Por Micaela Menezes
O ano era 2020. As medidas restritivas em relação à pandemia estavam em crescente flexibilização. Fui ajudar uma amiga a fazer as malas e preparar a mudança. Naturalmente, nosso cotidiano se modificou drasticamente nesse antes/depois da pandemia, de modo que eu mesma não me sentia mais segura me locomovendo fora de casa após o pôr do sol. Assim, por volta das 16h30, resolvi me despedir e pegar meu ônibus, passando primeiro rapidamente pelo supermercado que havia no caminho.
Já na condução, em certo ponto, muitas pessoas subiram em um fluxo incomum para o horário. Em se tratando de pós-pandemia, contudo, não se poderia supor nada. Num movimento rápido, fui abordada por três jovens que me arrastaram e levaram minha bolsa. O que mais ficou guardado na minha memória eram as roupas que eles vestiam. Os três estavam com camiseta de time estrangeiro, bermuda e chinelos. Roupas sem rasgos, braços tatuados, cabelos devidamente cortados.
De outra vez, enquanto minha mãe assistia um desses programas policiais, me chamou atenção uma reportagem. O mesmo tipo de abordagem que eu tive, mas o episódio ocorrendo na rua para levar um carro. Mais uma vez, ao atentarmos para as roupas, a moça estava de calça jeans e blusa de manga 3/4, enquanto o rapaz vestia calça jeans e camisa gola polo. Levaram o carro. Da mesma forma, vimos recentemente a jornalista Rosana Herman ter seu celular levado por um rapaz branco, de bicicleta e bem vestido, conforme a própria jornalista comentou ao mencionar que o mesmo “não parecia pivete”.
Por outro lado, quando observamos as altas classes da política brasileira, nos vemos constantemente assaltados por homens considerados “bem vestidos” que, por anos, roubam o dinheiro público, tendo suas penas diferenciadas por se tratarem de crimes “do colarinho branco”, mesmo que o prejuízo causado seja infinitamente maior e mais prejudicial. Temos aí, em comum, o pré-julgamento da roupa como item de diferenciação estética para identificar se alguém é “confiável” ou não.
O estudo da Moda é algo relativamente recente em comparação às outras áreas acadêmicas, como pontua Frédéric Godart, em seu livro “Sociologia da Moda”, publicado em 2010 no Brasil, quando fala das dificuldades que o fator vestuário teve para se impor como tema de pesquisa por causa da complexidade e efemeridade. Uma das principais funções da roupa sempre foi a diferenciação entre classes e designações sociais, mesmo que o início do termo só se desse à partir da nova classe burguesa surgida em meados do século XIV durante a Renascença. A partir dessa premissa, as definições de diferenciação em relação à indumentária foram se modificando de acordo com as demandas sociais. Mas onde se encontra esse novo tipo de diferenciação já que o acesso às roupas está melhor democratizado do que há anos atrás?
Segundo o designer André Villas-Boas, em seu livro “O que é [e o que nunca foi] Design Gráfico”, o design é concomitantemente uma área de conhecimento e uma atividade profissional em que o objeto final é a elaboração de peças expressamente comunicativas através de projetos para reprodução por meio gráfico. Em linhas gerais, o design funciona basicamente para comunicar mensagens. Toda essa definição pode ser reproduzida por completo na moda, já que o modelo de concepção e produção de roupas passa pela pesquisa de mercado do público-alvo para que todo o investimento de confecção de peças não seja um “tiro no escuro” e tenha venda certa a cada estação.
Toda a parte de pesquisa das tendências analisa a movimentação dos grupos sociais em relação às mudanças globais e as respectivas reações em relação aos eventos mundiais, como pandemia, oscilações econômicas, incertezas políticas, acesso à educação, etc. Ainda que direcionado, todo esse conceito reverbera em todas as camadas de classe, seja de maneira positiva ou negativa de acordo com a construção social de cada um. As construções de imagéticas estéticas, de acordo com as explicações de Ariano Suassuna à teoria kantiana em seu livro “Iniciação à Estética” (2018), estão baseadas tanto no juízo de gosto quanto no juízo de conhecimento. Sendo assim, nenhuma ação se resume somente ao que está destinada e depende da concepção pessoal de todos que tiverem contato com o produto final.

Tecendo uma trama rápida, a nova onda de conservadorismo e o crescente agravamento das diferenças sociais dificultam a progressão dos movimentos igualitários. A luta é grande. Anos de conflitos sociais se utilizando da vestimenta como forma de exteriorizar seus conceitos e preconceitos fazem suas apropriações estéticas. Podemos trazer diversos exemplos para ilustrar, mas um dos principais que não podemos esquecer é o atual governante do país. As mensagens estão explicitas o tempo todo pra quem consegue reparar: a proximidade forçada usando camisetas de vários times sem assumir qualquer vínculo real, a calça de tactel que se assemelha às utilizadas por militares em atividades informais, o desleixo com o ajuste correto do paletó, gravata com estampa de arma e as diversas medalhas militares que insiste em usar, mesmo tendo sido expulso da instituição. Mensagens que, quando aliadas ao contexto de atitudes e palavras, complementam toda uma imagética. E assim se dá por todas as esferas ministeriais.
Mesmo que o juízo de gosto das pessoas em geral seja bastante diversificado, dadas as experiências particulares de cada um, o juízo de conhecimento, que se conceitua em ideias gerais sobre determinados estereótipos, é que se impõe como forte definidor das ações que temos em relação às pessoas que nos cercam. Essas atitudes reverberam em relação à segurança, onde o conceito de perigo/segurança que nós temos enraizado na nossa educação social está engessada em modelos antigos e preconceituosos que definem que a pessoa perigosa é o homem negro de classe baixa “que tá pedindo dinheiro na rua e a qualquer momento pode levar qualquer coisa do teu bolso pra trocar em uma droga que conforte o estado social crítico em que ele se encontra ou por um pouco de comida pra ter energia de andar metade da cidade em busca de um local pra descansar a cabeça, quando não tem um local fixo pra dormir”, em vez do político branco “que rouba os impostos que você paga comprando até um alfinete, usando pra tirar uma semana de férias que custam dois milhões de reais tirados dos cofres públicos ou pra desviar pro filho dele poder comprar uma mansão que custa seis milhões de reais”.
Os dois exemplos acima são igualmente extremistas, desenvolvidos sob nuanças de acordo com o tom de pele, a condição financeira e a posição social, definindo o tratamento recebido em relação à segurança pública. Enquanto um é criminalizado e penalizado (ainda mais) por suas atitudes, o outro se utiliza de tom coitadista colocando sua culpa e responsabilidade para outras pessoas, conseguindo, com um teatro torpe, vender seu discurso a cada ano de eleição.
Esse engessamento de conceitos, que encontra seu arremate na postura e vestimenta de cada pessoa, é completamente prejudicial para a maior igualdade social que nosso país precisa alcançar para se manter estável perante o cenário internacional. Enquanto a polícia não cuidar para ter um tratamento mais humanitário e igualitário, independentemente da classe social ou da cor do indivíduo, não poderá haver avanços nesse sentido. Ao passo que, se o judiciário também não cumprir sua função independente das pressões financeiras, esse diálogo não conseguirá atingir seu objetivo. É a partir da reformulação das instituições e da humanização dos profissionais responsáveis pelo conceito de seguridade, com o intuito de mudarem suas posturas, que essas predefinições estéticas serão desconstruídas na estrutura social. Enquanto velhas formas não forem modificadas de forma radical, a mudança será lenta e cada vez mais dolorosa.
Sobre a imagem. Foto do circuito interno de vigilância compartilhada pela jornalista Rosana Hermann mostra um jovem branco, bem vestido, em uma bicicleta. Sob à luz dos nossos preconceitos, o tipo ideal de uma pessoa totalmente inofensiva.

Micaela Menezes
Designer de moda, fotógrafa, aspirante a esteta e amante de rugby.