A segunda morte de Mizael

Por Ricardo Moura

A morte física não basta. É preciso que a memória da vítima também seja conspurcada. Desde que o adolescente Mizael Fernandes da Silva, de 13 anos, foi morto durante uma ação do Comando Rural da Polícia Militar do Ceará (Cotar) que as tentativas de criminalizá-lo e de torná-lo responsável por seu próprio assassinato se sucedem. Em um primeiro momento, o jovem foi acusado de integrar uma organização criminosa apesar de haver sido comprovado que ele não possuía antecedentes criminais. A tentativa mais recente de um “assassinato simbólico” de Mizael é a afirmação de que sua morte se deveu a um ato de “legítima defesa” por parte dos policiais, excluindo-os assim de qualquer responsabilidade criminal. Essa é a versão defendida pelo inquérito policial militar (IPM) que apura a responsabilidade dos PMs nesse episódio.
Conforme as informações veiculadas nos meios de comunicação, o IPM enquadrou o episódio da morte do adolescente no artigo 42 do Código Penal Militar (CPM), que afirma haver exclusão de crime quando:

Art. 42. Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento do dever legal;
IV – em exercício regular de direito.

Segue trecho do inquérito divulgado pelo jornal Diário do Nordeste:

“após análise minuciosa das diligências realizadas e dos resultados obtidos, chego à conclusão que suas condutas encontram-se amparadas pela excludente de ilicitude prevista no Art. 42, II, do CPM – legítima defesa própria e de terceiros”, conclui. Na versão dos policiais, os disparos foram efetuados contra a vítima porque ela portava um revólver e teria se negado a soltar o objeto no momento da abordagem”.

A narrativa contida no inquérito se contrapõe a todas as evidências apresentadas até o momento sobre o assassinato. A Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), órgão responsável pela investigação da conduta dos agentes de segurança no Estado, indiciou o sargento PM Enemias Barros da Silva e mais dois soldados por fraude processual. Enemias foi indiciado ainda por homicídio qualificado, por motivo fútil (artigo 121, § 2º, inciso II, do Código Penal). Conforme publicado no jornal O POVO, a CGD encontrou “indícios fortes” de que o a cena do crime foi adulterada após a morte do adolescente:

“Apesar de outras diligências serem ‘importantes’, a autoria e materialidade do crime estão definidas. É mencionado que o relato dos policiais apresenta ‘série de incongruências’ com relação à arma que dizem que Mizael portava quando baleado. Também é afirmado haver ‘indícios fortes’ de que a cena do crime foi alterada deliberadamente. ‘Foi uma operação baseada numa informação de um homem de apelido ‘Sequestro’, que não tinha notícia de mandado de prisão, foi realizada na madrugada, em que as formalidades legais não foram sequer observadas, sem tempo de avaliar a veracidade da informação repassada, culminando com a morte do Mizael’, diz trecho do relatório”.

Sobre o caso

Segundo a família de Mizael, o adolescente estava dormindo quando os policiais entraram na casa durante a madrugada do dia 1º de julho de 2020 à procura de um homem conhecido apenas pelo apelido “Sequestro”. Após revistarem o imóvel, eles entraram no quarto onde estava o jovem. Pouco depois, a tia da vítima afirma ter ouvido um “clarão” e o som de um disparo de tiro. O corpo de Mizael foi retirado da residência e levado até o hospital público de Chorozinho. Ainda de acordo com a parente, os PMs retornaram à residência dela, onde passaram certo tempo. Peças importantes para a elucidação do caso como um edredom, um travesseiro e o telefone celular da vítima teriam sido levadas pelos policiais. Conforme a CGD, a cápsula do projétil que vitimou Mizael não se encontrava mais no local, bem como “não havia rastro de sangue no local”.

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