Toda guerra se faz ao vivo. É um acontecimento que se faz contra o vivo pondo-o sob o perigo de morte. É uma ação imediata que requer uma reação não menos imediata do vivo para continuar vivo, sobreviver. Quando se elege a guerra, o vivo teme e treme por sua morte a cada momento, a violência se intensifica em seu corpo e mente de modo imediato. É na imediatez que uma guerra se faz contra o vivo que busca em toda guerra adiar sua morte
Por Jean Pierre
Quando Orson Welles transmitiu “A guerra dos mundos” numa peça radiofônica em 1938 e colocou cidades em pânico com pessoas pensando que era uma verdadeira invasão alienígena, dois mundos realmente entraram em guerra: o da realidade e o das ficções midiáticas, o mundo dos acontecimentos e o mundo dos relatos sobre acontecimentos, o mundo real e o mundo projetado pelas mídias. O mundo projetado pelas mídias é uma representação ou ficção da realidade que muitas vezes está em conflito com ela, com o que é vivo nela, com o que vive a realidade, por mais que as mídias defendam que o que fazem é “ao vivo”. Diferente do que as mídias dizem, não é a realidade o que mostram ao vivo e o que defendem é senão a morte da realidade do vivo. O relato e imagem ao vivo é, na realidade, um relato de sua morte, um desejo de morte da realidade e do que é vivo.
“A primeira vítima da guerra é a verdade, afirma um velho ditado jornalístico.”, disse o jornalista Guillermo Altares em seu artigo A longa história das notícias falsas no qual ressalta como desde os gregos “a utilização política das mentiras começou muito antes das redes sociais”. Que esse ditado seja jornalístico é digno de nota, pois é com o objetivo de informar ou noticiar a verdade, isto é, o que acontece na realidade, que os jornais surgem como mídias, veículos ou tecnologias da informação. Neste sentido, se é na guerra que a verdade se torna vítima, é o jornalismo que pretende defender a verdade, o que acontece de verdade na realidade, ou ainda, manter viva a verdade e a realidade, ainda que vítima da guerra, morta por sua violência.
Como Guillermo Altares demonstra muito bem, os jornalistas não são os primeiros a pretenderem defender a verdade em relação à guerra, outros já tiveram essa pretensão, principalmente os historiadores, desde Heródoto e Tucídides até os mais recentes citados em seu artigo demonstrando como os antigos historiadores também fizeram vítima a verdade, a realidade e o que estava vivo em defesa da guerra. Mais recentemente historiadores e jornalistas se veem diante dos influenciadores nas redes sociais que também pretendem defender a verdade, a realidade ao vivo.
Quanto a essa pretensão de verdade em relação à guerra pelo jornalismo, quiçá pelos historiadores e influenciadores, é também digno de nota a diferenciação que o autor faz entre propaganda e fake news para evitar o “equívoco” entre ambas: “A propaganda procura convencer, ser eficaz, e para isso pode recorrer a todo tipo de instrumento, da arte e do cinema aos pasquins e redes sociais. As notícias falsas, um dos ramos da propaganda, são diferentes: procuram enganar, criar outra realidade” (grifos meus).
Segundo Guillermo Altares o que diferencia a fake news da verdade, ou ainda, aquilo que numa guerra mata a verdade, que se torna o veículo ou tecnologia de morte da verdade, e do que está vivo na realidade, é a criação de outra realidade, o que, no entendimento dele, a propaganda não faz. Algo estranho quando vemos na realidade em letras miúdas nos panfletos atuais ou virtuais das propagandas os seguintes dizeres: “As imagens são meramente ilustrativas.” Ou seja, não correspondem à realidade.
