Após a publicação do artigo de ontem, fomos ao Campo Estrela, no Jangurussu, conversar sobre a nova realidade vivida pela comunidade após a declaração de neutralidade. Conversamos com alguns moradores e o relato é o que segue.
Por Jaimeson Simões e Ricardo Moura
Para quem segue na avenida Pompilho Gomes (Perimetral), no sentido Messejana, o Campo Estrela fica à direita, logo após a Lagoa do São Cristóvão, onde ocorre a feira, aos fins de semana, e o Cuca Jangurussu. No lugar do antigo campo de futebol, uma Areninha foi construída pela Prefeitura em dezembro do ano passado. A obra divide opiniões. Por seu tamanho mais reduzido, mais adequado às dimensões do futebol society, o time da comunidade não pode disputar partidas dos campeonatos suburbanos por lá.
O movimento cotidiano da comunidade se dá normalmente, com muitas pessoas sem usar as máscaras. De cada cinco que vimos passando, pelo menos duas não portavam o equipamento de proteção no rosto. A arena esportiva estava ocupada naquela tarde por crianças de uma escolinha de futebol. No canto direito de uma das traves, uma cama elástica servia de diversão para quem estava de fora. No canal situado na lateral do campo, bandeja de ovos e álcool em gel estavam sendo distribuídos pelo movimento dos Círculos Populares às moradoras, mostrando que o vírus e a fome são duas constantes na periferia e precisam ser enfrentadas de forma conjunta. A aparente tranquilidade, no entanto, só é possível ao longo dia.
À noite, tem sido muito comum uma atuação mais agressiva da Polícia Militar. Conforme o relato de moradores, tiros são disparados a esmo como uma forma de intimidação. O procedimento é o que segue: a viatura chega, as luzes do carro são desligadas, o policial sai e dispara sem um alvo específico. Pelo menos duas ocorrências desse tipo foram registradas nas duas últimas semanas. Segundo um morador, sem a proteção dada pela facção os atentados acontecem de forma mais impune. “Na época do Comando Vermelho, isso não teria acontecido”, comenta.
O tiroteio mais recente nos chegou via Whatsapp: “Tava um grupo de meninos na esquina. Uns em motos e outros de bicicleta. Uma viatura parou e deram um tiro. Aí todo mundo correu. Eu tava na rua nessa hora, ouvi o barulho e vi a viatura passando. Infelizmente aqui está sim… De verdade, ficou assim depois que ficou neutro. Parece que saiu da proteção da facção”.
No interior dos circuitos criminais, o Campo Estrela é mais conhecido pelo comércio de armas de fogos. A venda da droga, em si, não é a principal atividade no local. Até bem pouco tempo, o grupo estava vinculado ao Comando Vermelho. A aliança se desfez, contudo, pouco depois da Chacina do Barroso, em 25 de abril, quando cinco pessoas foram executadas com 19 tiros. Pistolas .40 e .380 bem como uma espingarda teriam sido usadas na ação. Nenhuma das vítimas respondia criminalmente por processos na Justiça. Conforme noticiado por O POVO, foram mortos: Italo Rodrigues Dias, de 27 anos; Edvando Felix de Souza, de 47 anos; Francisca Samara Valentim de Sousa Nascimento, de 24 anos; e Aginaldo Antonio da Silva, de 47 anos. A quinta pessoa, que teria participado da ação criminosa, foi baleada e encontrada morta com munição nas proximidades da avenida Perimetral.
De acordo com os moradores ouvidos, a chacina foi um divisor de águas na relação já conturbada entre o Comando Vermelho e a comunidade. A retaliação se deveu à vingança contra os Guardiães do Estado (GDE) pela morte de um líder do CV, mas as vítimas teriam sido escolhidas a esmo, de forma aleatória. Essa atitude teria selado o fim da aliança. Duas comunidades vizinhas ao Campo Estrela, a do Torino e a do Beco da Bosta, também se posicionaram como neutras em relação às duas principais organizações criminosas do Estado. O que se observa agora é um cenário pré-facção quando o Grande Jangurussu era dividido por gangues rivais separadas umas das outras por arranjos territoriais (campos, ruas, canais e becos).
Essa condição de neutralidade é fator de incerteza e insegurança. Não há muitas pistas sobre o que virá pela frente. As baixas provocadas pelo intenso conflito entre CV e GDE são um fator de insatisfação, haja vista atenderem interesses muitas vezes alheios aos da própria comunidade. Ao mesmo tempo, a truculência policial não deixa de ser um fator de instabilidade. Poder levar uma vida sem medo ainda é uma promessa no Campo Estrela.
Jamieson Simões é pesquisador de dinâmicas criminais na cidade de Fortaleza.
Sobre a imagem: Areninha do Campo Estrela na tarde do dia 27 de maio.
Crédito: Ricardo Moura.