“Bloodshot”: como a ficção reforça políticas punitivas na área da segurança

Dentro da proposta de discutir e analisar obras artísticas que versam sobre a temática da violência e da segurança pública, apresentamos na seção “Linguagens da Violência” a resenha do filme “Bloodshot”. A advogada Natália Pinto discute como a ficção sanciona a adoção de políticas de repressão e de contenção sob a operação de distinguir as pessoas entre “bandidos” e “heróis”

Por Natália Pinto Costa

Bloodshot (2020) é o nome filme do ator Vin Diesel, que é adaptação do HQ da Valiant, que conta a história do soldado Ray Garrison (Vin Diesel) que morre em combate, porém, seu corpo é doado para um experimento e então ele ressuscita graças ao poder da nanotecnologia e então adquire “superpoderes”, como habilidades de se curar instantaneamente e força exacerbada, entretanto, ele perdeu sua memória e tenta descobrir quem era antes da sua volta a vida.

Sem adentrar em detalhes do filme para evitar spoilers, pode-se dizer que o Soldado Ray vai recuperar sua memória e descobrir que sua esposa foi assinada e usará seus superpoderes para se vigar do assassino da sua amada. Tem diversas reviravoltas que não estão sendo elencadas aqui, inclusive, pontua-se que o filme não foi construído para ser uma crítica social, entretanto, se utiliza da obra cinematográfica para falar das dimensões simbólicas da pena e o poder punitivo.

Ray (Vin Diesel) vai ser movido pelo seu sentimento de vingança para então punir o assassino da sua esposa, o que no transcorrer do filme vai mudar diversas vezes e não importa seja qual for à mudança em torno do assassino, esse desejo de retribuição sempre vai parecer. Sem adentrar em discussões filosóficas se o homem é mau por natureza, que esse sentimento de vingança é intrínseco do ser humano, o objetivo não é este, mas pensar como o poder punitivo utiliza esta lógica de vingança para se justificar o controle de corpos indesejáveis e que estes merecem castigo.

Quando se pensa nos discursos legitimadores do poder punitivo e nas teorias da pena vai se encontrar uma pluralidade de funções que vão permitir justificar e racionalizar qualquer medida punitiva.

Souza aponta que existem duas grandes categorias ou tipologias dentro do Direito Penal no qual poderia se utilizar para intentar realizar essa missão, sua divisão foi a seguinte: teorias justificadoras absolutas ou teorias justificadoras relativas, para a primeira teoria a pena possui um fim em si mesma, podendo esta ser a redistribuição, castigo e para a segunda, a pena não possui um fim em si mesmo, e sim que será utilizada como um meio para alcançar um fim utilitário, que de maneira geral poderia ser evitar que novos delitos sejam cometidos.

Relacionando com o filme, elencar o personagem de Ray (Vin Diesel) como o herói ou algo semelhante e não questionar todas as mortes causadas pelo seu sentimento de vingança e acreditar que de fato está se fazendo “justiça” é semelhante a perpetuar a adesão subjetiva de acreditar que a pena, principalmente dentro da realidade brasileira, tem alguma função positiva como as classificações que foram apontadas acima.

Acreditar em uma função ressocalizadora ou qualquer aspecto positivo da pena é contraditório, pois, dentro de um capitalismo que se precisa do sistema penal, da prisão para controlar e excluir segmentos desumanizados, onde o poder punitivo tem relação direta com a acumulação de capital de corpos, como bem nos ensina Vera Malaguti “Aqui nas nossas veias abertas, homens animais, mercadorias ou mercadorias. Está lá, em Galeano e em Darcy Ribeiro: a cada ciclo econômico da colonização corresponde um moinho de matar gente”.

Não se fala em moinho de matar gente em sentindo simbólico, as mortes causadas dentro do sistema carcerário não são casos fortuitos ou acontecimentos isolados, são partes de um projeto político onde os corpos que são destinados ao cárcere são descartáveis. Como acreditar em um sistema em que apenas em janeiro de 2020, até o dia 12 de janeiro, já se tinha registrado 106 mortos apenas na penitenciária de Manaus?

Assim, este é um filme que está longe de ser construído como uma crítica social, entretanto, com lentes criminológicas é possível perceber como o discurso que giram em torno de vingança, ressocialização e construção de inimigos, justifica o poder punitivista, seja quando o “herói” mata o “bandido” na obra cinematográfica e dentro da realidade brasileira quando mortes violentas podem se transfigurar em “normais” desde que os envolvidos possuam passagens pela polícia ou se encaixe dentro do perfil bandido.


Morto em combate, o corpo do protagonista é doado para um experimento, ressuscitando graças ao poder da nanotecnologia e adquirindo “superpoderes”

Dentro desta lógica, não tem como encarrar a pena de prisão a fim de reforma-las ou melhora-las, pois como alerta Evandro Duarte “A lei nunca será para todos, porque o sistema penal se funda em mecanismos de reprodução da desigualdade, distribuindo desigualmente o bem negativo “punição” para os mais vulneráveis na hierarquia do poder político e econômico”.

Portanto, é preciso desnaturalizar essas teorias positivas da pena, perceber que os discursos em torno delas só funcionam dentro de um plano teórico e compreender e tentar incorporar funções agnósticas da pena como desenhou Zafarroni, ou seja, é preciso reconstruir um direito penal onde se tenha uma redução de tanta violência institucional e, sobretudo propor uma política de redução de danos onde não se tenha violação de direitos humanos.

Compreender a figura da pena e suas teorias e interligando com a neutralização dentro do imaginário coletivo, principalmente por obra audiovisuais e discursos midiáticos, encontra base de grande demanda por segurança pública e criminalidade violenta como um sistema que deve reagir sempre com punitivo e mais prisões. Estes modelos de teorias das penas funcionam como práticas que justificam o controle social por meio do sistema penal.

De certa forma, construir heróis e vilões perpassa em discutir segurança pública, poder punitivo e até mesmo pensar as funções da pena, portanto, pensar em como Bloodshot (2020) e outros filmes de ação carregam representações sociais que de maneira sútil reforçam uma realidade que justificaria uma política de contenção e repressão.

REFERÊNCIAS

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2018.

DUARTE, Evandro Charles. Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras?. Redes-Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Conoas, v.8, n.2, 2020.

MAISONNAVE, Fabiano. Comando Vermelho toma Manaus em meio a onda de assassinatos. Folha de São Paulo [site], 12 fev. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/02/comando-vermelho-toma-manaus-em-meio-a-onda-de-assassinatos.shtml. Acesso em: 03 mar. 2020.

SOUZA, Luciana Correa. A expansão do direito penal: os reflexos da influência midiática no processo de criminalização primária. 2017. 130 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências Jurídicas, Belém, 2017. Programa de Pós-Graduação em Direito. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/9894. Acesso em: 29 dez. 2019.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA. Nilo. Direito Penal Brasileiro I: Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2ª Ed., 2003.

Natália Pinto Costa

Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor), advogada, pós-graduada em Direito e Processo Penal pelo Centro Universitário Unicristhus.

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