O que há por trás da liberação do acesso às armas de fogo?

Por Ricardo Moura

A Instrução Normativa nº 174, publicada no último dia 20 em caráter de edição extra, dá um passo além na flexibilização do acesso às armas de fogo. Trata-se da principal política de segurança do Governo Federal: armar setores mais abastados da população e membros do sistema de justiça criminal.
O novo texto revogou a Instrução Normativa nº 131, de dezembro de 2018, e foi feito, conforme o próprio presidente, para atender a um pedido de um apoiador que o interpelou no cercadinho do Palácio. Boletim saiu em caráter de edição extra.
O artigo 2º da IN 131 falava em limite de “2 (duas) armas de fogo por cidadão, sendo uma de cano curto e uma de cano longo”. Essa limitação foi eliminada na IN 174. A nova redação dobra o número de armas permitidas para usuários civis, passando de dois para quatro.

Texto da IN 131 limitando posse para até duas armas de fogo
A IN 174, por sua vez, ampliou o número de armas de fogo permitidas


Em comunicado enviado à imprensa, o Instituto Sou da Paz se posicionou da seguinte maneira em relação à nova instrução normativa:

“Quanto à IN nº 174-DG/PF, de 20 de agosto de 2020, há uma evolução no sentido de modernizar e informatizar os pedidos, o que é positivo e ajuda especialmente a tramitar pedidos onde não há postos da Polícia Federal, mas é inevitável destacar que, enquanto há um esforço ágil e muito eficiente da máquina federal para facilitar a compra, medidas que ajudam o controle e atuação das Polícias no monitoramento e rastreamento de armas de fogo foram revogadas pelo governo, o que é grave. Avanços na marcação e rastreamento revogados em abril, por ordem de presidente, até o momento não foram substituídos. Na mesma, linha a integração dos sistemas de armas da PF e Exército (respectivamente SINARM e SIGMA), que eram para ser integrados desde 2004, seguem sem conexão, o que dificulta o rastreamento de armas no país”.

O que há por trás da facilitação do acesso às armas de fogo? Escrevi sobre o tema em maio no O POVO. Compartilho trechos da coluna na qual exponho a lógica por trás dessa polític ado Governo Federal:

“É difícil escolher o trecho mais impactante da gravação da reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril. Por estar diretamente relacionada ao tema da coluna, abordarei a defesa do armamento da população feita pelo presidente Jair Bolsonaro. A afirmação emergiu como uma resposta ao ministro da Educação Abraham Weintraub e ilustra de forma precisa o que seja talvez a principal plataforma política deste governo.
A declaração de Bolsonaro é a seguinte: “Olha como é fácil impor uma ditadura no Brasil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um f… aparecer para impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um b… de um prefeito faz um b… de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua (…) Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”.
A fala do presidente ecoa a pregação dos grupos de defesa do armamentismo que, por sua vez, baseiam-se em uma leitura descontextualizada da constituição norte-americana. A tão famosa Segunda Emenda, que ampara o discurso pró-armas, afirma textualmente que “uma milícia bem regulamentada, sendo necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringida”.
Quando a emenda foi ratificada, em 1791, os EUA ainda possuíam milícias e havia o temor de que os direitos dos estados federados fossem limitados por um governo central tirânico. Valer-se da mesma justificativa para defender o uso de armas de fogo hoje soa, no mínimo, anacrônico.
A Segunda Emenda vem sendo alvo de fortes questionamentos nos Estados Unidos. Marchas pelo controle de armas de fogo se espalham pelo país. Embora não haja margem política para que a legislação seja revogada, o que se pretende é estabelecer uma regulamentação mais rigorosa sobre o comércio, posse e registro de armamentos tendo em vista a escalada de chacinas em escolas e universidades cometidas por jovens com acesso irrestrito a armas e munições. A retórica armamentista de Bolsonaro, contudo, vai além da bravata. Diversas medidas estão sendo tomadas visando a erosão do Estatuto do Desarmamento. Um dia após a realização da reunião ministerial – quando houve uma cobrança direta sobre o assunto – uma portaria ampliou a quantidade máxima de munição que pode ser adquirida por civis autorizados (600 munições por ano por arma), militares, policiais, guardas municipais, agentes prisionais, magistrados e promotores de justiça (1,2 mil munições de calibre permitido por ano por arma).
Diversos estudos demonstram o impacto das leis que restringem o uso de armamentos sobre a redução dos homicídios. Na contramão dos exemplos mais bem-sucedidos de redução da criminalidade e da violência, o Governo Federal está propondo um verdadeiro derrame de armas de fogos e munição na sociedade com consequências imprevisíveis.
Diante dessa escolha política, algumas perguntas precisam ser feitas: Quem se beneficia da circulação irrestrita de armas de fogo no país? Quais os reais interesses por trás de tanto esforço governamental em coibir a ação fiscalizadora das polícias e das forças armadas sobre o mercado armamentista?
A própria declaração de Bolsonaro durante a reunião pode fornecer algumas pistas sobre as respostas. Lida de forma rápida e sem apuro, a alegação de que estando desarmado o povo brasileiro poderia ser vítima de uma ditadura ou ser “escravizado” soaria plausível caso tivéssemos um inimigo externo ou vivêssemos sob a ameaça de invasão, o que definitivamente não são os casos.
Analisada com mais calma e ponderação, percebe-se que a declaração visa insuflar determinados segmentos da população com o fim de contestar a autoridade pública de prefeitos e governadores. O inimigo, como se pode ver, é interno. Trata-se de uma sublevação orientada de cima para baixo. Dito por qualquer pessoa soa grave. Dito pelo presidente em pessoa é gravíssimo.
Em última instância, o discurso de Bolsonaro é um forte estímulo para a formação de grupos armados que compartilham de sua ideologia e do seu projeto de poder, ambos travestidos sob a fantasia de uma “guerra” pela defesa dos valores citados pelo próprio presidente na reunião: família, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão e livre mercado. Não à toa está sendo cada vez mais comum se deparar com parlamentares portando armas nas redes sociais e membros do próprio governo fazendo menção ao uso de armamentos.
Do discurso belicista para a prática é um pulo. Para travar essa luta é preciso contar com o poderio que só as armas de fogo dispõem. Daí a necessidade de afrouxar a fiscalização e ampliar o acesso aos armamentos justamente dos segmentos da população que mais se alinham ideologicamente ao governo: militares, policiais e membros do poder judiciário”.

Sobre a imagem. A arma de fogo, mais que o aspecto da proteção, possui um efeito fetichista sobre quem a possui. Estamos falando da esfera do desejo, indo muito além do aspecto racional do debate.

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