Foram suspensos em caráter liminar os efeitos da Resolução 126/2020 do Comitê Executivo de Gestão da Câmara do Comércio Exterior (Gecex) que zerou a alíquota de importação de revólveres e pistolas. Confira o trecho do voto em que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, sustenta sua decisão. O texto retoma o entendimento do órgão sobre desarmamento, bem como os aspectos inconstitucionais da decisão do Gecex.
A questão ora em julgamento versa sobre o conflito entre as finalidades constitucionais subjacentes à norma indutora do Imposto de Importação frente a valores outros constitucionais, com destaque para o direito à vida, a segurança pública e o mercado interno.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a doutrina majoritária posicionaram-se no sentido de afirmar que a concessão de medidas cautelares, nas ações de controle abstrato de constitucionalidade, deve obedecer aos requisitos do fumus boni iuris, entendido como a razoabilidade jurídica das teses apresentadas, e o periculum in mora, isto é, a relevância do pedido em face dos possíveis danos ocasionados pela demora da decisão demandada.
Passo, portanto, à análise dos fundamentos sobre os quais se alicerçam o pedido de suspensão dos efeitos da Resolução do GECEX nº 126/2020.
4.1 Da extrafiscalidade do Tributo e seus efeitos sobre o mercado interno
É inegável que a Resolução n.126/2020 do Comitê Executivo de Gestão da Câmara do Comércio Exterior (GECEX) tem por finalidade subjacente o fomento à importação de pistolas e revólveres, o que se constata, in limine, incompatível com a preservação do mercado interno, com foco setorial à indústria bélica, que já há alguns anos enfrenta desafios não só na ordem interna, senão também externa.
A Constituição de 1988 considera o mercado interno patrimônio nacional que deve ser fomentado com vistas a propiciar desenvolvimento cultural e socioeconômico, vejamos:
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.
A iniciativa de reduzir a zero a alíquota do imposto de importação de pistolas e revólveres impacta gravemente a indústria nacional, sem que se possa divisar, em juízo de delibação, fundamentos juridicamente relevantes da decisão político-administrativa que reduz a competitividade do produto similar produzido no território nacional. Há significativo risco, portanto, de que ocorra desindustrialização, no Brasil, de um setor estratégico para o país no Comércio Internacional.
Identifica-se, prefacialmente, que a Resolução GECEX nº 126/2020 representa possível ofensa grave ao art. 219 da CRFB, atentando contra o patrimônio nacional ao arrostar negativamente o mercado interno de setor econômico estratégico. Neste momento altamente sensível para a retomada econômica, consideradas as sequelas do coronavírus sobre o conjunto das atividades produtivas do país, a inviabilização de relevante setor industrial deve ser vista com especial atenção.
O mesmo dispositivo do art. 219 da CRFB/88 prescreve, in fine, como objetivo constitucional, o “bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal”. Na realidade, tem-se o desafio de evidenciar como o imposto de importação dialoga com os valores expressos em nosso sistema constitucional, partindo-se de uma concepção da tributação que a considera como instrumento de uma política pública constitucionalmente orientada.
Em sede de fixação de “alíquota zero”, há que se ter em conta que o Brasil é signatário de diversos acordos, no Sistema Multilateral do Comércio, a referendar cogência tanto ao Direito Aduaneiro quanto ao Direito do Comércio Internacional (cf. ADPF 101, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 24/06/2009, DJe-108 DIVULG 01-06-2012 PUBLIC 04-06-2012 EMENT VOL-02654-01 PP-00001 RTJ VOL00224-01 PP-00011 e RE 564413, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/08/2010, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe209 DIVULG 28-10-2010 PUBLIC 03-11-2010 REPUBLICAÇÃO: DJe-235 DIVULG 03-12-2010 PUBLIC 06-12-2010 EMENT VOL-02445-01 PP-00137 RTJ VOL-00218-01 PP-00523).
Na doutrina tributária pátria, o professor titular de Direito Tributário do Largo de São Francisco (USP), Luís Eduardo Schoueri, leciona que as normas tributárias indutoras, ao perseguirem objetivos extrafiscais prescritos, devem observar, simultaneamente, outros valores constitucionais, com destaque para todos os previstos no Título da Ordem Econômica (SCHOUERI, L. E. Livre concorrência e tributação. In: Valdir de Oliveira Rocha. (Org.). Grandes questões atuais do Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2007, v. 11, p. 241-271, p.243).
