Lei Orgânica Nacional da PM mantém militarismo na polícia

Importa saber como os valores da cidadania e dos direitos humanos são operacionalizados no interior das polícias militares. A nova legislação pouco fala sobre controle externo da atividade policial. É preciso definir os parâmetros para que a força seja empregada

Por Ricardo Moura

Embora as polícias militares e os corpos de bombeiros militares sejam subordinados aos governos estaduais, obedecendo legislação específica, cabe à União definir as normas gerais de organização, efetivo, material e garantia das corporações. A lei que rege este tema, o Decreto-Lei 667, de 1969, remonta ao período da Ditadura. Uma atualização se faz necessária.

O tema é espinhoso. Desde 2001, ou seja, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei que cria a Lei Orgânica Nacional da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. O texto da legislação foi aprovado na Câmara dos Deputados em dezembro do ano passado e agora está no Senado, sob a relatoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES).

Esta seria uma boa oportunidade para debater o fim do militarismo das polícias. No entanto, o texto faz exatamente o contrário: mantém a vinculação das polícias militares às forças armadas cumprindo o papel de “força reserva e auxiliar do Exército”. As PMs são compreendidas como “indispensáveis à preservação da ordem pública, à segurança pública, à incolumidade das pessoas e do patrimônio e ao regime democrático, organizadas com base na hierarquia e na disciplina”.

Além disso, o Comando do Exército, por meio da Inspetoria-Geral Militar, está incumbido, em âmbito nacional, de realizar estudos, coleta de dados e assessoria referente a essa condição da polícia militar como força reserva e auxiliar. Como se vê, mesmo com uma nova legislação, pós-Constituição de 1988, as forças armadas se mantêm presentes no sistema nacional de segurança pública.  

Dentre as mudanças, destaca-se a exigência de curso de nível superior para exercer a profissão. A medida começará a valer seis anos após a publicação da lei. Contudo, o curso de Direito exigido para quem pretende assumir uma vaga de oficial de Estado-Maior remete ao bacharelismo muito presente no sistema de justiça criminal. Um curso de ensino superior de Segurança Pública seria muito mais apropriado para lidar com as complexidades da atividade policial. A Lei Orgânica prevê ainda um percentual mínimo de 20% das vagas para mulheres nos concursos públicos.

O direito de manifestar opinião político-partidária dos militares é garantido desde que elas sejam proferidas em caráter individual, sem usar símbolos, fardas ou patentes de suas corporações. Além disso, o militar em atividade não poderá ser filiado a partido político e nem comparecer fardado a eventos político-partidários.

Há críticas ainda à inserção das PMs e dos Bombeiros no Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). As responsabilidades e competências no que diz respeito à proteção ambiental já estão delineadas e os profissionais que atuam nessa área necessitam de uma formação técnica relacionada à atividade ambiental. Em vez de criar mais uma atribuição às polícias, o ideal seria ampliar o efetivo dos órgãos que efetivamente estão à frente desse trabalho.

A Constituição Federal afirma que a segurança pública, “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, sob a égide dos valores da cidadania e dos direitos humanos, através dos órgãos instituídos pela União e pelos Estados”.

A expressão “preservação da ordem pública” aparece diversas vezes no texto. No entanto, resta saber o que o legislador entende por isso. O conceito deverá ser regulamentado posteriormente pelo Poder Executivo bem como o da própria “segurança pública”. Não se trata apenas de um preciosismo conceitual, mas da delimitação dos limites e possibilidades da própria atividade policial.

Em nome da preservação da “ordem”, todo tipo de golpe pode ser cometido. A brecha deixada pela manutenção das PMs como forças auxiliares do Exército resulta em um estado de tensão permanente por parte dos governadores. Diante do que vem sendo descoberto em relação a uma trama que poderia ter consequências devastadoras para a transição de poder presidencial, seria razoável contar com mais salvaguardas institucionais que limitassem a influência do alto escalão das forças armadas sobre uma corporação tão capilarizada como a PM.  Importa saber ainda como os valores da cidadania e dos direitos humanos são operacionalizados no interior das polícias militares. A nova legislação pouco fala sobre controle externo da atividade policial. É preciso definir os parâmetros para que a força seja empregada. O Brasil assistiu recentemente a uma série de chacinas promovidas por agentes públicos. Quem avalia e julga a proporcionalidade de tais ações? Vidas humanas não podem ser perdidas em nome de um vale tudo no combate à criminalidade. Essas questões são centrais, mas permanecem sendo deixadas à margem em nome do pragmatismo político. 

Crédito da Foto: Micaela Menezes.

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