Em um futuro não tão distante uma distopia familiar: o fim do SUS e a barbárie

Por Alana Aragão Ávila

Pareceria um tanto absurdo alardear o fim de um sistema de saúde que tem pouco mais de trinta anos. Mais absurdo ainda se pensássemos em seu primo-irmão, o inglês NHS, que opera desde 1948 e se manteve atuante mesmo diante de governos com princípios neoliberais como o de Margareth Thatcher. Acontece que, do lado de cá, a tal distopia da morte do SUS parece cada vez mais palpável.

Ainda que não falemos em governos totalitários como o Estado Único descrito no romance distópico ‘Nós’, do escritor russo Ievguêni Zamiátin, é no seio de governos democraticamente eleitos que vemos as movimentações que buscam destronar o SUS como um dos maiores exemplos mundiais de sistema público de saúde. Através de uma rede de poderes, que disciplina não apenas corpos como mentes em prol de uma pretensa racionalidade vinculada a dita austeridade das políticas liberais, forma-se diante de nós o prefácio de uma distopia que não queremos conhecer.

É necessário lembrar, especialmente aos nascidos após 1988, que nem sempre houve SUS. Nem sempre existiram as UPAS, as Unidades Básicas de Saúde, os encaminhamentos para especialistas, as guias de autorização para exames ou o próprio SAMU, criado apenas em 2004. Para ser sincera, há pouco não tínhamos sequer algo que se pudesse nomear propriamente como “saúde pública”.

Em 1953, quando foi criado o Ministério da Saúde e o Brasil tinha pouco menos de 60 milhões de habitantes, apenas os trabalhadores que contribuíam para a Previdência Social tinham direito ao atendimento médico. Em uma lógica profundamente curativista e individualista, não existiam famílias ou comunidades, apenas sujeitos. Ou, melhor dizendo,existiam apenas trabalhadores. Nesse momento, tornava-se claro quem eram os indivíduos reconhecidos como sujeitos de direitos: os que trabalhavam e contribuíam para o Estado. Todo o restante da população, inclusos muitos trabalhadores rurais, trabalhadores informais – especialmente mulheres – além dos pobres e dos ditos “loucos” ou deficientes que não eram absorvidos pelo mercado de trabalho, contavam, quando muito, com a caridade.

Foi a partir das lutas pela Reforma Sanitária e dos movimentos de mulheres, como o que deu origem a Carta aos Constituintes, que as bases do que viria a ser o SUS foram estabelecidas. Ambos os movimentos surgiram em plena Ditadura Militar e fizeram parte da retomada democrática dos anos 1980 que culminou na aprovação da Constituição Federal de 1988, responsável pela institucionalização do Sistema Único de Saúde. Os anos seguintes foram de aperfeiçoamento do sistema. A criação da Estratégia de Saúde da Família, das Unidades Básicas de Saúde, a criação dos setores de atenção primária, secundária e terciária em saúde, além do amplo investimento na saúde pública incorporando sujeitos até então à margem da sociedade. Todas essas movimentações tornaram o SUS, mesmo com seus imensos desafios, um exemplo em termos de saúde pública. Foi especialmente sua capacidade de capilarização que ajudou a modificar o cenário da saúde brasileira. Desde a diminuição de mortes infantis por doenças primárias, como difteria, aliadas a ampliação do saneamento básico, o SUS refez a noção de direitos e de reconhecimento.

Apesar da onda progressista, que tomou forma especialmente no início dos anos 2000 com a criação e a consolidação de programas voltados à promoção de saúde, o horizonte encontra-se, agora, cada vez mais tenebroso. Talvez seja exatamente por enxergarmos essa primeira onda de progresso que o sucessivo desmonte da saúde pública brasileira seja tão atordoante. Desde 2016, logo após o golpe que tirou Dilma Rousseff da presidência, o SUS sofre ataques abertos de governos que, voltados a uma agenda neoliberal que visa o enfraquecimento de políticas lidas como sociais, empregam técnicas que interferem não apenas na dimensão econômica, mas também na moralidade. Não foi à toa que a Emenda Constitucional 95 congelou os gastos públicos por 20 anos (incluindo os destinados à saúde). A premissa por trás da ação dos mecanismos que levaram a esta aprovação são os mesmos que agem atualmente através das mãos de Paulo Guedes ao promover sucessivos congelamentos no orçamento da pasta da saúde: a premissa de que o custo social é inferior à expectativa em torno dos ganhos providos pelo mercado.