A técnica exonerativa de “alíquota zero” corresponde, indubitavelmente, à isenção tributária, mediante “normas-convite”. Opera-se, prima facie, no âmbito da licitude, na medida em que os órgãos de Segurança Pública (Ministério da Justiça-MJ e Exército Brasileiro-EB) já prescrevem normas “comando-controle” para importação de armas. Isto não confere, contudo, um “cheque em branco” para o Executivo fomentar a importação mediante indiscriminada redução de tributos.
Não se ignora que a redução do imposto de importação, mediante ato normativo próprio do Executivo, é autorizada pelo art. 153, § 1º da CRFB/88. Tampouco se ignora que, conforme anteriormente reconhecido por este Tribunal (RE 570.680/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJE de 4/12/2009), confere-se certa discricionariedade, na matéria, ao Chefe do Poder Executivo, podendo haver, inclusive, delegação à CAMEX/GECEX. A questão juridicamente relevante passa a ser a de se, no exercício desta prerrogativa, os efeitos extrafiscais da redução a zero da alíquota do imposto representam indevida violação de direitos fundamentais, colidindo com princípios que, ante as circunstâncias do caso concreto, reclamam precedência.
Não por outra razão, a Segunda Turma, ao enfrentar a legitimidade da fixação de alíquotas do imposto de importação, classificou este instituto como instrumento de política econômica apto ao controle do Poder Judiciário. Em seu voto, o e. Ministro Maurício Corrêa considerou-o mais como um instrumento de proteção da indústria nacional do que propriamente de satisfação das necessidades financeiras do Estado. Confira-se:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO DE VEÍCULOS USADOS. VEDAÇÃO: PORTARIA Nº 8/91-DECEX. VULNERAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA LEGALIDADE. INEXISTÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Imposto de importação. Função predominantemente extrafiscal, por ser muito mais um instrumento de proteção da indústria nacional do que de arrecadação de recursos financeiros, sendo valioso instrumento de política econômica. 2. A Constituição Federal estabelece que é da competência privativa da União legislar sobre comércio exterior e atribui ao Ministério da Fazenda a sua fiscalização e o seu controle, atribuições essas essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais. 2.1. Importação de veículos usados. Vedação. Portaria DECEX nº 08/91. Legalidade. A competência do Departamento de Comércio Exterior, órgão do Ministério da Fazenda, encontra-se disciplinada no art. 165 do Decreto nº 99.244/90 e, dentre outras atribuições, compete-lhe a de emitir guia de importação, de fiscalizar o comércio exterior e a elaboração de normas necessárias à implementação da política de comércio exterior. Improcedência da alegação de ofensa ao princípio da legalidade. 3. Princípio da isonomia. Vulneração. Inexistência. Os conceitos de igualdade e de desigualdade são relativos: impõem a confrontação e o contraste entre duas ou várias situações, pelo que onde só uma existe não é possível indagar sobre tratamento igual ou discriminatório. 3.1. A restrição à importação de bens de consumo usados tem como destinatários os importadores em geral, sejam pessoas jurídicas ou físicas. Lícita, pois, a restrição à importação de veículos usados. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 199619, Rel. Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, julgado em 26/11/1996, DJ 07-02-1997 PP-01376 EMENT VOL01856-08 PP-01635).
Ainda que este Supremo Tribunal Federal já tenha afirmado a discricionariedade do Presidente da República para a concessão de isenção tributária em vista da efetivação de políticas fiscais e econômicas (MS 34342 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, Dje 23/08/2017), parece-me necessário traçar um distinguo: não se está aqui a tratar, simplesmente, da capacidade de programação da Administração Pública para a efetivação de determinada política econômica. Neste sentido, a opção normativa de fomento à aquisição de pistolas e revólveres por meio de incentivos fiscais mediante a redução do imposto de importação encontra óbice não no conjunto de competências atribuído ao Chefe do Poder Executivo, mas sim na probabilidade de ingerência em outros direitos e garantias constitucionalmente protegidos.
