A chacina do Curió e o nosso pacto civilizatório em xeque

Mais que uma simples ação penal, a chacina do Curió é um marco na delimitação do que pode ser tolerado pela sociedade. Não é possível que um crime de tal dimensão permaneça impune por ainda mais tempo. A resposta a essas questões começam a ser dadas esta semana a partir do julgamento dos primeiros policiais militares denunciados.

Por Ricardo Moura

Em uma de suas origens, a palavra chacina deriva do processo de corte da carne animal para consumo. A imagem remete a um aspecto brutal de nossa existência, mas que possui uma razão de ser, ou seja, alimentar-nos. O assassinato em larga escala foge da nossa compreensão pela sua crueldade. Por suas próprias características, a chacina é resultado de uma ação planejada e levada a cabo por um grupo de pessoas quase sempre fortemente armadas. Há uma deliberação do ato, um exercício elaborado da perversidade. Para dar conta do entendimento desse fenômeno, a divisão entre o humano e o animal é rompida. Pessoas não são apenas mortas, mas sim chacinadas. Sem razão de ser alguma.

Há 30 anos, o Ceará convive com a dura realidade desse termo desde que três adolescentes foram executados na Chacina do Pantanal. O mal-estar provocado por aquele ato de violência fez com que o próprio bairro mudasse sua denominação. Dizer que residia no Pantanal era um motivo a mais para o estigma social. A escolha de um novo nome, Planalto Ayrton Senna, foi uma tentativa de apagar o ocorrido das consciências.

A dinâmica da violência letal, contudo, se disseminou de tal forma que não é mais possível renomear os territórios em que ela acontece: Quixeramobim, Sapiranga, Itapajé, Benfica, Cajazeiras, Juazeiro do Norte, Lagamar são alguns dos muitos locais em que vidas humanas são chacinadas. Como se vê, o que era um episódio relativamente raro tornou-se tão recorrente que foi criada uma contabilidade não-oficial de ocorrências e vítimas. Na verdade, as chacinas se sucedem num ritmo tão intenso que já perdemos a conta de quantas ocorreram.

Já nem nos importamos mais, muito menos nos mobilizamos. O fardo de lidar com as perdas cabe exclusivamente às famílias. Elas não esquecem seus entes queridos. Precisam superar a tristeza e o luto para entrar na luta pela justiça. Exigir reparação em meio ao véu do desinteresse sobre o tema que perpassa nossa sociedade.

Esta coluna é um esforço, também solitário, de manter a memória acesa, de acender o fogo da indignação para além dos nossos círculos mais íntimos. É preciso nunca esquecer que as vítimas são pessoas e não números, dados ou figuras descartáveis. Possuíam sonhos, desejos, amavam e eram amadas.

O julgamento dos acusados pela chacina do Curió, que terá início na próxima terça-feira, dia 20, não se restringe apenas à análise das circunstâncias de um crime e sua autoria. O que está em jogo é o próprio pacto civilizatório que funda o Estado e nossa sociedade. A sentença irá responder a uma questão: é tolerável que agentes estatais tirem a vida de pessoas inocentes?

Conforme o Ministério Público, o crime se originou de uma vingança em retaliação ao assassinato do soldado PM Valtermberg Chaves Serpa, que morreu após reagir a um roubo contra a esposa dele. A ação foi articulada por policiais militares que estavam de serviço e também de folga.

A denúncia oferecida pelo Ministério Público é dividida em 9 episódios ocorridos em locais e horários próximos, na Grande Messejana. No Curió, foram executados: Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17; Jardel Lima dos Santos, 17; e Álef Souza Cavalcante, 17. Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho, 18, morreu no hospital após ser baleado.

Cerca de meia hora depois, no Alagadiço Novo, homens encapuzados mataram Marcelo da Silva Mendes, 17, e Patrício João Pinho Leite, 16. Na Lagoa Redonda, Renayson Girão da Silva, 17, foi retirado do ônibus em que estava e executado. Foram assassinados no São Miguel: Jandson Alexandre de Sousa, 19, Francisco Elenildo Pereira Chagas, 41, e Valmir Ferreira da Conceição, 37. José Gilvan Pinto Barbosa, 41, foi morto no Barroso. Ainda segundo o MP, há “elementos concretos, suficientes e idôneos da autoria ou participação dos denunciados nos crimes”.

Por óbvio que a participação de cada acusado deverá ser ponderada e avaliada a fim de definir o grau de envolvimento individual nessa matança, mas a responsabilização dos culpados precisa ser exemplar ainda que se corte na carne. É o mínimo que se espera diante do assomo da barbárie em nosso cotidiano. É preciso estabelecer a delimitação do que pode ser tolerado. Não é possível que um crime de tal dimensão permaneça impune por ainda mais tempo. A resposta a essas questões começam a ser dadas esta semana.

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