A Justiça que odeia mulheres

A dominação masculina é expressa na construção do vocabulário, na desigualdade de oportunidades e nas minúcias de uma legislação que pretende refletir essa condição em seus artigos, parágrafos e incisos

Por Ricardo Moura

A convivência social se organiza em torno de regras jurídicas, cujo descumprimento acarreta punições. Engana-se quem acredita que a elaboração de tais normas ocorre em um ambiente de equilíbrio de forças, buscando atender aos interesses de todas as pessoas igualmente. A “letra fria da Lei”, historicamente, sempre foi mais perversa com as mulheres, sujeitando-as a uma carga maior de punições que os homens.

A dominação masculina é expressa na construção do vocabulário, na desigualdade de oportunidades e nas minúcias de uma legislação que pretende refletir essa condição em seus artigos, parágrafos e incisos. O caso mais recente, da PL 1094/24, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, também conhecida como a “PL dos Estupradores”, é o episódio mais recente da história de um judiciário que sempre viu a mulher como uma cidadã de segunda classe.  

Por muitos anos, o homem se valeu do argumento da “legítima defesa da honra” para atenuar sua pena nos casos em que sua mulher era assassinada. O penduricalho jurídico, herdado da época em que o Brasil era colônia, só foi revogado definitivamente a partir de março de 2021, quando o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que essa tese “contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e da igualdade de gênero”.

O recurso à “legítima defesa da honra” justificava o comportamento do acusado nos casos de feminicídio – termo que só veio a ser criado sob a forma de lei em 2015 – e de agressões caso fosse comprovado que a mulher havia cometido adultério, ferindo, por conseguinte, a “honra” do autor do crime. Descende, desse mesmo ramo argumentativo, o obtuso conceito de “crime passional” que funciona, na prática, como mais um recurso de defesa para assassinos.

A violência doméstica, antessala do feminicídio, só veio a ganhar uma legislação específica a partir da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006). Antes disso, o crime era considerado como de menor potencial ofensivo, conforme prescrevia a Lei n. 9.099/1995, relativa aos Juizados Especiais, cíveis ou criminais. Por causa disso, não havia previsão legal para decretar prisão preventiva e nem a prisão em flagrante contra o agressor. Inexistia agravante da pena se a vítima fosse mulher. A pena consistia apenas no pagamento de cestas básicas ou no cumprimento de trabalhos comunitários.

Legalmente, o corpo feminino foi, por muito tempo, tratado como um objeto privilegiado da violência masculina. O legislador, contudo, vai além ao impor uma interdição sobre o que uma mulher pode ou não fazer com seu próprio corpo. Abortar é um direito e uma decisão que cabe exclusivamente à mulher. O Estado não deveria ter nada o que dizer sobre isso, em especial um Estado que se diz laico.

O artigo 128, do Código Penal Brasileiro, elenca as duas condições legais pelas quais uma mulher pode abortar sem ser punida:  I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;e II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Em abril de 2012, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu não ser crime a interrupção da gestação caso constatada, por meio de laudo médico, a anencefalia do feto, ou seja, a ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. O julgamento se deu em razão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).

Nós, homens, precisamos exercitar a empatia ao tratar de questões cujo ônus recai sobremaneira sobre as mulheres. Para tanto, não é preciso imaginar que se tenha uma filha ou algo parecido. Há milhares de mulheres hoje, exatamente, nessa situação. Basta ter isso em mente. A prática de um aborto, ainda que de forma legal e sem complicações médicas, é um trauma em si. O que se espera da sociedade é acolhimento e não uma dupla punição sobre o ato.

Os discursos religiosos devem ser mantidos na esfera privada de cada cidadão e cidadã. A fé não pode ser instrumentalizada como moeda de troca política, como vem acontecendo. Os filhos indesejados carregados por ventre maternos serão os primeiros a serem sentenciados à morte pelos líderes religiosos populistas no caso de cometimento de qualquer crime. Sua cidadania, por vezes, se encerra no pré-natal. Quando se tornam nascidos e se veem desprovidos do básico para a existência, suas vidas de nada vale para os militantes antiaborto.

Importa não transigir na defesa dos direitos reprodutivos femininos. Não se trata de uma derrota do governo A ou B, mas de toda a sociedade. Me incomoda a constante menção ao livro/série “O Conto de Aia”. Quando se trata de vidas de mulheres negras, pobres e periféricas, o Brasil é ainda mais insuportável que Gilead. Já basta de fantasiar tantas distopias. Precisamos efetivar a utopia coletiva da igualdade dos gêneros, tanto na prática cotidiana quando na área do Direito, a fim de eliminarmos de vez a misoginia na Justiça.

Sobre a imagem: Manifestações em todo o Brasil contestaram a PL do Aborto.

Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil.

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