É inegável que, ao permitir a redução do custo de importação de pistolas e revólveres, o incentivo fiscal contribui para a composição dos preços das armas importadas e, por conseguinte, perda automática de competitividade da indústria nacional; o que afronta o mercado interno, considerado patrimônio nacional, conforme prescrito na ordem econômica constitucional, e causa não razoável mitigação dos direitos à vida e à segurança pública, que passo a tratar a seguir.
4.2 Dos fundamentos constitucionais do desarmamento
Quando do julgamento da ADI 3.112, de relatoria do eminente Min. Ricardo Lewandowski, este Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade da Lei nº 10.826, de 2003 (Estatuto do Desarmamento) à luz do liame estreito existente entre o controle da circulação de armas no país e a efetivação de direitos fundamentais. Naquela ocasião, observou-se que o referido controle não deveria defluir de simples juízo de oportunidade de eventuais manifestações político-administrativas, enraizando-se antes no próprio projeto comum de sociedade que se inaugura em 1988, e que se expande por um sem número de compromissos da comunidade internacional.
Colhe-se do voto do e. Ministro Ricardo Lewandowski:
Como se nota, as ações diretas de inconstitucionalidade ora ajuizadas trazem ao escrutínio desta Suprema Corte tema da maior transcendência e atualidade, seja porque envolve o direito dos cidadãos à segurança pública e o correspondente dever estatal de promovê-la eficazmente, seja porque diz respeito às obrigações internacionais do País na esfera do combate ao crime organizado e ao comércio ilegal de armas (ADI 3.112, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJ 26/10/2007, grifos meus).
Princípio afirmando que a análise da higidez constitucional da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, denominada Estatuto do Desarmamento, deve ter em conta o disposto no art. 5º, caput , da Constituição Federal, que garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à segurança, ao lado do direito à vida e à propriedade, quiçá como uma de suas mais importantes pré-condições. Como desdobramento desse preceito, num outro plano, o art. 144 da Carta Magna, estabelece que a segurança pública constitui dever do Estado e, ao mesmo tempo, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Trata-se, pois, de um direito de primeira grandeza, cuja concretização exige constante e eficaz mobilização de recursos humanos e materiais por parte do Estado. O dever estatal concernente à segurança pública não é exercido de forma aleatória, mas através de instituições permanentes e, idealmente, segundo uma política criminal, com objetivos de curto, médio e longo prazo, suficientemente flexível para responder às circunstâncias cambiantes de cada momento histórico.
Nesse sentido, observo que a edição do Estatuto do Desarmamento, que resultou da conjugação da vontade política do Executivo com a do Legislativo, representou uma resposta do Estado e da sociedade civil à situação de extrema gravidade pela qual passava – e ainda passa – o País, no tocante ao assustador aumento da violência e da criminalidade, notadamente em relação ao dramático incremento do número de mortes por armas de fogo entre os jovens.
A preocupação com tema tão importante encontra repercussão também no âmbito da comunidade internacional, cumprindo destacar que a Organização das Nações Unidas, após conferência realizada em Nova Iorque, entre 9 e 20 de julho de 2001, lançou o Programa de Ação para Prevenir, Combater e Erradicar o Comércio Ilícito de Armas de Pequeno Porte e Armamentos Leves em todos os seus Aspectos (UN Document A/CONF, 192/15).
O Brasil vem colaborando com os esforços da ONU nesse campo, lembrando-se que o Congresso Nacional, aprovou, em data recente, por meio do Decreto Legislativo 36, de 2006, o texto do Protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças e componentes e munições, complementando a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotado pela Assembleia-Geral, em 31 de maio de 2001, e assinado pelo Brasil em 11 de julho de 2001.
É possível divisar, a partir do julgamento de mérito da ADI 3.112, nítido fio jurisprudencial que, em consonância com recorrentes manifestações e decisões de tribunais e organizações internacionais de direitos humanos, reafirma a necessidade do controle ao acesso às armas de fogo.
