Uma guerra se reproduz quando há uma reprodutibilidade técnica da guerra ou quando há uma retórica da guerra. Tal como numa explosão atômica em que os átomos irradiam sua energia para outros e para tudo em sua volta, a guerra é uma explosão de violência. Quanto mais atingir, mais se reproduz
Por Jean Pierre
Toda guerra é real. Não existe guerra imaginária, mesmo quando ela é imaginada pelos meios de comunicação e recortada em sua realidade, sem se dizer que, na realidade, não passa de uma mentira. Mentiras são tão reais quanto verdades, e esse é problema na realidade: não se poder diferenciar distintamente umas das outras na realidade, a não ser por meio da destruição de uma delas, isto é, por meio de uma guerra na realidade entre mentiras e verdades, ou ainda, de uma retórica de guerra verdadeira contra uma guerra mentirosa.
Uma retórica de guerra verdadeira, porém, é uma retórica sobre a realidade, por mais distante que seja desta, e não importa a distância em relação à realidade, pois é sempre à ela que uma retórica verdadeira visa mesmo quando se refere a uma realidade muito distante, fictícia em grande parte, criando outra realidade. Os fatos somente são reais quando se fala sobre eles, quando uma retórica os torna presentes. “Estamos em guerra!” não é apenas uma frase retórica dita por alguém que deseja a guerra, se armar para ela e matar nela, é uma frase dita sobre a realidade, pois toda guerra somente acontece no presente, não importa quando este presente seja, é, portanto, uma guerra real, por mais que pareça irreal.
Quando Hannah Arendt escreveu seu texto Da violência (On violence, 1969/1970), ela vivia numa guerra entre dois mundos, como a narrada por Orson Welles, no caso, o mundo capitalista unido e liderado pelos Estados Unidos da América (EUA) e o mundo socialista/comunista unido e liderado pela antiga União Soviética (URSS). Dois mundos em Guerra Fria iniciada após a Segunda Grande Guerra Mundial do século XX. Dois mundos que tinham nos meios de reprodutibilidade técnica seu grande poderio que os levaram às armas atômicas em pouco tempo. Cada um queria propagar seu poder para além dos limites até então estabelecidos geograficamente e disputavam cada pedaço da Terra semelhante ao que aconteceu com as grandes navegações e colonizações dos séculos XV a XVII, quando Espanha e Portugal disputavam a colonização do “Novo Mundo”, posteriormente limitado à América Latina, já que o Reino Unido colonizou a América do Norte sem qualquer disputa com outro país europeu.
O que une as colonizações antigas com as novas e os antigos e novos meios de reprodutibilidade técnica utilizados nelas, navios e canhões, tanques, aviões e bombas atômicas, foi dito muito bem por Arendt no início do seu texto ao se referir ao século XX ao se referir ao “século de guerras e revoluções” como “um século da violência que atualmente se acredita [que] seja seu denominador comum.” Se há um denominador comum entre colonização, guerra e revolução, é, portanto, a violência, e se há uma diferença entre colonizações, guerras e revoluções é também a violência, e, no século XX, tanto EUA como URSS buscaram um “progresso técnico dos instrumentos da violência” que não era justificado, e passível de justificação, por nenhuma política anterior de colonização, guerra ou revolução, pois, diz Arendt “objetivo político algum poderia corresponder ao seu potencial de destruição [da violência empregada pelos meios] ou justificar o seu emprego real em conflitos armados.” (ARENDT, 2004, p. 4).
Sem qualquer justificativa para seus usos, os instrumentos de violência se ampliaram enormemente e, como se sabe, a Guerra Fria quase se tornou uma guerra nuclear de fato, faltando pouco para ambos os países decretarem o fim do “jogo” no qual ambos, e muitos outros, sairiam perdedores, pois o jogo que jogavam tinha como única regra que “‘se qualquer um dos dois ‘vencer’, é o fim de ambos’”, como diz Arendt citando Harvey Wheeler. Isto porque o objetivo era a “a dissuasão e não a vitória”, em outras palavras, a derrota do adversário tanto quanto a sua se fosse o caso, pois nenhum queria se entregar ao outro como prisioneiro de guerra porque no jogo de guerra, tanto real como imaginário, é matar ou morrer.
