As vítimas da guerra sem limites: uma leitura espinosiana

Por Jean Pierre

Quando a guerra se torna sem limites, não há mais vítimas na guerra. Ninguém é mais inocente. A inocência se perde na violência de uma guerra sem limites. O ódio transforma as vítimas de uma guerra em assassinas de outra. Uma guerra sem limites é uma guerra na qual o ódio não possui limites, nem sua violência, ultrapassando a fronteira que separa a vítima do assassino. O amor da vítima, sua inocência perante o outro, não vendo nele seu inimigo, em vez de aumentar com o ódio, tornando-se maior, muito maior do que o ódio do inimigo a si, perdoando o que o inimigo lhe faz, reduzindo assim a violência, este amor inocente é destruído pelo ódio que se torna maior do que qualquer amor que possa ter por si e por seus semelhantes, se tornando uma doença em si, um ódio fascista: odiar alguém buscando destruí-la, ter uma alegria com sua destruição, a alegria do ódio, a alegria com a guerra.

Ninguém melhor do que Spinoza, o judeu excomungado do judaísmo, para nos fazer entender o ódio e a alegria fascista pela guerra que matou milhares de judeus na Segunda Guerra Mundial em holocausto e fez de vários outros vítimas de sua crueldade ao ponto dessas vítimas hoje se tornarem assassinas em Israel desejando com alegria a morte de palestinos, independentemente de serem os autores do atentado contra si, simplesmente por serem palestinos. As proposições 44 a 48 da parte III de sua Ética são um lembrete constante para pensarmos nas vítimas da guerra, não somente aquelas que morrem, im memoriam, mas, principalmente, aquelas que ainda vivem e aquelas que herdam dos vivos suas dores e sofrimentos mais do que suas alegrias.

Pensar nas vítimas de uma guerra não é pensar nelas como inocentes de modo absoluto numa guerra, isto é, como pessoas boas por natureza sem qualquer relação com o mal, mas como sobreviventes de atrocidades, pessoas que de algum modo escapam às crueldades da guerra, mas não totalmente, pois a relação com a guerra, ainda mais uma guerra sem limites, uma guerra fascista, faz delas sempre vítimas de guerra, isto é, estarem em constante relação com a guerra, lembradas a cada momento em que uma guerra é lembrada, como um bem sempre relacionado a um mal. Em outras palavras, as vítimas de uma guerra nunca são totalmente boas, elas são também más. São afetadas pelo mal da guerra, um mal que a qualquer momento pode destruí-las, e é senão por serem constantemente afetadas pelo mal da guerra, lembradas pelo mal que a guerra fez a si e, não simplesmente faz a alguém, que as vítimas de guerra vivem constantemente assombradas pelo mal de tal modo que se tornam também más para se sentirem senão bem. Isto é, buscam ter uma alegria com a destruição do mal, do que é mal para si, do que fez e ainda faz mal a si, aqueles que fizeram guerra contra si, uma guerra sem limites, que não vê nelas, como vítimas inocentes, um limite à guerra, à violência da guerra, à sua morte e genocídio de seu povo.

É sobre as vítimas do ódio de outros, não necessariamente numa guerra, que Spinoza escreve na Proposição 45 da Parte III de sua Ética: Se alguém, que ama uma coisa semelhante a si, imagina um semelhante a si afetado de Ódio, ele o odiará.

Em primeiro lugar, nesta proposição, há a relação amorosa de uma primeira pessoa com uma segunda pessoa, alguém semelhante a si, isto é, alguém com a qual se tem alguma conexão, afinidade, simpatia. Em segundo lugar, há a relação da segunda pessoa com uma terceira pessoa ou com algo, mas não mais de amor, e, sim, de Ódio, na medida em que é afetada por Ódio desta terceira pessoa ou de algo, odiando-a ou sendo odiada por ela/ele, um ódio advindo desta terceira pessoa a si, não, contudo, de algo, pois algo não traz nenhum ódio. Por exemplo, uma pedra no caminho não odeia uma pessoa que tropeça nela fazendo-a tropeçar por ódio à pessoa, mas uma pedra pode fazer com que alguém tenha ódio por uma pedra, a jogue longe ou a destrua. Em terceiro lugar, há a relação da primeira pessoa com a segunda pessoa e, quiçá, com a terceira pessoa ou coisa também pelo ódio. Neste sentido, podemos dizer que o ódio da segunda pessoa, advindo, talvez, de uma terceira pessoa, passa para a primeira pessoa e desta de pessoa em pessoa segue ao infinito, sem limite, pois qualquer um que veja na primeira pessoa um semelhante, tenha uma conexão, afinidade ou simpatia com ela, ele o odiará assim como a primeira pessoa odeia a segunda e esta a terceira e assim por diante. Todos, de modo semelhante, portanto, serão vítimas do ódio da segunda pessoa, ou terceira pessoa implícita.