Quando este Tribunal examinou a constitucionalidade da Lei nº 13.060, de 2014, que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, observei que as obrigações de uso proporcional das armas de fogo “explicitam o conteúdo do direito constitucional à vida”, e, portanto, manifestam-se como direito fundamental (ADI 5.243, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Red. para o acórdão Min. Edson Fachin, Pleno, DJE 05/08/2019).
Entendo que, em casos relacionados à dimensão securitária das funções do Estado, é de se entender que o direito fundamental à vida goza de forte peso prima facie, aportando imenso ônus argumentativo às medidas que tendem a minorá-lo. Como pude registrar na ADI 5.243, o alcance do direito constitucional singelamente previsto no caput do art. 5º da Constituição da República é complementado, em razão da cláusula de abertura material do art. 5º, § 2º da CRFB/88, pela interpretação que os organismos internacionais de direitos humanos dão a ele.
O Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos anotou, em seu Comentário Geral nº 36, que o direito à vida compreende o direito de não ser arbitrariamente dela privado. Assim, caberia aos Estados regular proporcionalmente o uso da força, a fim de se assegurar a razoabilidade com que ela é empregada. À luz dessa interpretação, o Tribunal assentou, naquela ADI 5.243, que não era a Lei nº 13.060 que impunha restrições ao uso da força, mas a própria Constituição, uma vez que alberga o direito à vida e o direito à segurança. Por isso, a norma impugnada na ação direta era compatível com o sistema constitucional.
A referida orientação do Comitê de Direitos Humanos está amparada na obrigação que os Estados têm de proteger os direitos previstos nos tratados internacionais, o chamado princípio da diligência devida (due diligence), e o de observar o princípio da proporcionalidade, como manifestação imanente de um limite dos direitos humanos, quando regulem o acesso às armas.
No Comentário Geral nº 31 (CCPR/C/21/Rev. 1/Add. 13 26.05.2004), em que explicitou o alcance das obrigações legislativas dos Estados, o Comitê de Direitos Humanos advertiu que as obrigações do Pacto Internacional de Direitos Humanos só poderiam ser efetivamente garantidas se os indivíduos fossem protegidos por medidas legislativas adequadas não apenas em relação ao Estado, mas também contra atos privados. É precisamente essa norma que consubstancia o dever de adotar medidas legais, ou due diligence.
Nessa mesma ordem de ideias, o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher reconheceu que, perante o direito internacional e os tratados específicos de direitos humanos, os Estados também podem ser responsáveis por atos privados se falharem em agir com a diligência devida (due diligence) para prevenir ou para investigar e punir atos de violência.
No âmbito interamericano, a Corte de Direitos Humanos tem reconhecido que o uso arbitrário da violência, tolerado pelo Estado por ações ou omissões, dá ensejo à responsabilização internacional por violações de direitos humanos (Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodriguez v. Honduras, julgamento de 29 de jul. de 1988, par. 172).
No relatório produzido por mandato da Subcomissão de Promoção e Proteção de Direitos Humanos (A/HRC/Sub. 1/58/27/ 27.07.2006), a Professora Barbara Fey indicou que as medidas efetivas para cumprir o requisito de “diligência devida” incluem requisitos mínimos de licenciamento que têm por objetivo evitar que armas leves sejam obtidas por quem possivelmente vai empregá-las mal. Os critérios para licenciamento englobam o de idade mínima, o de antecedentes criminais, a prova de que o uso será legítimo, e, finalmente, a capacidade psicológica, devidamente reconhecida. É possível, ainda, exigir-se prova de habilidade para o manuseio correto da arma e de que a arma ficará guardada de forma segura. As licenças devem ser renovadas com frequência para prevenir a transferência irregular de armas a pessoas não autorizadas.
A Comissão de Direitos Humanos, ao acolher esse relatório, observou que “há, de fato, um quase universal consenso acerca da necessidade de se adotar requisitos mínimos para a legislação nacional de autorização para a posse civil de arma como forma de proteger a segurança pública e a proteção de direitos humanos”. Assentou, ainda, que “esse consenso é fator a ser levado em conta pelos mecanismos de direitos humanos quando sopesarem as responsabilidades positivas dos Estados para prevenir violações ao núcleo de direitos humanos em casos que envolvam violência armada no setor privado” (parágrafo 16).