Dos fins de uma guerra
O que está em jogo numa guerra é a realidade e, neste caso, a dissuasão dela, inclusive, da verdade sobre ela. Se os fins são a realidade pretendida, por exemplo, a paz ou uma política de paz, o cessar imediato da guerra, os meios são aquilo que dissuadem quanto a isso, no caso, as armas ou a “corrida armamentista” defendida por muitos “agora [mas, há muito tempo] argumentando-se que mais e mais dissuasão é a melhor garantia da paz”, ou, como disse o Grande Irmão de Orwell, “GUERRA É PAZ.” Se a guerra, ou as armas, são o meio para garantir a paz, o problema é que “os fins correm o perigo de serem dominados pelos meios”, isto é, que se seja dominado pela violência, ainda mais que:
Uma vez que a violência – distinta do poder, força ou vigor – necessita sempre de instrumentos (conforme afirmou Engels há muito tempo atrás), a revolução da tecnologia, uma revolução nos processos de fabricação, manifestou-se de forma especial no conflito armado. (ARENDT, 2004, p. 4)
Se com o desenvolvimento tecnológico se demonstrou e mostrou o horror da guerra fazendo com que perdesse o seu “glamour” como diz Arendt, eles fizeram senão transparecer o “elemento adicional de arbitrariedade” da violência, uma violência sem limites. A violência, regida pela dualidade de “meio/objetivo” pode ser tão somente um meio para um objetivo, como a guerra para a paz, mas o desenvolvimento tecnológico, incluindo de armas, faz com que o meio seja também o fim, e a guerra ter como objetivo a guerra, sem fim algum, isto é, sem qualquer arbítrio, qualquer escolha daquele que participa da guerra quanto a um fim dela mesma, sem qualquer finalidade prevista por ele então submetido à arbitrariedade da guerra. Neste sentido:
A razão principal por que os conflitos armados ainda existem, não é nem um desejo secreto de morte da espécie humana, ou um irreprimível instinto de agressão, nem, finalmente, e mais plausivelmente, os sérios perigos econômicos e sociais inerentes ao desarmamento: porém o simples fato de que substituto algum para esse árbitro final nas relações internacionais apareceu ainda no cenário político. (ARENDT, 2004, p. 5)
A Guerra Fria com seu poderio nuclear transformou qualquer luta armada numa brincadeira de crianças, mas também demonstrou que o desenvolvimento tecnológico leva a uma violência arbitrária, isto é, imprevisível, sem limites. Um assassinato levou à Primeira Grande Guerra, uma crise econômica levou a Segunda Guerra Mundial e um navio soviético enviando mísseis para Cuba a quase uma guerra nuclear, pois, o que está tanto em questão como lembra Arendt, é uma “independência nacional, ou seja, a independência do domínio estrangeiro, e a soberania do Estado, ou seja, a reivindicação de um poderio ilimitado e irrestrito nas relações internacionais.” A independência nacional e a soberania do Estado levam a uma violência sem limites em que a guerra é o árbitro, é ela que decide, e tal decisão não está ao alcance daqueles que participam dela, não importa o grau de desenvolvimento tecnológico, como ficou claro na Guerra do Vietnã. A tecnologia é o que torna a guerra arbitrária, se torna uma tecnologia de guerra, isto é, um instrumento de violência. Em outras palavras, qualquer instrumento tecnológico se volta contra si mesmo na guerra, deixa de ser meio para se tornar um fim quando é produzido para ela, se torna um instrumento de guerra e não de paz, de reprodução da guerra em si mesma a partir dele, e não um instrumento político que limita a violência da guerra, um aparelho do Estado.
Eis o problema: se a guerra/violência é um meio para se produzir a paz, na medida em que se desenvolve por meio dos instrumentos de violência, a paz deixa de ser o fim, pois o fim se torna o meio, no caso, a violência, a guerra, ou, como diz McLuhan, o meio se torna a mensagem. “Estamos em guerra!” A mensagem de guerra já é a guerra produzida pelos meios, neste caso, de informação, de uma retórica. Uma guerra real, que somente pode ser real, bem como a retórica sobre ela, por mais distante que a retórica, o meio, a mensagem estejam distantes da verdade da realidade da guerra, seja uma mentira.
Uma guerra se reproduz quando há uma reprodutibilidade técnica da guerra ou quando há uma retórica da guerra. Tal como numa explosão atômica em que os átomos irradiam sua energia para outros e para tudo em sua volta, a guerra é uma explosão de violência. Quanto mais atingir, mais se reproduz. A retórica não é somente um modo de falar e escrever que torna belo um discurso, é uma técnica de reprodução da realidade, neste caso, da realidade violenta da guerra. O objetivo da retórica, da guerra, é atingir alguém, produzir e se reproduzir em violência em alguém, assim como o átomo explodido violenta e destrói aquele no qual atravessa sua radiação. A guerra é retórica. Mas não menos real por isso. Quer dizer que se reproduz numa retórica. Os meios de comunicação ao comunicarem a guerra são a retórica da guerra, aquilo que possibilita a reprodução sem limites, para além dos limites em que a guerra aconteça.
Estamos em guerra! A retórica a partir da qual se diz isso não é simplesmente a de um político ou de um Estado, ou mesmo de um povo, é de todos, aqui ou em Gaza, é uma retórica que reproduz a guerra fazendo de sua violência sem limites. Uma guerra fria porque reproduzida na frieza dos meios como o cano de uma arma, uma bomba atômica, uma televisão, um rádio, na Internet, mas também na frieza daqueles que se tornam instrumentos da guerra, os políticos, militares e cidadãos que friamente matam e desejam a morte de todos aqueles que consideram seus inimigos numa guerra mesmo que não estejam em guerra contra si, sejam inocentes.

Jean Pierre
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Ceará e doutorando em Filosofia pela UFC.
