Os governos que se denominam como progressistas enfrentam essa dificuldade no cotidiano: da distância entre o discurso feito para animar a militância e o pragmatismo em manter a política de “guerra às drogas” em vigor
Por Ricardo Moura
Os ganhos democráticos trazidos pela Constituição Federal de 1988 não se refletiram no modo como o Brasil lida com suas forças de segurança. O que se viu, nesse período, foi a manutenção de um enclave corporativo em meio a políticas sociais que permitiram uma inédita participação popular em áreas como Saúde, Educação e Assistência Social. Por causa disso, até hoje, temos de lidar com esse fardo de a segurança pública não ter sido completamente desmilitarizada.
Os governos que se denominam como progressistas enfrentam essa dificuldade no cotidiano: da distância entre o discurso feito para animar a militância e o pragmatismo em manter as mesmas políticas de sempre calcadas na repressão seja ela qualificada ou não. Há uma dissonância nessa atitude e quem aponta isso por vezes é tachado como “do contra”. Na prática, contudo, há um segmento da população que sofre com as consequências dessa escolha, haja vista o encarceramento em massa e as chacinas que cada vez menos repercutem na sociedade.
O voto do ministro Cristiano Zanin, escolhido pelo presidente Lula para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), é bastante representativo dessa contradição. Ao se posicionar contra a descriminalização do porte de drogas, ele só reforça a tese que sustenta o modus operandi das polícias que veem na infinidade de operações e apreensões a única solução para um problema que é mais de saúde pública do que criminal. Mudar essa condição parece uma tarefa que os governos de esquerda não possuem capacidade ou vontade para tal. Mas alguém sempre paga essa conta: a população pobre, preta e periférica.
Sobre a votação
O fato motivador para que esse assunto entrasse na pauta do STF foi um recurso apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo. Em 2010, Francisco Benedito de Souza foi condenado à prestação de dois meses de serviços comunitários após ser flagrado com três gramas de maconha em sua cela em uma prisão paulista. A decisão ampara-se no artigo 28 da Lei de Drogas que prevê penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”.
Contudo, essa tipificação penal, de acordo com a defensoria, ofenderia o princípio constitucional da intimidade e da vida privada. A Procuradoria-Geral da República (PGR), por sua vez, defendeu a constitucionalidade do artigo e a criminalização sob a alegação de que o consumo de entorpecentes não afetaria quem usa a droga, em sua privacidade, mas a sociedade como um todo.
O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, disse, em seu voto, que a criminalização estigmatiza e compromete medidas de prevenção e redução de danos, além de se configurar como uma punição desproporcional ao usuário. Como um elemento de sua argumentação, o ministro fez menção a um estudo em países que descriminalizaram as drogas: não houve aumento no consumo em nenhum deles.
O STF está a apenas um voto de formar maioria a favor da descriminalização do porte da maconha. O placar da ação está 5 a 1. A análise foi interrompida a pedido do ministro André Mendonça, que tem prazo de 90 dias para devolver o tema à pauta.
Crédito da foto: Carlos Moura/SCO/STF.

A punição pura e simples não resolve problema algum. Bater nessa tecla é especialidade de quem não entende de política pública, de direitos e leis constitucionais, ou que o faz para atender interesses outros.
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