Para o autor, a propaganda em imagens na televisão ou em panfletos não é, por sua vez, a criação de outra realidade, tão pouco as palavras ditas nos jornais por mais que diga em seu artigo que: “Três dos grandes conflitos em que os Estados Unidos se meteram neste período começaram com invenções: a guerra de Cuba (1898), com a manipulação dos jornais; a guerra do Vietnã (1955-1975), com o incidente do golfo de Tonkin, e a invasão do Iraque de 2003, com as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein.” Neste sentido, omitindo no caso da Guerra do Vietnã e Invasão do Iraque que houve uma grande manipulação dos jornais televisivos.
Por mais que tente defender a propaganda e os jornais como defensores da realidade de verdade, do que acontece ao vivo, das vítimas da guerra, a definição de propaganda e a relação dela e de jornais com a guerra é muito mais íntima do que afirma o jornalista. Pois não é a guerra uma retórica que “procura convencer, ser eficaz, e para isso pode recorrer a todo tipo de instrumento, da arte e do cinema aos pasquins e redes sociais” para que se acredite nela assim como faz a propaganda? E o jornalismo com seus relatos da guerra? Se é na guerra que a verdade é vítima, é na propaganda e, não por menos no jornalismo, que se anuncia sua morte e que se faz, mais ainda, o elogio da morte da verdade na guerra, por mais que tente mantê-la viva.
Porém, isso não é somente um problema dos jornalistas, pois estão tanto do lado da guerra como os antigos historiadores e os novos influenciadores, bem como os políticos e religiosos que matam a verdade para manterem viva a mentira e a si próprios, como demonstra também Guillermo. É um problema também dos filósofos e de todos no cotidiano na pretensão de falar a verdade, escrevê-la e descrevê-la em imagens aqui e agora, ao vivo, mas que já está morta junto com ele vítima da guerra de modo imediato.
Morte ao vivo é o que acontece em toda guerra e em muitas histórias e notícias de guerra da qual somos testemunhas de modo mediado pelas mídias, por mais que digam ou façam pensar que é de modo imediato acelerando a fala, as câmeras e correndo como os cavalos e cavaleiros para entregarem rápido uma notícia de morte. Neste sentido, na reportagem de Guillermo, o que diz o estudioso da arte espanhola Felipe Peredo sobre as pinturas que a Igreja Católica mandou criar para manter viva a mentira e “propagandas falsas” que ela criou durante a Inquisição de que judeus tentaram destruir um crucifixo como motivo para poder assassiná-los, demonstra o quão problemático é o desejo de morte, de presenciar a morte ao vivo e transmitir a morte ao vivo, ainda mais em tempo de guerra: “Os quadros reconstroem com documentadíssimo cuidado a cena do crime, descrevem os detalhes dos fatos, identificam cada um de seus protagonistas e, o que é mais importante, transformam os espectadores em testemunhas dos acontecimentos”.
Ao pretender falar, escrever ou descrever em imagens meramente ilustrativas a verdade como vítima da guerra, se tenta fazê-la reviver, mas a verdade já foi morta na realidade com a guerra ao vivo. A retórica da guerra mata a verdade antes mesmo da guerra acontecer. O que resta é a criação de outra realidade da qual todos somos testemunhas, mas também algozes, das maiores violências de modo imediato por meio de um clique e um apontar inquisidor de dedos nas diversas mídias que não estão isentas da guerra, muito menos o jornalismo.
Muito pelo contrário, estão ávidas de notícias da guerra em seu desejo de morte e de matar e fazem totalmente parte da guerra então híbrida de que tanto se fala atualmente. Se a guerra em sua retórica, enfim, opõe dois lados, estes são o do vivo e o do morto, o de quem resiste à guerra e à morte adiando-a em cada batalha e aqueles que anseiam pela morte ao vivo na guerra e nas diversas mídias, sejam verdade ou mentira, pois o que importa é a retórica da guerra.
A longa história das notícias falsas: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/08/cultura/1528467298_389944.html
Sobre a transmissão de Orson Welles da “Guerra dos mundos”.
https://www.dw.com/pt-br/1938-p%C3%A2nico-ap%C3%B3s-transmiss%C3%A3o-de-guerra-dos-mundos/a-956037