“Queen e Slim”, o amor em tempos de Black Lives Matter

Dentro da proposta de discutir e analisar obras artísticas que versam sobre a temática da violência e da segurança pública, damos início à seção “Linguagens da Violência” com a resenha do filme “Queen e Slim”. A advogada Natália Pinto traça paralelos entre a história de amor contada na película e suas inter-relações com a política e com as questões raciais dos EUA

Por Natália Pinto Costa

Embora inicialmente aparente ser um filme de um “clássico de fuga” com o clichê de um casal que não tem nada em comum, mas que acaba se apaixonando, Queen e Slim (2019) é uma obra bem mais complexa. É um filme que precisa ser digerido com muita calma em razão dos seus diversos desdobramentos, além de, sim, retratar o surgimento de uma história romântica em meio a um ambiente com adversidades. O filme discorre sobre a seletividade do sistema de justiça criminal, a violência policial, o racismo estrutural, a força de movimentos populares, a construção de legado, tudo isto tendo como protagonista um casal de negros retintos que se tornam símbolo de um movimento nacional.
A obra começa com o desastroso primeiro encontro entre o casal Queen (Jodie Turner-Smith) e Slim (Daniel Kaluuya – que também estrelou o filme Corra!) que se conhecem por meio do Tinder, mas que pessoalmente percebem que não possuem muita coisa em comum. Ao final do encontro, Slim leva Queen para casa e no transcorrer do caminho são parados e sofrem uma abordagem policial bastante hostil, o que termina em um assassinato, em legítima defesa, de um policial branco. Nota-se que se tenta fugir de uma narrativa usada na maioria dos filmes do mainstream, onde a lógica geralmente é o contrário – o policial branco assassinando o negro – entretanto, a escolha por esta construção é um dos pontos chaves na forma como o filme se constrói como crítica social.
O filme mostra por meio de seus diálogos uma crítica ao sistema penal e suas agências punitivistas. Um retrato disto é a cena em que a Queen mostra sua indignação com o Estado por ter decretado a execução do seu cliente e quando Slim pergunta se ele era inocente, ela diz que isto é irrelevante, que não cabe ao ente público decidir se alguém viverá ou morrerá. Apesar de ser uma crítica direta a pena de morte, quando se pensa na realidade prisional, tanto estadunidense como brasileira, não se pode esquecer como este espaço é excludente e seletivo por estruturação.
Além da crítica ao poder judiciário, tem-se também violência institucional, demostrada pela própria abordagem policial que o casal irá sofrer. Evidente no momento em, que mesmo sem um mandato, Slim tem seu carro vasculhado e o oficial Reed (Sturgill Simpson), ao entrar em contato com central policial para comunicar a abordagem, enfatiza bastante na cor do casal, já delineando a forma como o racismo e engendrado no sistema.
Na continuação entre o paralelo entre diálogos e crítica social, pontua-se a incompreensão de Slim, sobre as razões do porque terem de fugir e a proibição de entrarem em contato com suas famílias, já que não são “criminosos”, versus o medo de Queen em serem categorizados como culpados, pois se sabe que a instrumentalização do direito penal unida com a seletividade racial acaba operacionalizando a criação de um inimigo em comum, criando no imaginário social indivíduos que são estereotipados como os responsáveis pela violência e a desordem social.
O medo de que os protagonistas se encaixam neste perfil, que é criminalizado, faz Queen enfatizar que, mesmo a morte tendo ocorrido por legítima defesa, Slim continuava sendo um negro que assassinou um policial branco. Para eles era melhor viver uma vida como foragidos, do que – nas próprias palavras da personagem – se tornarem propriedade do Estado, onde as condenações e, consequentemente, suas desumanizações eram inevitáveis.

O movimento Black Live Matters é retratado na película com destaque


Outro ponto abordado é como a mídia pode se integrar a um sistema de fabricação de realidade , que na obra se identifica na tentativa da construção dos protagonistas como “criminosos” e “perigosos”. Um dos possíveis desdobramentos desta prática é o fortalecimento da construção de discursos do “nós e eles”. A figura do “eles” seriam os agentes criminosos, enquanto a figura do “nós” se interliga com as pessoas consideradas “decentes”. E aqui se tem um projeto político, que não é destinado apenas aos meios de comunicação, mas também a forma racializada como todas as agências atuam, sustentado por um pseudodiscurso “neutro”.
E sobre a neutralidade, se pega emprestado o que alerta de Ana Luiza Pinheiro Flauzina : nada desse discursinho da boa ciência embriagado por uma neutralidade repleta de sentidos e uma objetividade impregnada por tudo de humano que tão insanamente insiste em refutar. A construção dos discursos em torno da criminalidade, assim como a forma que a mídia vai retratar os protagonistas no transcorrer do filme, não é uma escolha neutra, e sim ideológica e política, que tem o racismo em sua base.
Desde o começo da narrativa, nota-se a construção de identidade dos personagens se unindo ao um sentimento de pertencimento. Por exemplo, quando Queen questiona a Slim os motivos que o levaram a escolher o local do primeiro encontro e tem como resposta que é exclusivamente pelo dono do local ser negro, percebe-se como a sua noção de ser ligado à coletividade.
Quando retratados os protestos em apoio ao casal estes pontos se interligam, pois resta claro que as resistências que serão construídas tem como fundamento a luta contra opressão policial e, principalmente, racial. Também fica evidente que se opera com a criação de linhas de fugas, onde a revolta os coloca a busca de novas formas de sobrevivência que tentam romper com padrões de controle social, estigmatização, criminalização, de ser e estar no mundo, tanto em nível individual, como em coletivo para sobreviver, apesar de todo o esforço do estado de apagá-los.

Até que ponto o amor pode ser uma forma de resistência?


Como dito, o filme tem diversos desdobramentos. Não se pretende discutir todas as nuances que são retratadas. Queen & Slim de maneira geral é um filme que em diversos aspectos retrata conflitos sócio-políticos e discute como o aparato policial se estrutura sobre bases racializadas, assim como o sistema de justiça e demais agências penais. Contudo é um filme que retrata a importância da experiência de comunidade, amor e legado.
Enfatiza-se que todas as opiniões, discursos e afins são carregadas de teoria – ainda que não as conhecemos – pois, por trás de cada uma existem diversas características e representações. Para muito além de apenas formas de entretenimento ou discussões sobre programas de televisão, precisa-se refletir sobre quais práticas são endossadas por meio das produções de audiovisual e o que elas despertam no imaginário coletivo. Dito isto, refletir sobre os filmes, séries e afins que consumimos é também examinar as representações sociais.

Referências

BECKER, Howard. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto. 2008.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

Natália Pinto Costa

Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor), advogada, pós-graduada em Direito e Processo Penal pelo Centro Universitário Unicristhus.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: