Que mistérios tem Jujuba pra fazer da alegria a morada do seu coração?

Com três posts de gratidão pelo celular comprado com os recursos de uma vaquinha virtual, ela se despediu dos internautas, antes de partir em sua última viagem de bicicleta pelo país que amava e elegeu como segunda pátria

Por Clícia Weyne

Fui em busca dela: para além de uma escrita que homenageia um ideal de mulher, mesmo que uma mulher feminista, queria saber quem era a moça assassinada porque ousou ser livre. Amara? Queixara-se nas redes de abandono? Sofreu frio, fome, solidão? Em tempos que tudo vira rapidamente uma publicação e a profissão se confunde com a vida pessoal em teias emaranhadas de afetos e busca sequiosa por audiência, em que ser “desimportante” ou “ter relevância” podem significar estar ou não no fosso daqueles que não têm um trabalho, emocionar pela tristeza de, muitas vezes, estar em uma situação de falta pode ser uma poderosa narrativa. 

Mas não era assim Julieta. Ela escolheu mesmo foi o riso e a alegria para emocionar. Quando apelava na vaquinha virtual por um celular novo que lhe permitiria trabalhar e divulgar melhor seu trabalho, ela usava o humor, mas também era racional, enumerando as causas pelas quais precisava do dispositivo mais moderno para incrementar a qualidade do que oferecia, chegar a mais pessoas, superar a ausência de computador pessoal e poder inscrever projetos em editais, por exemplo. E a construção de seus argumentos não era apenas individual, baseada no seu desempenho, mas mostrava uma consciência coletiva muito forte, sabendo que sua situação era partilhada por outros artistas populares, principalmente aqueles que fizeram da rua seu palco principal.

Em vídeo anterior, de 6 de dezembro de 2023, 17 dias antes de desaparecer, a Miss Jujuba encerrava a sua fala a respeito da vaquinha de forma quase profética: “Aproveita pra me ajudar agora que depois tu vai ficar com saudade, com saudade, porque eu vou tá longe, vou tá longe, sem celular, embaçada, embaçada!”. O tom trágico surge apenas no futuro que hoje vivemos e que já não existe para a Miss Jujuba, palhaça-personagem que a venezuelana Julieta Hernandéz construiu para si e para o público, o vídeo cumpriu bem seu papel de alavancar a vaquinha virtual ao brincar com o fato de ela estar embaçada na tela por “culpa do celular”, como usava na aliteração que construiu naquela cena completa. E a saudade a que se refere falava mais do fato de que, sem o celular novo, estaria em breve sem comunicação com o público que tanto amava. 

Com, hoje, pouco mais de 12 mil seguidores no Instagram, o perfil de Julieta, @utopiamaceradaenchocolate, conta-nos da viagem de bicicleta pelo Brasil, de sua busca por palhaças, nesse mundo também dominado pelo masculino, das músicas que lhe foram companhia nos percursos, o que encontrou de apoio na estrada, as dicas de como cuidar da bike (sem descuidar do meio ambiente), o retorno prometido à comunidade do Maranhão onde participou de uma Farinhada, a força do seu trabalho para os trajetos, o companheirismo da arte e até a necessidade  de teto para quando chegasse em determinada cidade.

Seja neste perfil ou em seus vídeos no You Tube, as escolhas de Julieta transpiram a dignidade que só quem tem responsabilidade pelos próprios desejos e fantasias é capaz de ter. Só quem assume o preço de suas escolhas é capaz de encarar o público ou o próximo coma  pupila reta e dizer que precisava de ajuda como ela fez. Sem vergonha, sem medo do julgamento alheio, sem se justificar. Os ombros erguidos da moça de rosto comprido, lábios cheios, cabelos castanho-claros cacheados, completavam o conjunto com o olhar de Jujuba, que quase fechava de alegria quando sorria. Não, não é o riso doloroso de quem não sabe chorar. É de quem se fez próxima da arte, de si, do outro. Terão seus olhos se fechado diante da brutalidade de seus assassinos? 

Desconfio que eles se acovardaram justamente porque Julieta é das que fecham os olhos na confiança da alegria, mas encara corajosamente quem ousa violentá-la. Desconfio que são olhos perseguirão seus algozes vida afora tamanha a firmeza e retidão com que enfrentou aqueles que a mataram.

Ali, naquele perfil que mistura o doce delicioso de cacau com o sonhar coletivo, construído com fotos muitas vezes fora de foco ou pouco nítidas (mas repletas de expressividade, como ela mesma descrevia), agradecimentos genuínos, música e a fé de que  seu nomadismo, sua arte e sua capacidade de enxergar o outro com afeto podem mudar o mundo, tem-se algo verdadeiro emanando de uma pessoa que deseja a liberdade para si e para quem estiver ao seu lado. Ou mesmo distante, desde que capaz de acompanhá-la na risada, fosse porque tomava um banho de açude no meio do percurso. Fosse porque pedalava rapidamente nas estradas que a levaram ao seu destino final. Fosse porque estava no teatro. Ou na rua. Ou porque recebera doações de grãos e outros quitutes naturais e saudáveis de uma loja que lhe deu esse apoio em Afogados de Ingazeira (PE). Ou porque defendia a importância de um cortejo de palhaços numa feira no Rio de Janeiro, onde chegou a morar. Ou porque, finalmente, conseguira a quantia necessária para a compra do celular tão almejado.

