“A facção só tem uma vantagem: Não bate em quem não deve nada. Se alguém chegar pra bater em mim sem eu dever nada a ele, levam lá pro chefe e ele se vira com ele”, comentou um morador de rua
Por Luiza Vieira
“A ‘caibada’ fez com que um valentão que vive no meio da praça fosse parar no hospital; hoje ele está todo no ferro”, relata um dos milhares moradores em situação de rua situados em praças públicas do centro de Fortaleza. O termo utilizado pelo morador em situação de rua, “caibada”, designa um tipo de violência utilizada por pessoas ligadas aos grupos criminosos que atuam na cidade. O método consiste em agredir uma pessoa com caibros de madeira, quebrando os membros do corpo da vítima, como braços e pernas. Conforme o blog apurou, o centro de Fortaleza dispõe de ao menos 11 praças em que o comércio de entorpecentes é gerido pelo grupo criminoso Comando Vermelho.
“Antigamente, a praça mais perigosa pra gente que mora na rua era a Praça do Ferreira. Qualquer besteirinha levavam a pessoa lá pra trás (ruas paralelas) e ‘peia’. A facção só tem uma vantagem: Não bate em quem não deve nada. Se alguém chegar pra bater em mim sem eu dever nada a ele, levam lá pro chefe e ele se vira com ele”, comentou Gean (nome fictício).
Para entender um pouco sobre o território e a divisão das facções no centro da cidade, uma fonte, vítima de tentativa de homicídio por um grupo criminoso, explicou que a segmentação propriamente dita ocorre nas comunidades localizadas na Beira Mar, repercutindo nas praças do Centro de Fortaleza. Gean explica que o Rio Cocó, localizado entre a Praia do Caça e Pesca e a Praia da Sabiaguaba é o limite entre uma facção e outra.
“A fronteira é o próprio Rio. Ninguém da Sabiaguaba fica de bobeira no Caça e Pesca e ninguém do Caça e Pesca põe os pés na Sabiaguaba, é essa a situação”, comentou. A fala do entrevistado faz referência à facção que domina cada localidade, sendo o grupo Guardiões do Estado (GDE) responsável pelo entorno do Caça e Pesca, e a Sabiaguaba gerida pelo Comando Vermelho (CV).
Gean alegou que, antes de morar nas ruas, concluiu o ensino superior e outras formações, o que resultou no domínio do cultivo e produção de hortaliças. Então, deu início ao comércio dos alimentos para os restaurantes e ambulantes do litoral de Fortaleza, o que fez com que a relação com os moradores da periferia ficasse ainda mais forte.
“Os caras do Caça e Pesca (GDE) disseram, entre eles, que eu era do Comando Vermelho e estava de um lado para o outro passando informações, dizendo que eu vivia na Baixa Pau (Poço da Draga), dentro das favelas, Praia de Iracema… Isso tudo verdade, a questão é que eu não sou camisado (faccionado) e não sou relacionado a nada”, relatou ao Blog.

Morada e segurança nas ruas
Em 2021, Gean disse que participava de um treinamento com o Corpo de Bombeiros com o objetivo de mudar de profissão. Contudo, ao fim da tarde, depois de visitar os peixes-boi dentro do Rio Cocó, sofreu uma tentativa de homicídio. “Me sentei à beira do rio pra ver o pôr do sol, esperar a maré encher e atravessar o rio e ir pra casa. Mas aí, quando menos espero ouço um zumbido atrás de mim: era um cara prestes a me dar uma paulada. Imediatamente coloquei o braço pra me proteger, ele bateu e quebrou meu braço”, descreve.
“Eu perguntei o que ele estava fazendo e ele me explicou e foi dar outra. Ele estava sozinho mas tinha vários outros lá atrás, encobrindo. Então eu peguei o pau dele, e ia descontar, mas veio o meu instinto de não violência. Soltei o pau e pulei no rio, porque os outros estavam vindo atirando”.
Gean afirmou que nadou até a “arrebentação”, que consiste em uma parte do rio rodeada de corais, visto que se fosse fugir para as dunas da Sabiaguaba logo seria avistado pelos criminosos. “Quando eu cheguei nos ‘coco’, todo mundo ficou em choque, eu estava com o braço quebrado e disse que tentaram me matar. Precisei de um lugar para dormir e fiquei dentro da favela, que é Comando Vermelho. Eles me conheciam porque eu vendia hortaliças para os pais deles, então eles me abrigaram”, prosseguiu.
“Aí eu venho de lá pra cá, fico trabalhando nas praias e nas barracas. Me esqueceram, e é assim, quanto mais ficar, melhor. Então decidi ficar morando nas praias e nas praças”, completou o entrevistado.
Disputa por territórios
A Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de Fortaleza, é uma das entidades que atuam nessa causa. De acordo com um dos membros da pastoral, o problema que atinge os indivíduos nesta condição te origem na disputa territorial entre as facções por locais públicos da cidade. “A Pastoral, junto com outras entidades, vem discutindo a questão da descriminalização das drogas. É um discurso difícil, polêmico, que precisaria ser muito bem trabalhado, mas que talvez fosse uma saída para dar um freio em algumas coisas”, seguiu.
“O pior que a gente percebe é que são os pobres que matam os pobres, porque os donos, as pessoas que têm o tráfico na mão, às vezes não estão nem na cidade, não estão nem no Brasil, estão fora, vivendo as suas vidas de luxo. Enquanto isso, os jovens das periferias, pretos e pardos, têm sua juventude tragada pelo tráfico”.
O que dizem as autoridades
O Blog contatou o Governo do Estado e a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Sspds) a fim de saber se existe registro da atuação de facções nas praças de Fortaleza, no entanto, não obteve retorno até a publicação deste material. O espaço segue aberto para manifestações.
Procurada para esclarecer a situação do comércio de entorpecentes nas praças do centro da cidade, a Prefeitura de Fortaleza reforçou que a “venda de droga, ainda é uma questão de segurança pública” e que o órgão gestor dá “suporte às pessoas em situação de rua por meio de programas”.
Sobre a foto: inscrição do CV pode ser vista na Praça da Lagoinha, no Centro.
Fotos: Luís Carlos Saldanha Ribeiro, do Centreiro