O requisito da proporcionalidade figura ainda em diversos julgados internacionais. Em Suarez de Guerrero v. Colombia (Comunicação nº R11/45, A/37/40), por exemplo, o Comitê de Direitos Humanos advertiu o Estado colombiano que a morte de Maria Fanny Suarez de Guerrero por forças policiais era resultado do uso desproporcional da força, o que impunha responsabilização internacional à Colômbia. A partir dessas premissas, é possível concluir que não há, por si só, um direito irrestrito ao acesso às armas, ainda que sob o manto de um direito à legítima defesa. O direito de comprar uma arma, caso eventualmente o Estado opte por concedê-lo, somente alcança hipóteses excepcionais, naturalmente limitadas pelas obrigações que o Estado tem de proteger a vida.
Ainda assim, o uso de armas de fogo, seja por agentes públicos, seja por agentes privados, somente se justifica em casos de absoluta necessidade, tal como fiz observar quando do julgamento da ADI 5.243. Isso significa que apenas quando não houver qualquer outro meio menos lesivo de evitar a injusta agressão é que se justificaria o excepcional e proporcional emprego da arma de fogo.
No âmbito da formulação de políticas públicas, isso significa que a segurança dos cidadãos deve primeiramente ser garantida pelo Estado e não pelos indivíduos. Incumbe ao Estado diminuir a necessidade de se ter armas de fogo por meio de políticas de segurança pública que sejam promovidas por policiais comprometidos e treinados para proteger a vida e o Estado de Direito. A segurança pública é direito do cidadão e dever do Estado.
Diante deste arcabouço normativo, a Resolução GECEX nº 126/2020 se apresenta, em juízo de delibação, como contrária à Constituição da República. Que, no plano teleológico do ato normativo, existam razões de adequação entre meios e fins, entre instrumentos econômicos e horizontes políticos do Poder Executivo, não se extrai como consequência uma vedação à análise de seu impacto sobre os direitos fundamentais.
Raciocinando-se em termos de proporcionalidade, pende dúvida razoável, em primeiro lugar, sobre a regra da legitimidade dos fins aplicada à redução a zero da alíquota do imposto de importação sobre pistolas e revólveres (cf., a propósito desta regra, KLATT, M; MEISTER, M. The constitutional structure of proportionality. Oxford: OUP, 2012).
Estando pouco evidente a finalidade buscada pela norma, há razões para entender que seus objetivos podem não se coadunar com os mecanismos de legitimação constitucional e a diligência devida.
Em segundo lugar, e como consequência do primeiro ponto, é razoável supor que as regras da necessidade e da adequação da norma vergastada não se encontram preenchidas.
Em terceiro lugar, ainda que se cuide de mera análise do pedido liminar, há suficiente evidência de que a Resolução GECEX nº 126/2020 não resiste a teste de proporcionalidade em sentido estrito. Ante o peso prima facie dos princípios do direito à vida e à segurança, e da significativa intensidade de interferência sobre eles exercida pela referida redução de alíquota, naquilo em que estimula a aquisição de armas de fogo e reduz a capacidade estatal de controle, seria necessário que os princípios concorrentes (fossem eles o direito de autodefesa, ou as prerrogativas de regulação estatal da ordem econômica) estivessem acompanhados de circunstâncias excepcionais que os justificassem. Em termos técnicos, estes direitos deveriam ser complementados por extraordinariamente altas premissas fáticas e normativas (cf. ALEXY, R. The Weight Formula. In: STELMACH, Jerzy et al. (org.). Studies in the Philosophy of Law: Frontiers of the Economic Analysis of Law. Cracóvia: Jagiellonian University Press, 2007). Ademais, estas premissas deveriam estar plasmadas em planos e estudos que garantissem racionalmente, a partir das melhores teorias e práticas científicas a nós disponíveis, que os efeitos da norma não violariam o dever de controle das armas de fogo pelo Estado brasileiro.
Ausentes as condições delineadas, conclui-se pela verossimilhança da alegação de que a redução a zero da alíquota do imposto de importação sobre pistolas e revólveres, por contradizer o direito à vida e o direito à segurança, viola o ordenamento constitucional brasileiro.
Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil.