A trajetória do Padre quixotesco que denuncia utopicamente o neoliberalismo. E materialmente defende os “descartados“
Por Clícia Weyne
Por duas vezes, Júlio Lancellotti viu frustradas suas tentativas de tornar-se padre. Na primeira, ainda criança, cansou-se dos castigos físicos que lhe eram impostos. Na segunda, foi expulso por discordar do jeito autoritário com que a formação era conduzida por um padre experiente. Resignou-se, cursou Pedagogia, foi trabalhar na extinta Federação para o Bem-estar do Menor (Febem), que recebia tanto adolescentes e jovens infratores e crianças abandonadas pelos pais e familiares, e começou a namorar.
Mas a causa social, que estava na raiz do seu chamado, novamente o tocou com seu forte apelo e ele reaproximou-se da Igreja Católica para encontrar o apoio necessário à luta contra as torturas que presenciava na entidade em que atuava. A luta pela causa de crianças e adolescentes que precocemente eram internadas no que hoje chamamos de sistema de atendimento socioeducativo e sofriam violências físicas e psicológicas ao ponto de promoverem rebeliões em que matavam como adultos como o mais desesperado dos pedidos de socorro foi a porta de entrada para que ele fosse tardiamente ordenado, aos 35 anos, com a benção e proteção de Dom Paulo Evaristo, cardeal Arns de São Paulo.
Hoje, com cerca de 75 anos, o andar firme do pároco que distribui conselhos, pães, marmitas, gorros, agasalhos e cobertores, em números que podem chegar a 20 mil por mês, contrasta com o olhar cansado de quem luta os embates mais duros desde os 19 anos. Sob o olhar compassivo de Irmã Dulce, cuja imagem está estampada em um banner na parede de entrada da Igreja de Sâo Miguel Arcanjo, na Zona Leste de São Paulo, comandada por ele, aborda, questiona, admoesta, exorta e nutre quem ali está em busca de conselho, abrigo, escuta, alimento… A um jovem diz que vá procurar a mãe e pacientemente o incentiva e escuta enquanto ele hesita e cria coragem. Com outro rapaz, o tom duro se eleva: “Você já pegou, filho! Aquele ali é danado que só”. Mas não é apenas na rua que o tom do Padre se eleva.
É sobremaneira contra os poderosos, o que lhe rende dissabores, calúnias e perseguições capazes de abalar visivelmente o mais duro político. Padre Júlio, no entanto, sabe devolver a artilharia que lhe é lançada e transforma em apoio as possíveis injustiças. Assim é agora, quando ecoa pelo País o grito de “Protejam o Padre Júlio Lancellotti”. Por que? Porque no apagar das luzes de 2023, o vereador de São Paulo capital pelo União Brasil, Rubinho Nunes, conseguiu reunir assinaturas suficientes para uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de investigar as ONGs que atuam na Cracolândia. Ao raiar de 2024, ele anuncia desejar a convocação de Padre Júlio para depor, na condição de investigado, durante as oitivas.
O motivo deste perfil aparece apenas neste ponto do texto para que o leitor tenha sido suficientemente contextualizado a respeito da trajetória deste homem que já enfrentou chuva de balas que partiam de colegas na Febem, enquanto tentava negociar a entrega de adolescentes rebelados, e de gás lacrimogêneo da Polícia, nas manifestações de 2013, quando denunciava as medidas higienistas contra a população de rua trazidas pela Copa do Mundo 2014. Que bradava na missa durante a pandemia “Vacina no braço, comida no prato” e registra em sua fala pública o neoliberalismo como regime que captura corações e mentes para que o ser humano encare seus semelhantes apenas a partir de suas escolhas individuais; e não das condições sociais e econômicas que constituem seu campo de atuação e liberdade.
No entanto, as contradições de Padre Júlio não estão apenas em seus gestos e falas. Em praticar o bem e em uma opção preferencial pelos pobres sem abandonar a dureza de seu tom. Pároco há mais de 36 anos no mesmo local, recebeu neste episódio mais apoios fora da Igreja Católica que dentro dela. Poucos padres e freiras se manifestaram individualmente a seu favor. A Arquidiocese de São Paulo emitiu uma nota tardia. Mesmo assim, as vozes em defesa de Júlio ecoaram em todas as regiões do país, com todos os matizes e tons possíveis.

O deputado estadual pelo PSOL cearense, Renato Roseno, disse nas redes sociais, a respeito da possível convocação: “Em 2022, fazendo jus à sua importante trajetória, principalmente em razão das ações de combate à fome durante pandemia da Covid-19, homenageamos o padre Júlio com o Prêmio Frei Tito de Alencar de Direitos Humanos. É assim que ele deve ser lembrado!”.
A também vereadora por São Paulo, Elaine, da mandata coletiva (termo usado para designar sobretudo candidaturas de mulheres que se unem para conseguir eleger uma maior representação feminina no parlamento e dividem o mandato) Quilombo Periférico (PSOL) questionou ainda a legitimidade de Nunes para tal convocação e defendeu o trabalho de Lancellotti. O coletivo “Mães da resistência”, que luta pelos direitos de filhos e filhas LGBTQIAPN+, publicou nota de apoio. Além disso, viralizou nas redes sociais a imagem desenhada do padre, com uma expressão serena e firme no olhar que encara o internauta do outro lado da tela. Embaixo dela, lê-se: “Protejam o padre Júlio Lancellotti”.
Um dos apoios mais curiosos, no entanto, veio de quem assinou o pedido de CPI. Thammy Miranda, homem trans, filho da cantora Gretchen, e vereador pelo Partido Liberal de São Paulo, afirmou que que não sabia que Padre Júlio seria alvo ao assinar o pedido de instauração da CPI na Câmara paulistana.

Ele gravou uma live junto com Padre Júlio na noite de quinta-feira última, 04.01, para assinalar a retirada da assinatura no documento e reiterar apoio a Lancellotti: “Só que ele mudou a finalidade: hoje se tornou uma CPI direcionada ao Padre Júlio Lancellotti. E aí se tivesse chegado de primeiro momento assim, jamais teria o meu apoiamento (sic) e acredito que de alguns vereadores também. Não teria esse apoiamento (sic)”. O detalhe é que o União Brasil de Rubinho Nunes é um partido ideologicamente aliado do PL, de Thammy, e esta não é a primeira crítica que o vereador, que também é um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), faz ao pároco.
O diálogo ao vivo se seguiu com Lancellotti respondendo: “Agradecer a tua gentileza e a tua transparência. Aliás, é uma característica tua a autenticidade (…) E só na verdade, na simplicidade, na humildade, na coragem afetiva, a gente pode romper essas barreiras que colocam às vezes, às vezes colocam pedras nos nossos caminhos. E ao invés de fazer muros, nós vamos fazer pontes”.
O pão necessário é espiritual e material
A Teologia da Libertação surge no Brasil liderada pelo pensamento de Leonardo Boff, franciscano que em seus estudos encontra paralelos entre o cristianismo e o marxismo, e se espraia pela América Latina. O êxito em explicar o espiritual pelo material leva o seu autor ao Tribunal do Santo Ofício, para ser inquirido, sentado na mesma cadeira em que esteve Galileu para responder suas teorias sobre o sol e a terra, ao então desconhecido do grande público Cardeal Ratzinger, um padre alemão que alistara-se na juventude às fileiras de Hitler e cresceu na Igreja Católica na mesma proporção que o conservadorismo se consolidou no vaticano sob as bênçãos do simpático e santificado João Paulo II. Mais, ele se tornaria o Papa Bento XVI.
A Boff, ordenou-se o silêncio. Ele anuiu diante do Santo Ofício. Mas não se calou diante das injustiças, da violência de ditaduras que perseguiam, prendiam, torturavam, matavam e desapareciam seus compatriotas pelo grave pecado de discordarem do regime então imposto. Com os auspícios de parte da igreja católica que, alguns anos antes, no Brasil, gritara por Tradição, Família e Propriedade, lema do conservadorismo de 1964. Aliás, essa data completa 60 anos em 2024 e muito do que se discutia à época continua atual.
Na Igreja Católica brasileira o movimento de Boff, chamado de Teologia da Libertação, espraiou-se por inúmeras Pastorais de apoio a públicos vulneráveis, da Terra, Carcerária, Menores, e tomou conta da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. Se Leonardo Boff era seu maior expoente teórico, Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns em São Paulo, foi seu grande sustentáculo político. Ao lado de Dom Hélder Câmara, em Pernambuco, e Dom aloísio Lorscheider, no Ceará, fecharam uma tríade de atuação que deitou raízes cujos frutos até hoje são colhidos.
Um exemplo dessa conexão é a atuação do Padre Lino Allegri durante a pandemia, na Igreja da Paz, localizada no Meireles, ao lado da Aldeota, ambos pertencem ao conjunto de cinco bairros em que Jair Bolsonaro venceu Lula em Fortaleza, em 2022. Numa missa de domingo, em 04 de julho de 2021, então com 82 anos e 56 de sacerdócio, o missionário italiano criticou o então presidente pelos mais de 500 mil mortos na pandemia. Após o encontro religioso, ele foi supreendido por uma invasão de oito pessoas dentro da sacristia que, de forma agressiva, o repreenderam e ameaçaram por ter subido o tom contra os equívocos das políticas públicas federais na condução dos dilemas sociais que surgem a partir da disseminação mundial da covid.
Já no dia 11 de julho, domingo seguinte, Lino foi novamente hostilizado por um homem que se levantou durante a missa quando era lida uma carta em apoio e solidariedade ao Padre, tendo sido contido e retirado do local por fieis. No mesmo período, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiu uma carta em que a entidade também se posicionava de forma crítica contra Bolsonaro. No entanto, as perseguições a ele só pararam quando o Programa Estadual de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, que existe para proteger quem está exposto a riscos graves ou ameaças reais por conta de sua atuação pública para garantir direitos de públicos vulneráveis.
A conexão social entre o trabalho realizado inicialmente pela Teologia da Libertação, ainda em 1960, em Fortaleza e São Paulo está em outro ponto de atuação em comum entre Lino Allegri e Júlio Lancellotti: ambos desenvolvem hoje seu trabalho na Pastoral do Povo da Rua.
*Com informações da Revista Piauí, O Globo, Brasil de Fato, jornal O Povo, Blog Escrivaninha e redes sociais das personalidades públicas citadas nesta matéria.

Clícia Weyne
Jornalista por Formação.