O quanto este ódio pode aumentar até o infinito, até ser sem limites, pode ser percebido na Proposição 46 quando Spinoza diz:

Se alguém tiver sido afetado de Alegria ou Tristeza por algo de uma classe ou nação diferente da sua, conjuntamente à ideia disso, sob o nome universal da classe ou nação, como causa, ele amará ou odiará não apenas aquilo mas todos os de mesma classe ou nação.

Como se pode perceber nesta proposição, o ódio não é mais de pessoa em pessoa, é um ódio conjunto, universal, de um conjunto de pessoas numa classe ou nação, e não mais delas entre si, mas em relação a uma classe ou nação diferente da sua,o Ódio ultrapassa fronteiras. Não é mais por uma pessoa próxima, segunda ou terceira semelhante a si, portanto, um ódio familiar, por algum ou alguém familiar, mas um ódio por alguém que destrói a relação familiar, a conexão, afinidade e simpatia que há entre entre familiares por amor, e não apenas um ódio por alguém individualmente por ter violentado algum semelhante, mas por “todos os de mesma classe e nação” diferente da sua. As vítimas, neste caso, não são apenas vítimas do ódio, são vítimas de guerra de uma classe ou nação diferente da sua, de um ódio que ultrapassa as fronteiras de sua classe e nação, de uma guerra que se estabelece nas fronteiras entre classes ou nações sem Estado, mas também entre classes e nações de Estados e, se torna um guerra sem limites, sem qualquer fronteira, entre Estados e nações sem Estado.

A passagem do ódio a alguém e por alguém, no lugar de alguém, para um ódio de classe e de nação, por uma classe ou nação, um ódio classista ou nacional, isto é, um ódio fascista, que coloca a classe e a nação acima de tudo, que se confunde com o amor à classe e à nação, um amor à classe e nacionalista, é demonstrada pela Proposição 47 quando diz que: A Alegria que se origina por imaginarmos a coisa que odiamos destruída ou afetada de outro mal não se origina sem alguma Tristeza do ânimo. Não se trata mais, nesta proposição, de apenas sentir ódio de alguém por alguém, mas de uma Alegria junto com o ódio de alguém por alguém, e não alguém semelhante, de uma mesma classe ou nação, mas de alguém de uma classe e nação diferente da sua. Uma Alegria junto do ódio, mas também do amor, no caso, do amor daqueles e por aqueles que são seus semelhantes. Uma Alegria que é a de estar amorosamente, em conexão, afinidade e simpatia com seus semelhantes, uma Alegria por amor simplesmente, mas também por ódio, ódio ao diferente, de outra classe e nação. Uma Alegria, ademais, que não é apenas por ódio ao diferente e amor ao semelhante, mas pela destruição da “coisa que odiamos” ou por acontecer algum mal a ela, ainda que em imaginação. Por um fim, uma Alegria que não se origina do amor, mas do Ódio, mais ainda, de uma “Tristeza de ânimo” e que, apesar de toda Alegria ainda traz consigo uma Tristeza de ânimo, uma profunda tristeza que a guerra traz e uma alegria pela destruição do outro, e o fascismo também fazendo-as pensarem cada vez mais em sua tristeza para delas extrair o ódio necessário à guerra e a alegria com a destruição de outras classes e nações, contudo, nem por isso dando uma Alegria absoluta a si, permanecendo uma Tristeza de ânimo.

