A quem serve o militarismo?

O fim último do militarismo é a guerra. Como bem afirma o cineasta Marcelo Pedroso, diretor do filme “Por trás das linhas de escudo”, que retrata o cotidiano do Batalhão de Choque de Pernambuco, o Brasil sempre esteve em guerra com sua própria população

Por Ricardo Moura

O programa federal das escolas cívico-militares chegou ao fim na semana passada. Tratava-se de uma proposta corporativa embalada sob a vaga promessa de diminuir a evasão escolar e inibir casos de violência escolar por meio da disciplina militar. Na prática, a medida beneficiava os próprios militares que passaram a ocupar cargos de gestão nas unidades escolares mesmo que não tivessem os conhecimentos necessários para tanto.

Há uma concepção, que cada vez perde mais seu sentido, de que o militarismo possuiria uma certa superioridade, tanto moral quanto técnica, sobre os profissionais civis. Como se os militares fossem mais íntegros, esforçados e éticos na comparação com a suposta “baderna” que seria a vida em sociedade.

Nossa história pode ser compreendida como uma sequência de golpes políticos aplicados pelas forças armadas valendo-se do argumento falacioso dessa superioridade dos militares. A própria República foi instaurada na base da força das armas por um general. No fim do ano passado, um novo golpe foi articulado para impedir que Lula assumisse o poder. A mesma mão que promulga é a que tenta extinguir o republicanismo.

Somente um mito tão arraigado como esse explica a presença de oficiais nas mais diversas funções que exigem um conhecimento além do que a caserna ensina. O descalabro que foi a gestão do general Pazuello na Saúde foi uma prova mais que cabal que o conhecimento adquirido sobre logística militar não credencia ninguém a se tornar ministro de uma pasta tão relevante.

No campo da moral e da ética, em que ainda poderia haver alguma diferenciação por causa da tão afamada “disciplina militar”, vimos que os casos de troca de favores, mamatas e corrupções se sucedem da mesma maneira. Até avião da FAB transportando cocaína rolou no que pode ser caracterizado como um episódio de tráfico fardado.  Se houve algo positivo no Governo Bolsonaro foi mostrar que essa visão simplesmente não se sustenta.

O fim das escolas cívico-militares é uma sinalização importante, mas muito ainda precisa ser feito. Em diversos estados, esse modelo de educação irá persistir. Vale ressaltar que há uma diferença entre esse programa e os colégios da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, por exemplo. São propostas pedagógicas bastante distintas.

Se a gestão das escolas pode ser militarizada, a gestão dos presídios também passou a ser a partir da criação da figura da polícia penal. Essa foi a solução encontrada para lidar com o caos no sistema penal. A mudança do nome, de agente penitenciário para policial penal, não se configura como uma medida meramente cosmética, mas sim uma transformação radical na própria atividade-fim dos servidores, que passaram a fazer parte dos quadros da segurança pública estadual.

O regimento dos policiais penais espelha a doutrina militar. Seus elementos norteadores, conforme descrito no artigo 188-B, são “a hierarquia e a disciplina”, ou seja, os mesmos que orientam a PM. Em consequência disso, foi criado um regime disciplinar diferenciado para os policiais penais que se tornou alvo de críticas por parte da categoria. O sindicato classificou a proposta, à época, como “um regime ditatorial” em que “os direitos e as liberdades foram restringidos de todas as formas”.

Essa última expressão sintetiza bem a intersecção entre a ideologia militar e o modo de produção capitalista. É preciso que haja sempre um inimigo a ser combatido para que o processo de “destruição criativa” seja chancelado. O fim último do militarismo é a guerra. Como bem afirma o cineasta Marcelo Pedroso, diretor do filme “Por trás das linhas de escudo”, que retrata o cotidiano do Batalhão de Choque de Pernambuco, o Brasil sempre esteve em guerra com sua própria população.

O Choque é a expressão mais militarizada da Polícia Militar. Sua presença se dá sob uma forma ritual e estratégica, onde cada policial tem uma função específica. Sua intervenção, quase sempre, ocorre quando há “distúrbios civis”, ou seja, quando as pessoas estão nas ruas para protestar. O direito e a liberdade de manifestação são tolhidos pelos escudos e pelas armas não-letais do Choque. A mando de seus comandantes e em defesa de interesses, muitas vezes, do grande Capital.

Quando perguntados, os militares do Choque afirmam estar apenas cumprindo ordens. O que há por trás dos conflitos, as tensões sociais que levam pessoas a ocuparem imóveis abandonados ou a protestarem por melhorias salariais, não são levadas em consideração. A única preocupação é como realizar seu trabalho da melhor forma. Hierarquia e disciplina. Mas contra quem?

A filósofa Silvia Federici, em texto recente, elabora uma crítica feminista sobre a guerra. Em um trecho, ela afirma: “Devemos pensar o conceito de guerra como uma prática cujo objetivo é destruir a condição fundamental da vida e destruir sujeitos que não se adaptam, destruir populações inteiras para estabelecer uma nova forma de relação econômica”.

A partir dessa reflexão, é possível pensar na guerra da Ucrânia, cujo fim parece não interessar a nenhum dos países envolvidos. É possível pensar ainda no modelo de segurança pública que temos, que se baseia na eliminação do inimigo e promove a guerra contra os pobres. Como se vê, o militarismo não é uma ideologia neutra: ela está sempre ao lado dos mais poderosos.

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