Linguagens e sensibilidades da violência: como atravessar o fosso?

Por Ricardo Moura

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que, embora a violência letal no Ceará seja uma questão sociológica, ela não é compreendida uma questão social prioritária para os governantes. A produção técnico-científica no Estado é um artigo de excelência com raríssimos dispondo de um cabedal tão significativo de conhecimentos acumulados. Não à toa, os pesquisadores locais integram redes nacionais e internacionais de pesquisa com proeminente destaque. 

No entanto, como estabelecer uma ponte entre a academia, a rua e o grande público? O fosso existente ao longo dessa Fortaleza parece intransponível por vezes. Me propus como meta de vida e profissional aproximar esses três universos por meio de artigos jornalísticos em uma produção textual que intercala elementos de reflexão teórica, notícia, ensaio e relato etnográfico. Há de haver um termo que dê conta dessa conjunção um dia.

Toda essa atividade é realizada sem que haja qualquer pretensão de se guiar pela miragem de uma “imparcialidade” jornalística. Trata-se de pesquisar, entrevistar e escrever, a partir de critérios reconhecidos de noticiabilidade, mas sempre de um ponto de vista determinado. 

Unir o olhar etnográfico e científico às exigências do mercado consumidor de notícias não é algo novo. Marx, em seu tempo, foi editor e articulista de jornais que tinham como linha editorial a defesa dos trabalhadores. Um exemplo bastante ilustrativo dessa abordagem diz respeito à cobertura feita por Michel Foucault sobre a Revolução Iraniana para o jornal italiano Corriere de la Sierra. Essa incursão na mídia comercial foi denominada pelo pensador francês de “reportagem de ideias”, que poderia ser descrito da seguinte maneira:

Sigamos rapidamente o que nós concebemos como reportagem de ideias. Alguns dizem  que as grandes ideologias estão para morrer, outros que elas nos fazem submergir em  sua monotonia. O mundo contemporâneo, ao contrário, fervilha de ideias que nascem, se agitam, desaparecem ou reaparecem e que abalam as pessoas e as coisas. E isso não  somente nos círculos intelectuais ou nas universidades da Europa, mas em escala mundial  e entre as minorias ou entre os povos que a história até hoje não deixou falar nem se fazer  escutar (Corriere della Sera, 12/11/1978, in Ilha do Presídio, 2008, p. 50).

É possível estender esse método ao campo da segurança pública, expandindo seu escopo para além da radiografia de um corpo de ideias e práticas em vias de estabelecimento. Compreender as estratégias que se escondem dentre os discursos oficiais, jogar luz sobre o que se pretende fazer calar e amplificar a voz de minorias e da população periférica e mais vulnerável sem ter a pretensão de querer ser seu porta-voz são tarefas às quais um jornalismo de ideias pode se propor. Por óbvio, tal empreendimento não ocorre sem riscos. As críticas e objeções vêm de todos os lados diante dessa prática híbrida. Escrever à quente não é tarefa que se cumpre de forma impune.  

Do ponto de vista da abordagem, as vítimas possuem centralidade. As agências estatais possuem suas próprias assessorias. Não necessitam de mais penas favoráveis a seu dispor. Estar do lado de uma população historicamente sem direitos é onde o jornalismo que pratico se pretende. O que não significa dizer que os profissionais da segurança também não se vejam representados, em especial no que tange sua constituição como trabalhadores. Fiscalizar a forma como o Estado gere seu efetivo – operacionalmente, como os comandos e gestores atuam diante de suas corporações – é contribuir para que a sociedade desfrute de uma segurança pública melhor e mais bem qualificada.  

Mas como lidar com essa violência sem torná-la um espetáculo grotesco e sem impor a si mesmo a função de salvador da pátria? Susan Sontag oferece um caminho, uma trilha:

Dizer que a realidade se transforma num espetáculo é um provincianismo assombroso. Universaliza o modo de ver habitual de uma pequena população instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias precisam ser transformadas em entretenimento – esse estilo maduro de ver as coisas, que constitui uma aquisição suprema do “moderno” e um pré-requisito para desmantelar as formas tradicionais de política fundada em partidos, que propiciam discórdia e debate genuínos. Supõe que todos sejam espectadores. De modo impertinente e sem seriedade, sugere que não existe sofrimento verdadeiro no mundo. Mas é absurdo identificar o mundo a essas regiões de países abastados onde as pessoas gozam o dúbio privilégio de ser espectadores ou furtar-se a ser espectadores da dor de um outro povo, assim como é absurdo fazer generalizações acerca da capacidade de se mostrar sensível aos sofrimentos de outros com base na atitude desses consumidores de notícias, que não conhecem, na própria pele, nada a respeito de guerra, de injustiça em massa e de terror. Existem centenas de milhões de espectadores de tevê que estão longe de sentirem-se impassíveis ante o que vêem na televisão. Eles não se dão ao luxo de fazer pouco-caso da realidade.

As imagens têm sido criticadas por representarem um modo de ver o sofrimento à distância, como se existisse algum outro modo de ver. Porém, ver de perto – sem a mediação de uma imagem – ainda é apenas ver.

Ou seja, há um limite sobre nossa capacidade de sensibilizar o Outro. Sontag afirma que “As imagens não podem ser mais do que um convite a prestar atenção, a refletir, aprender, examinar as racionalizações do sofrimento em massa propostas pelos poderes constituídos”. Ainda assim, muita coisa é possível de ser feita, como contextualizar as circunstâncias que permitem a existência de tais fatos. É responder às seguintes perguntas:

Quem provocou o que a foto mostra? Quem é responsável? É desculpável? E inevitável? Existe algum estado de coisas que aceitamos até agora e que deva ser contestado? Tudo isso com a compreensão de que a indignação moral, assim como a compaixão, não pode determinar um rumo para a ação.

Em paralelo, assumir a perspectiva das pessoas que sofrem é não tratá-las como meros pacientes de um destino inescapável ou vítimas comuns de um sistema implacável. Isso seria torná-las uma massa informe. Como bem afirma Sontag, “é intolerável ter o próprio sofrimento equiparado ao de outra pessoa”.

Compreender e descrever o grande quadro é uma tarefa que cabe bem aos sociólogos. Travar esse diálogo é mais do que fecundo, mas é preciso ainda relatar essas trajetórias de vida que teimam em ser apagadas, conferir nomes próprios aos responsáveis por tanta iniquidade e preservar a memória dos que sofrem injustiças. Essas seriam tarefas cruciais a um jornalismo de ideias que se pretende ir além da mera factualidade a fim de transpor esse fosso que nos separa.

Deixe um comentário