Este amor por um semelhante que se torna ódio por causa dele e em defesa dele por ter sido vítima de ódio, que faz o amor pelo semelhante se tornar ódio por causa e em defesa dele, e que aumenta consideravelmente com um ódio por quem é de uma classe ou nação diferente da sua que faz do seu semelhante vítima de ódio de classe ou nacional, é portanto, um ódio fascista. Um ódio que vem de fora, de uma classe ou nação diferente da sua, mas que se torna também da sua classe e nação à classe e nação diferente da sua, não necessariamente a mesma de onde se originou o ódio a si. Pois, lembremos, o ódio de uma primeira pessoa por uma segunda pessoa veio desta segunda pessoa, mas volta-se como ódio não apenas contra esta na mesma medida, mas também à terceira pessoa e assim sucessivamente, e não é diferente entre classes e nações diferentes, a não ser por uma intensidade maior, a da guerra e desta como guerra sem limites. Se alguém é vítima de um ódio fascista, este ódio fascista passa para ela que pode ir contra ele ou não, passar adiante ou não a outras classes e nações, e, no caso, de passar adiante, se tornar uma doença, um mal da guerra, o mal do fascismo, quando o ódio a alguém de uma classe ou nação, e a destruição dela, se torna uma Alegria maior do que a que apenas imaginou. Algo que Spinoza pensou, mas achava absurdo em sua época, o que não é tão absurdo hoje, quando disse, no Escólio da Proposição 44, que: “ninguém se esforçará por odiar uma coisa, ou ser afetado de Tristeza para que frua esta Alegria maior” pensando que “quanto maior tiver sido o Ódio, tanto maior será o Amor”.

Mesmo achando isso absurdo, Spinoza não pensa apenas em como o Ódio ao semelhante pode aumentar ou em como pode ultrapassar todos os limites no ódio a uma pessoa de classe e nação diferente da sua. Ele pensa também como este ódio pode ser diminuído. De modo individual, entre pessoas próximas, semelhantes, a Proposição 48 demonstra como o ódio diminui entre semelhantes:

O Amor e o Ódio, a Pedro por exemplo, são destruídos se a Tristeza que o segundo envolve e a Alegria que o primeiro envolve se unem à ideia de outra causa; e, enquanto imaginamos não ter sido só Pedro a causa de um e outro, ambos diminuem.

Em outras palavras, por um lado, diminuindo o amor a Pedro, também diminui o ódio a ele ou produzido por ele, o que isso acontece quando se pensa em outra causa, isto é, que Pedro não é a causa do ódio e amor por si, também a si mesmo, ou ainda, qualquer outra causa que não si mesmo, nem Pedro. A Tristeza de Pedro, e o ódio que se segue a ela, não transforma a Alegria o amor que se tem por ele em ódio e Tristeza maior ainda, mas diminui quando se encontra a ideia de outra causa, ou ainda, quando se opõe ao Ódio e Tristeza um Amor maior do que o Ódio e Tristeza não apenas de Pedro e por ele, e de si por ele, mas maior do que o Ódio e Tristeza de e a qualquer pessoa de classe ou nação diferente da sua.

Este Amor maior do que o Ódio e Tristeza que vem de fora, não simplesmente de alguém próximo, semelhante, mas de alguém distante, de outra classe e nação, do que o Ódio e Tristeza fascista, é o que Spinoza propõe na Proposição 44: O Ódio plenamente vencido pelo Amor converte-se em Amor; e por causa disso o Amor é maior do que se o Ódio não o tivesse precedido. Segundo esta proposição, não basta um amor simplesmente para vencer o ódio fascista, pois, este não é o ódio de uma pessoa apenas que lhe faz mal, que visa lhe destruir, mas o ódio de uma classe e nação diferente da sua, e não é fácil vencer simplesmente com o amor o ódio a quem quer lhe destruir por ser de uma classe e nação diferente da sua. O ódio de classe e nação não é o mesmo que um ódio individual, tão pouco deve ser o amor para combatê-lo. No ódio de classe e nação, o ódio tornou-se sem limite, sem fronteira alguma, e não por menos o amor também deve ser para enfrentá-lo, e maior ainda, para vencê-lo. Não basta, portanto, um amor sem limite, infinito, pois este ainda é o da mesma medida do ódio, também sem limite e infinito. É necessário um amor maior, um amor absoluto.

