Não queremos ser Aldeota

Talvez, com um pouco mais de inteligência a gente consiga notar que esses territórios não querem ser a Aldeota, mas querem, sim, ser tratados pela prefeitura como se fossem o lugar onde moram os ricos

Por Marcos Levi Nunes

Não, prefeito, o Bom Jardim não quer ser “uma grande Aldeota”. O Jangurussu, o Pirambu, a Barra do Ceará, não querem ser Aldeota. O Ancurí, o Zé Walter, o Canindezinho se recusam a ser Aldeota. Mas talvez o senhor não entenda a negativa, talvez, por está muito acostumado com o restinho de mata do Cocó e as praias mal cuidadas do Meireles, sua referência de cidade seja muito pequena, eu entendo.

A fim de lhe ajudar na difícil empreitada de compreender a cidade “administrada” por sua gestão, quero pedir licença para apresentar um pouco do encanto que talvez o senhor não encontre na Aldeota. O senhor já viu o fim de tarde do alto da Avenida Oscar Araripe? Ah, desculpe, preciso lhe situar: essa é uma das principais avenidas do Grande Bom Jardim e ali por volta das 17:40 tem uma vista que mescla as ruas, casas e um céu laranja-rosado que é a coisa mais linda do mundo. Acredite em mim quando digo que existem moradores por lá que não trocam aquele espetáculo pelos prédios da Santos Dumont.

No Ancurí, ainda tem cabra pastando e criação de vaca, o senhor já comeu uma acerola ainda com o orvalho da manhã? Direto do pé? Talvez quem mora ali no Ancurí não esteja disposto a trocar isso pelas farmácias da Dom Luís. O senhor já tomou caldo de peixe ali pelas alturas do Pirambu? Assistir as aulas de surf no pé do morro da Barra do Ceará? Acredito que aquelas famílias não estão dispostas a largar as ruas e amigos que conhecem há anos em favor dos apartamentos cada vez mais monstruosos da orla rica da cidade.

Mas eu entendo o senhor. Todos esses lugares que citei sofrem sim: a falta de ruas pavimentadas, escolas sucateadas, a ausência de creches que atendam a toda a população, os diversos alagamentos, não ter transporte público acessível, a escassez de equipamentos públicos como CRAS, CAPS, sim, tudo isso assola essas comunidades.

Talvez, com um pouco mais de inteligência a gente consiga notar que esses territórios não querem ser a Aldeota, mas querem, sim, ser tratados pela prefeitura como se fossem o lugar onde moram os ricos… É isso! Imagine que o Lagamar é a Aldeota e destine àquela comunidade esse mesmo carinho que o senhor tem pela elite. Porventura o excelentíssimo possa tentar o desafio intelectual de tratar o Siqueira como se ele fosse o Meireles, olha que loucura!

Tem uma cratera gigante numa rua do Genibaú, os moradores de lá já tão comemorando o aniversário de dois anos do buraco, o senhor poderia, por favor, imaginar que lá é a Ana Bilhar e pedir pra consertarem com a mesma atenção e cuidado? O senhor poderia fingir que o pessoal ali da Lagoa Redonda tem o mesmo valor da galera do Iate Clube? Seria fantástico imaginar a periferia com as ruas bem asfaltadas, as ciclovias com boa sinalização, do mesmo jeitinho que é ali na Beira-mar, o senhor não concorda?

Aliás, desculpa, não precisa concordar, o exercício aqui pode ser mesmo só de fingir. Quem sabe, se a prefeitura tratar quem precisa pegar ônibus lotado pela manhã do mesmo jeito que trata as BMWs da “Desembargador Moreira”, uma boa parte dos problemas de Fortaleza estariam resolvidos. Só fingir que a importância é igual já seria um grande passo, conto com o senhor.

Sobre a imagem: Foto que compõe a exposição “Uma Filomena: um olhar sobre a comunidade”, do artista Leo Silva, morador da comunidade do Santo Filomena, no Grande Jangurussu.

Marcos Levi Nunes

É sociólogo, educador social, mestre em Sociologia (UFC), MBA em Gestão de Projetos (USP), trabalhando com comunidades, “nos barracos da cidade”, há um tempo.

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