo, a questão não é essa. Tanto é assim que Bernstein destaca “É como se a questão religiosa do judaísmo nunca fosse uma séria questão intelectual ou pessoal para Arendt. Ela se identificou com os judeus seculares”. Assim, o que ela teve como foco foi buscar compreender o mundo, e neste atuar, a partir de um ponto definido, de uma postura clara diante de todo este contexto. Qual seja esta postura: a do pária. Hannah Arendt afirma, em uma entrevista, que age, pensa e se defende como judia diante das questões limites impostas a ela.

Reconhecemos que sua obra geralmente é lida a partir de três grandes tradições ou chaves de leitura, já consagradas entre seus comentadores, quais sejam: a Aristotélica, a Republicana e a Kantiana, nesta última, sobretudo, em sua leitura e apropriação de elementos da terceira crítica. Jamais se quer aqui negar tais influências ao pensamento de Hannah Arendt, mas, ao contrário, enriquecendo-o ousamos apostar que o modo pária de pensar e agir emerge como a chave de leitura importante para entender a questão judaica e o percurso que sua obra irá seguir.  Assim, assumimos que seu modo pária de pensar e agir é singular e imprescindível para a melhor compreensão de sua obra a partir da questão judaica, sobretudo os textos de 1930 a 1960, que são uma pujante trilha para reconhecer e entender em que está ancorado o pensamento de Hannah Arendt.

Ao nosso entendimento, sem esse olhar para a sua filiação à questão judaica, e a sua leitura de mundo, correríamos o risco de não alcançar em plenitude o que almejou a autora ou, na melhor das hipóteses, deixaríamos de lado uma importante parcela de sua produção. Nesta direção, entendemos que reconhecer a vertente judaica, como gênese de uma significativa parte daquilo que ela vai realizar posteriormente, livra-nos de engodos e nos esclarece a origem de vários de seus temas mais diligentes.

Considerar a influência da questão judaica e a chave de leitura do modo pária de pensar e agir na elaboração da obra de Hannah Arendt não só nos dá mais uma importante elucidação de leitura de seu pensamento, como nos dá acesso ao mesmo. Deslocando-a dos problemas do enquadramento de direita ou de esquerda, se liberal ou não, na medida em que um olhar acurado por essa fase do seu pensamento nos ajuda a perceber o quanto estes se tornam, para Hannah Arendt, questões menores diante do que ela propunha compreender.

Destarte, a obra de Hannah Arendt reivindica, em nosso entender, um deslocamento dos enquadramentos a ela sugeridos para uma nova posição, qual seja: a de pária. Ou, em outras palavras, de um modo pária de filosofar e de agir. Esse modo pária de filosofar implica em ver e pensar a filosofia a partir de um ponto externo, na medida em que não se enquadra nas correntes tradicionais da política nem do pensamento, já consagradas pela tradição ocidental.

O modo pária de pensar, nesse sentido, visa o compreender. Contudo, não mais apenas a partir do espanto, do thaumazein, mas, sobretudo, da dor, como nos remete a reflexão de Eduardo Jardim. Nessa direção, a postura pária do filosofar considera outras formas de enfrentamento dos eventos e da reflexão sobre estes. Assim, Hannah Arendt, em relação às formas tradicionais de se pensar e de agir, emerge como uma outsider, todavia não plenamente, isto porque embora não assuma as formas tradicionais, mantém com estas um diálogo crítico, como se estivesse, a todo momento, dizendo – não sou isto, mas isto implicou o que sou. Daí sua reverência criticamente dialógica com a tradição ocidental, que mesmo tomando-a a seu modo e, por vezes, fugindo de seus cânones, assume-a como interlocutora sem a assumir como paradigma.

Meu percurso na tese sobre Arendt trilhou quatro momentos. No primeiro, busquei delinear o problema do antissemitismo e de suas expressões e terminologias. Ressaltei o mal perpetrado por este ao judeu e como isto implicou o pensamento da autora. Coloquei em relevo as posições do parvenu e do pária como dois atores no processo de assimilação e na relação com o antissemitismo, sobretudo na emergência do caso Dreyfus.

No segundo momento abordei o pária como figura central dessa reflexão arendtiana e destaquei sua maneira de ser no mundo que não o aceita. Trouxe à baila as figuras párias da tradição oculta e a representação de cada um, enquanto figuras de ação pré-política ou política. Nesta direção, dei destaque especial à figura de Rahel Varnhagen, por representar em nosso entendimento o tipo pária destacado, que se negando evitou o mundo e seu entendimento com o mesmo. Ressaltei a importância do pária rebelde e de como essa ideia de rebeldia enquanto forma de resistência ressoa na obra da pensadora, tanto no interior dos Escritos judaicos, quanto conforme sua obra mais disseminada.

No terceiro momento, ensejei trabalhar o modo pária de agir. Nesse momento importa entender o pária como paradigma da ação. Nesta direção o pária emerge como aquele que não se furta a viver na comunidade política, mesmo sabendo que não pertence a ela. Por sua condição, o pária está no mundo, mas não totalmente integrado a ele. Sabendo que este é o lócus privilegiado da ação em meio aos olhares e a presença do outros, assume o agir como manifestação de responsabilidade e compromisso para com o mundo. No quarto e último momento trabalhei a perspectiva do modo pária de pensar. O pensar para Arendt é uma possibilidade para obstar o mal. Quem não pensa ou estar ligado ao extremo as suas pertenças, como foi o caso de Eichmann, acaba por favorecer o espraiamento do mal como um fungo.  Objetivamos, nesta direção, por em foco, as questões concernentes ao pensar como diálogo silencioso do eu comigo mesmo e do juízo como forma de julgar e compreender em sua condição de espectador.

Sobre a imagem. A obra “Lei da Jornada”, do artista chinês Ai Weiwei, é sua maior instalação até hoje: um barco inflável de 70 metros de comprimento com 258 figuras de refugiados sem rosto de grandes dimensões. Segundo o artista, a ideia surgiu a partir de uma viagem à ilha de Lesbos, na Grécia: “Estávamos de férias naquela ilha maravilhosa e vimos um bote a aproximar-se, pacificamente, da costa, mesmo à nossa frente. Apontei o meu iPhone e comecei a filmar. O que vi foi chocante e inacreditável – refugiados a saírem do barco. Não havia ninguém para recebê-los. A cena parecia retirada de um filme, não a vida real”.

Ricardo George de Araújo Silva

Doutor em Filosofia (UFC). Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral-CE. Líder do Grupo de Pesquisa em Política, Educação e Ética (Gepede/UVA). Coordena o Laboratório de Estudos da Política (Lepol/UVA), que desenvolve pesquisas e observações em torno do fenômeno político.

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