A fórmula é bem simples e conhecida desde os primórdios do que viria a ser o neoliberalismo. Tudo vale em prol de deixar o mercado livre o suficiente para que se “autorregule”, inclusive através da intensa intervenção do Estado. Acontece que esse ‘tudo’ não são apenas números, são pessoas. São comunidades inteiras que perdem o acesso (ainda que já precário) à saúde. O subfinanciamento do SUS parte do pressuposto de que, rompendo com os princípios não só do SUS como da própria Constituição Federal, a saúde não é obrigação do Estado. É dentro desse projeto político que nos encontramos agora. A recusa da compra de vacinas, o descaso com a falta de oxigênio em hospitais, os recordes diários de mortes evitáveis vinculadas à Covid-19, as lives presidenciais repletas de desinformação e calúnias, a diminuição dos atendimentos em Centros de Saúde, os contratos superfaturados com empresas privadas para suprir uma demanda criada pelo próprio governo… A lista não tem fim.

O Brasil parece retornar a lembrança de 1953 – saúde pública enfraquecida, a negação das comunidades e dos vínculos, o acesso à saúde mediado pelo trabalho (mas agora apenas para quem pode pagar um plano de saúde privado) -, mas com a diferença de que somos agora pouco mais de 212 milhões de habitantes. Somos um país em que as taxas de desemprego e violência crescem infladas pelo descaso com a educação, a saúde e o entendimento que todo brasileiro é sujeito de direitos. O projeto político em que estamos inseridos sacrifica todos os dias milhares de vidas – se não pela morte direta, pelo abandono – em prol de um Deus Mercado que, com sua mão invisível, promete nos guiar ao patamar dos países de primeiro mundo. Uma promessa nunca feita, mas carregada como bandeira por uma classe política que dispensa qualquer noção de solidariedade e comprometimento social. O que importa é o indivíduo e só quando esse é homem, branco e, de preferência, de classe alta. Infelizmente, a classe média ainda não percebeu isso.

O desmonte do SUS e suas repercussões só podem levar a um fim: a barbárie. Em 2019, pensando o impacto do teto de gastos proposto pela Emenda Constitucional 95, pesquisadores previram 27,6 mil mortes evitáveis até 2030 apenas pelo enfraquecimento da Atenção Primária. Hoje, 19 de fevereiro de 2021, atingimos 244.737 apenas por Covid-19. Quantas dessas mortes seriam evitadas se o Ministério da Saúde estivesse em mãos capacitadas ao invés de estar nas mãos de um general (supostamente, especialista em “logística”)? Quantas mortes estão ocorrendo em outros locais, aparentemente não estão vinculadas à Covid-19, mas desencadeadas pela falta de atendimento médico, pois todos os profissionais estão exaustos, precarizados e de mãos atadas frente ao descaso do governo em relação à pandemia? Todos os dias um novo golpe atinge as políticas públicas. Todos os dias avançamos uma página na introdução da nossa distopia familiar. Infelizmente, não é possível apenas fechar o livro ou rasgar as páginas para interromper a sangria imposta. Para transformarmos o cenário da saúde pública brasileira será preciso destruir todo o maquinário da racionalidade neoliberal.


Alana Aragão Ávila

Doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFSC). Bacharel em Psicologia (UFC). Pesquisadora vinculada ao Coletivo de Estudos em Ambientes, Percepções e Práticas (CANOA). E-mail: alanaavila01@yahoo.com.br.

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