Em seu antepenúltimo vídeo no perfil, ela diz, enquanto arruma a bicicleta uma vez mais, para mais uma partida. Desta vez, o destino é  a Venezuela, para ver a mãe. “Quero muito agradecer a todes e a cada um de vocês que acreditaram e acreditam no meu trabalho, no meu fazer artístico, no meu projeto de vida e que, de um jeito ou de outro, contribuíram para que agora eu possa ter esse celular comigo e aprimorar o meu trabalho e meu fazer artístico. Pra todes e cada um de vocês, meu muito obrigado”.

O que é uma ironia amarga com que sua morte nos envolve: já que o desejo de roubar o celular de Julieta foi o início das violências contra ela. Apenas, o começo. Apenas, o primeiro de uma série de atos numa tragédia que agora movimenta vários palcos. Em seu trajeto de retorno para visitar a família e a mãe, que está doente, Julieta encontrou um casal que ofereceu a ela a varanda de casa para que pernoitasse no município de Presidente Figueiredo, distante cerca de 100 quilômetros de Manaus (AM), por R$ 10.

Fim brutal

No entanto, na madrugada de 23 para 24 de dezembro, eles a roubaram e o homem, Thiago Angles da Silva, a estuprou. A mulher, Deliomara dos Anjos Santos,  ateou-lhes fogo enquanto este segundo crime ocorria. Thiago conseguiu apagar as chamas e enforcou Julieta, deixando-a desacordada, mas com pés e mãos amarrados, enquanto saía para procurar tratamento para as queimaduras que ele sofrera. Sua mulher arrastou Julieta até o quintal e a enterrou (segundo a Polícia Civil do Amazonas, provavelmente ainda viva) numa cova rasa, onde sua morte se consumou.

Antes disso, ainda em 2023, Maria Clara Vieira, jovem indígena Karipuna, que vivia com o pai e a madrasta no interior do Amapá  foi estuprada e também enterrada viva na lama, enquanto estava desacordada. Conseguiu desvencilhar-se e chegou em casa, repetindo: “Ele vai me matar! Ele vai me matar!”. A adolescente acabou morrendo dias depois em função da falta de atendimento adequado, que não havia em sua cidade, após o crime. 

Se no corpo das mulheres incidem todas as repressões  e opressões possíveis, como me disse, certa vez, em uma mesa de bar, a incrível cineasta cearense e militante feminista  Verônica Guedes, Julieta pagou o preço máximo pela liberdade que ousou viver: com a violação de seu corpo, de sua vontade, com a própria vida.  Pareciam querer dizer: “Alegria tamanha não se suporta, sua palhaça!” ou “Vamos fazê-la nossa palhaça!”, redirecionando o que tem de lindo em fazer os outros rirem consigo, a arte e técnica maior da palhaçaria, para que pudessem rir de alguém. É como se o mundo e o Brasil patriarcais em que vivemos não pudessem comportar alegria tamanha como a de Julieta sem um homem  que dela tomasse parte, que dela tomasse conta, que dela tomasse posse. 

Em tempo: em várias cidades brasileiras e do restante da América Latina, atos em bikes e artísticos serão realizados para homenagear Julieta, a Miss Jujuba. Nesta data, seu corpo estará sendo velado pela família, na Venezuela. Em Fortaleza, não será diferente. 

Confira no post de Circo di Soladies:

Em homenagem à existência de Julieta Hernández, artista palhaça e cicloviajante, nós da Rede de Comicidade Feminina, Fórum do Circo Ceará, mulheres artistas e mulheres ciclistas, nos unimos para fortalecer o movimento dessa grande mulher.

Na próxima sexta-feira, 12 de janeiro, faremos uma Ciclociata que culminará com o Sarau Soy Libre Como El Viento, onde mulheres poderão colocar sua voz e corpo no mundo em homenagem à nossa Miss Jujuba.

🤝 Apoie a família de Julieta para lidar com todo o impacto imenso dessa tragédia através da conta PayPal da irmã de Julieta: sophialarouge@gmail.com ou pelo Pix: contato@circodisoladies.com.br

📆PROGRAMAÇÃO:

Sábado, 12/01 – Fortaleza/CE

Ciclociata e Sarau

Concentração: 16h – Praça do Ferreira

Saída em Cortejo de bicicleta: 17h

Chegada: 18h – Sarau Praça da Gentilândia

Perfis no instagram dos Organizadores: 

@comicidadefemininace

@forumcircoce

@marmaracacio

@brunelitta

@cuidarte.psi

@maruska.mar

Com informações de Revista Piauí, Folha de São Paulo, TV Fórum e Carta Capital

Clícia Weyne

Jornalista por Formação.

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