O amor maior e a beatitude

Conforme Spinoza, para um judeu, mesmo expulso pelos judeus, por seus semelhantes, este amor maior, absoluto, é a beatitude, um amor intelectual de Deus, um amor divino que nós, seremos humanos não temos necessariamente, mas temos em potência, isto é, temos na medida em que nossa potência é parte da potência divina, portanto, maior do que imaginamos e pensamos que podemos ter. Para os cristãos, este amor maior, absoluto, divino, é o perdão que também pode ser entendido no mesmo sentido, quando nosso amor é maior do que o amor que temos simplesmente, isto é, maior do que o amor inocente, sem ódio no coração. Pois é quando o ódio se instala totalmente no nosso coração já não mais inocente, porque também assassino, já não se podendo mais separar a vítima do assassino, em nossa imaginação e na realidade, que se torna necessário um amor maior do que o amor inocente e que imaginamos por uma pessoa que é nossa semelhante, por ser familiar, da mesma classe ou nação. É necessário um amor maior do que o amor que temos sem limites por elas.

Não é preciso, porém, ser judeu ou cristão para ter este amor maior do que um ódio sem limites. Basta uma decisão: não transformar o amor em ódio. Transforme isto, o ódio por amor a uma pessoa, classe ou nação, em outra coisa, num amor maior, absoluto. Este amor absoluto não é sem tristeza, sem ódio, mas é maior do que toda tristeza e ódio que trazido a si e a seus semelhantes ou não. É a decisão por este amor absoluto, e não pelo ódio e a guerra, que faz com que as vítimas da guerra, do fascismo, não se tornem assassinas numa guerra fascistas, isto é, numa guerra contra aqueles que a odeiam ou contra qualquer outra nação que odeiem. Somente as vítimas da guerra podem parar o ódio sem limites do fascismo com um amor absoluto àqueles que a odeiam e que elas odeiam, mas não necessariamente devem odiar. Somente elas têm o poder de parar uma guerra sem limites quando outros não querem e não podem tomar esta decisão por elas para diminuírem o também seu ódio fascista.

As vítimas de uma guerra sem limites, de uma guerra fascista, não são inocentes. Elas carregam o ódio de uma guerra fascista em seus corações. A violência da guerra numa guerra sem limites ou fascista ultrapassou todas as fronteiras das vítimas, deixando-as vulneráveis ao ódio e à tristeza de ânimo, fazendo-as desejar a destruição daqueles que a odeiam e que elas odeiam para ter alguma alegria, não necessariamente os que entraram em guerra contra si diretamente. Não há mais Pedro, não há mais alguém humano diante de si quando a vítima é dominada pelo ódio fascista. A retórica da guerra não é mais uma retórica simplesmente de outro que a influencia, isto é, a causa do seu ódio, ela se tornou o efeito dele. A retórica da guerra é reproduzida por si em seu desejo de ódio, de guerra, de uma guerra sem limites, de destruição não apenas de alguém que a odeia e lhe fez mal, mas de todos que são semelhantes a ele e diferentes de si.

A inocência da vítima é perdida numa guerra fascista, mas não totalmente quando a vítima sobrevive. A sobrevivência da vítima é a esperança de que a guerra sem limites acabe absolutamente. A vítima de guerra é o Messias, aquele sofre o ódio sem limites numa guerra contra si e seus semelhantes e, mesmo assim, retribui com um amor maior, um amor absoluto. Cada pessoa que sobrevive numa guerra, ainda mais, numa guerra fascista, é um messias. Em cada um delas há a esperança de se pôr fim à guerra sem limites. É o que esperamos delas. Quais das vítimas da guerra fascista são ou serão os Messias que acabarão absolutamente a guerra? Não sabemos. Cabe a elas a decisão.

Crédito da Imagem: Foto de Mihriban no Pexels: https://www.pexels.com/pt-br/foto/rua-via-mulheres-democracia-7966638/

Jean Pierre

Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do Ceará e doutorando em Filosofia pela UFC.

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